Escolha de PM que esteve no Carandiru para comandar presídios gera incertezas

    Nivaldo Restivo comandou a PM e esteve no massacre do Carandiru; agentes penitenciários, familiares de presos e especialistas acreditam ser difícil prever o impacto para sistema prisional

    Coronel Nivaldo Restivo comandou a PM de 2017 a 2018 | Foto: Marcelo Chello/SSP

    O sistema prisional paulista terá um novo comando a partir de 2019. Há 10 anos liderando a SAP (Secretaria da Administração Penitenciária), Lourival Gomes será substituído pelo coronel Nivaldo Restivo, ex-comandante da Polícia Militar paulista e que participou do massacre do Carandiru, em 1992, quando 111 presos foram mortos dentro da penitenciária.

    A escolha do governador eleito João Doria (PSDB) gera apreensão e traz dúvidas seja por parte de familiares de presos, agentes penitenciários ou pesquisadores da área. Duas questões primordiais estão em jogo: qual a linha de atuação de um homem acostumado com policiamento ostensivo dentro das cadeias e, também, como será a reação por parte do crime organizado quanto à sua atuação e histórico.

    Restivo comandou a PM por pouco mais de um ano, entre março de 2017 e maio de 2018. Ao sair do posto, substituído pelo coronel Marcelo Vieira Salles, assumiu cargo de chefe de gabinete na SSP (Secretaria da Segurança Pública), escolha do atual governador, Márcio França (PSB).

    Em 1992, o futuro comandante da SAP estava presente na ação que terminou com 111 presos mortos no Carandiru e chegou a classificar a ação como “legítima e necessária”.  O MP (Ministério Público) denunciou 74 PMs pelas execuções, mas não recai sobre o coronel nenhuma das mortes ocorridas no Pavilhão 9 da Casa de Detenção. Passados 26 anos, sua administração dentro dos presídios é vista com difícil previsão.

    “Para nós é uma incógnita, me admira a coragem de assumir. Acredito que deve ter trunfos, senão não teria aceitado o convite”, aponta Valdir Branquinho, presidente do Sindasp (Sindicato dos Agentes de Segurança Penitenciária do Estado de São Paulo), e agente penitenciários há 31 anos.

    Segundo Branquinho, os agentes têm certo receio de como os criminosos e o PCC (Primeiro Comando da Capital) reagirão à escolha de Nivaldo. “Até tememos [uma reação da facção criminosa e uma ‘virada’ de presídios como já ocorreu em outras épocas], mas precisa ver a veracidade. Se vai acontecer, não podemos viver com bola de cristal. Está se falando tanto e pode não acontecer nada. Estamos preocupados com a categoria, a classe, em valorizar a profissão. Ter respeito e, principalmente, estrutura”, sustenta, dizendo ainda não ter conversado com o novo secretário.

    O presidente considera que, apesar de certo temor, os agentes não têm com o que se preocupar em suas seguranças, atualmente em “um momento tranquilo, mas dá para melhorar”. “Quem tem que dar segurança é o próprio governo, deixaram crescer o problema e o alimentaram. Não sei como vai ser”, completa.

    Medo é mais nítido quando se conversa com familiares de presos. Segundo a Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos), a expectativa quanto ao trabalho de Restivo é a pior possível. “As famílias estão muitos receosas, apreensivas com esse currículo que ele tem. Estão com medo de tirar visita, tudo que se sabe sobre as condições de presos e parentes. É estarrecedor, um passado tenebroso. Ele participou do massacre, é preocupante”, explica uma representante, pedindo anonimato com medo de represálias.

    Ainda de acordo com a representante do grupo, a atual gestão nunca as recebeu para entender as demandas dos parentes. “Nunca tive uma reunião com o Lourival. Prejudica tudo, o Estado nos vê como inimigo, não somos inimigos de ninguém, fazemos nosso trabalho. Onde tem violação de direitos, fazemos denúncia, e incomoda todo mundo. Fazer o bem incomoda”, sustenta.

    Transferência vira ponto-chave

    Um dos principais temores por parte de especialistas é de que o PCC volte a realizar ataques em São Paulo, como aconteceu em 2006 e 2012. Em ambos os casos, o elemento propulsor foram as transferências de líderes para presídios federais a fim de diminuir o poder de comando dos cabeças dentro dos presídios. Neste ano, a questão está novamente em debate.

    O MP (Ministério Público) solicitou a remoção de 15 integrantes da Sintonia Final do PCC, o grupo que gerencia os negócios do crime. Resta à Justiça validar ou recusar a recomendação, tudo sob acordo com o governador do estado e o secretário de segurança. Especialistas colocam esta decisão como crucial na reação, ou não, do crime organizado.

    Cabe lembrar que, no final de semana, a polícia interceptou cartas cifradas com duas mulheres que saíram da visita da P2 de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo, com ameaças de morte ao promotor Lincoln Gakiya e ao coordenador da unidade prisional Roberto Medina. A motivação do plano, segundo investigação perpetrado pelo PCC, é justamente a tentativa de transferir os líderes da facção para unidades federais.

    “O que existe, e é importante considerar, é que quando ocorreram os ataques em 2006, o PCC estava se expandindo nesta rede de drogas que costurou nacionalmente e nas fronteiras. Não se tinha tanto dinheiro a perder. Esta fase é diferente de hoje, eles são empresários do crime que ganham muito dinheiro com o mercado de drogas. Torna-se um cálculo importante de ganhar e perder com muito dinheiro em jogo”, avalia Bruno Paes Manso, especialista em segurança do NEV (Núcleo de Estudos da Violência), da USP (Universidade de São Paulo).

    Segundo Paes Manso, as transferências de líderes geram de fato tal preocupação. Afinal, há casos de seis agentes federais mortos em 2016 quando uma parcela da liderança foi enviada para penitenciárias administradas pelo governo federal. Porém, explica ter uma sociedade à mercê do que os criminosos definirem fazer. Caso ajam, será difícil segurar.

    “Ficamos sujeitos às decisões deles, mais vulneráveis, se resolverem agir, há vulnerabilidade pelo poder que deixamos eles alcançaram. Temos visto planos de reação, de, caso se endureça muito as medidas nos presídios, eles podem reagir. Pode ser bravata, ameaça. Fica difícil prever até onde o crime truca ou não”, argumenta.

    Em conversa com a Ponte, uma pessoa ligada à Polícia Militar segue a mesma linha de raciocínio: caberá ao governador Doria optar mandar ou não a cúpula do PCC para presídios federais. “O crime pode pensar que, por ele estar no Carandiru, o estopim para a criação das facções, e colocarem ele “para cuidar da gente”. Corre risco de revide. E, se realmente mandar os líderes para fora de SP, aí pode fazer mudar o sistema com rebeliões em série”, cita, pedindo anonimato.

    Questões do sistema

    As demandas por parte do sistema prisional se acumulam em igual proporção à superlotação das cadeias. Com capacidade para 100 mil presos, São Paulo acumula a população carcerária acima de 210 mil. São pessoas sem devido acompanhamento médico, sem direito ao estudo e trabalho e com acesso restrito de parentes e entidades de direitos humanos, como explica a Pastoral Carcerária.

    “A coisa é bem complexa, não passam informações sobre isso. Apesar da superlotação, 14 mil pessoas são presas por mês no estado. Foram 532 óbitos em 2017 dentro do sistema, que tem menos funcionários para presos em todo o país. A alimentação é altamente preocupante, tem a restrição para visitas religiosas desde março deste ano… São problemas”, lista Padre Valdir, uma das lideranças da Pastoral.

    Para Valdir, estes problemas terão de ser encarados por Nivaldo Restivo, o nome comandante da SAP, criticado pelo histórico militar. “Percebemos que a segurança pública, apesar da Constituição, mantém a repressão da ditadura. É preocupante, esperamos que ele busque ao menos avançar no que a lei de execução penal determina”, aponta, elencando que apenas 13% dos presos estudam, poucos trabalham e 70% das unidades prisionais “não tem a mínima equipe de saúde”.

    O religioso ainda cita como outro problema o GIR (Grupo de Intervenção Rápida), criado após o massacre do Carandiru para ter homens especializados na contensão de rebeliões. “Alterou-se para ter um tratamento mais ordeiro. Apesar do GIR não entrar com armas letais, a forma, o procedimento e brutalidade com os presos segue igual. Na hora da evasão das celas, de tirar todo material dado pelas famílias, como alimentação, deixá-los por varias horas nos pátios à merce do clima… É um problema seríssimo. Trocou a PM pelo GIR, mas não alterou a violência”, explica.

    No início do ano, a Ponte divulgou com exclusividade um estudo feito pela Defensoria Pública de São Paulo, que aponta que quase metade dos presos em São Paulo já foi agredido fisicamente pelo GIR.

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