Defensoria Pública quer o fim da ‘tropa de choque’ dos presídios

    Quase metade dos presos em São Paulo já foi agredido pelo GIR, o Grupo de Intervenção Rápida, segundo inspeções realizadas por defensores, para quem a existência do grupo é “inconstitucional”

    Agentes do GIR em treinamento | Foto: Facebook

    Um levantamento realizado pelo NESC (Núcleo Especializado em Situação Carcerária) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo aponta que o Grupo de Intervenção Rápida (GIR), formado por agentes penitenciários para controlar rebeliões e revistar celas atrás de armas e drogas, é atuante em mais de 65% das unidades prisionais de São Paulo. Mais de 45% dos presos relatam já terem sido agredidos fisicamente durante a atuação do GIR.

    Outras queixas dizem respeito à destruição de pertences (25,8%), mordidas de cães (22,9%), xingamentos (21,8%) e uso de bombas de efeito moral (19,4%). Mais de 12% dos detentos tiveram que ficar nus após a entrada do GIR e 10,5% relatam uso de bala de borracha e spray de pimenta. Os dados antecipados pela Ponte estão no relatório produzido por defensores a partir de inspeções em 57 unidades prisionais e que será apresentado ao público nesta quarta-feira (28/2) durante uma audiência pública, às 17h30, realizada na sede da Defensoria, em São Paulo, em conjunto com a Pastoral Carcerária, a Associação de Amigos e Familiares de Presos – Amparar, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC e a Conectas Direitos Humanos.

    Os defensores que atuam nas inspeções feitas em penitenciárias paulistas entregam um formulário com diversas perguntas para a direção do presídio e para alguns detentos, escolhidos aleatoriamente, sempre procurando abarcar todos os raios – ou pavilhões – nas unidade. Embora a consolidação de dados diga respeito a 57 visitas, o núcleo informa que já está chegando a 70 inspeções. Em todo o estado, há 168 estabelecimentos prisionais.

    Fonte: NESC/Defensoria Pública do Estado de São Paulo

    No formulário, há um espaço em que os detentos podem colocar palavras que representem o GIR. O que aparece é: agressões físicas e verbais, tortura, mordidas de cães, destruição de pertences, bombas de gás, balas de borracha e spray de pimenta. “O problema é que a punição é coletiva. É complicado, porque, às vezes, acontece uma situação pontual e o GIR vai lá e apavora geral. Por exemplo, há casos em que não havia suspeita fundada de droga, arma e o GIR, por um problema com um detento, entrou e apavorou o presídio inteiro”, afirma um dos integrantes do NESC, Mateus Moro. “Avaré, por exemplo, é um RDD [Regime Disciplinas Diferenciado] disfarçado. Quando você quer desumanizar alguém, mande para lá. Em Presidente Venceslau, por exemplo, há relatos e vídeos que comprovam: os agentes jogam o gás, depois bomba, pega fogo e quando os presos saem da cela continuam apanhando. Como é que você continua batendo em alguém que está pegando fogo?”, questiona Moro.

    Um vídeo produzido pelo NESC reúne relatos de violações do GIR e será exibido na audiência. O material traz falas do tipo: “Xinga, manda correr sem roupa. Colocam 50 presos em uma cela só, todos nus. Mascarados, furtam coisas nossas, misturam roupas dos presos”, diz detento do CDP de Sorocaba. “Agressões com chutes, socos e não levam para o PS. Cortaram as visitas para não verem os machucados. Fizeram comer fezes, jogam spray de pimenta, bomba de efeito moral, revista humilhantes, com cachorros mordendo”, aponta outro relato, dessa vez do CDP de São Vicente. 

    A Defensoria Pública também questiona a constitucionalidade do GIR, que foi criado em 2004, através da resolução nº 69 da SAP (Secretária de Administração Penitenciária) com intuito de substituir as incursões feitas antes pela Tropa de Choque da Polícia Militar. De acordo com Moro, não há previsão constitucional para o tipo de atuação do GIR. “No artigo 144 da Constituição, os agentes e guardas dos sistemas penitenciários e prisionais não são citados e em nenhum momento, há previsão de que eles formem uma tropa de controle em presídio. O GIR é regulado por uma resolução estadual. Não tem previsão constitucional”, explica.

    O que acontece, na prática, de acordo com levantamento do NESC, é que a exceção tem virado regra. “A atuação foi pensada para ocorrer em situações de urgência como rebeliões, motins. Contudo, cada vez mais, tem atuado em movimentações ordinárias cotidianas, prática que tem aumentado os relatos de violações aos direitos humanos das pessoas presas, mormente a prática de tortura, seja física ou psicológica”, informa o NESC na carta convite para a audiência pública.

    Um texto no Facebook do GIR admite justamente a ação rotineira do GIR. O grupo, que se autointitula “a tropa de elite do sistema prisional paulista”, afirma que “atua em situações críticas como a subversão da ordem e da disciplina, motins e rebeliões nas Unidades Prisionais e Centros de Detenção Provisória (CDP). Sua função é controlar revoltas nos presídios e apoiar os colegas que atuam no interior das penitenciárias, em operações de rotina como as de revistas nas unidades”, diz a publicação.

    Em reportagem da Ponte, no mês passado, parentes de presos das penitenciárias de Getulina e Dracena denunciaram casos de espancamentos e até  de queimaduras pela combinação do gás pimenta e bombas em ações do GIR. Na ocasião, a SAP chegou a enviar uma nota em que diferencia a ação do GIR e do CIR, que é Célula de Intervenção Rápida. Para Mateus Moro, a discussão que importa é a atuação baseada na violência, não o nome de um ou de outro. “Um precisa de autorização do coordenador direto e outro, que é o CIR, exige autorização do coordenador e do diretor da unidade prisional”, explica. Existe também uma diferença de tamanho entre os dois: enquanto o GIR tem pelo menos 30 integrantes, o CIR é mais modesto, com no máximo 6 agentes da unidade divididos em turnos.

    No formulário que o NESC entrega aos presos durante as inspeções, há outros elementos que são avaliados e que, em última análise, contribuem para situações de tensão no sistema. Há também um item que pede que o detento identifique se o raio está dominado pelo PCC. “A questão do kit de higiene é complicada. Vemos que papel higiênico até chega, mas outras coisas como sabonete, lâmina de barbear, absorvente, pasta de dente e escova, não chega. O que acontece é que esse preso ou vai receber essas coisas na visita ou vai ficar na mão da facção, que será a fornecedora disso”, explica o defensor público Mateus Moro. “Água quente não existe no sistema prisional e verificamos nas inspeções que o racionamento é recorrente. Há presídios que tem água pela manhã e depois só a noite”, pontua.

    “Também temos o cuidados de cruzar informações de abusos do GIR, para evitar denúncias plantadas. Por exemplo, uma vez numa unidade prisional feminina de 4 raios, chegamos no primeiro, que era de semiaberto, elas disseram que no 4, que era fechado, o GIR tinha esculachado, feito as mulheres grávidas deitarem de bruços no chão quente e tudo mais. Quando chegamos no 4, questionei uma detenta que me disse: ‘Doutor, não é verdade. De duas uma: ou o telefone sem fio chegou desse jeito lá na outra ala ou houve intencionalmente um desejo de aumentar a história’. Ouvi outros relatos e, de fato, o GIR havia cometido excesso, mas também houve uma supervalorização do ocorrido”, explica.

    Para o defensor público Mateus Moro, realizar uma audiência pública sobre o tema vai garantir transparência a ação de um grupo que, até agora, é “intramuros”. “Na nossa reflexão, o GIR tem que acabar. Ou, no mínimo, tem que haver uma fiscalização, uma redução de danos. O controle social não é fácil se avaliarmos que o GIR está lá dentro e ninguém sabe exatamente o que acontece e como acontece”, critica.

    O núcleo especializado da Defensoria Pública convidou a SAP para comparecer e participar da discussão na audiência pública.

    Outro lado

    Procurada pela Ponte sobre as denúncias da Defensoria, a Secretaria da Administração Penitenciária do governo Geraldo Alckmin (PSDB) não respondeu até agora.

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