Em “Encontros à hora morta”, Vanessa Ratton e Maria Valéria Rezende usam histórias sobrenaturais para relembrar as mulheres vítimas da sociedade e do Estado
Desde tempos imemoriais, lendas e mitos sempre foram usados para contar “lições” a quem os ouve. Geralmente, são lições sobre comportamentos socialmente aceitos e o que acontecia com quem não seguisse as regras. No livro Encontros à Hora Morta, da jornalista e escritora infanto juvenil, Vanessa Ratton e da escritora e poeta premiada Maria Valéria Rezende, a ideia é investigar lendas urbanas da cidade de Santos, no litoral de São Paulo, e apresentar aos jovens leitores fantasmas de mulheres que foram assassinadas ou violentadas pela sociedade e pelo Estado, trazendo, inclusive, uma alusão à Patrícia Galvão, a Pagu, primeira mulher presa política no país.
A ideia da obra nasceu quando Vanessa leu uma notícia sobre um navio que estava em alto mar com passageiros com Covid-19. Como nenhum porto aceitou que a embarcação atracasse, algumas pessoas morreram. “Era março de 2020, o início do crescimento da pandemia aqui no Brasil e nem sabíamos como seria dali pra frente, se um dia teríamos uma vacina ou um remédio. Essa angústia e a necessidade de escrever sobre a vontade de viver foram minha inspiração”, conta.
O trabalho de pesquisa começou na memória de Vanessa ao trazer para seu presente algumas histórias que se contava na cidade. Para ela, essas lendas são tipo de “patrimônio imaterial” de Santos. “Outras [lendas] pesquisei na internet e nos jornais locais. Alguns escritores já haviam colocado em blog ou livros os relatos orais. E quando dei para a Maria Valéria Rezende, santista de uma outra geração, ler, ela disse que [ainda] faltavam algumas e daí a convidei para completar as memórias. E foi uma honra tê-la como coautora”, explica Vanessa.
As duas escritoras são conhecidas de diferentes públicos. Vanessa escreve desde os 14 anos para os mais novos, tendo lançado livros como O ratinho que não gostava de queijo, Uma menina detetive e a máfia italiana e Nos mares do mundo’ Já Maria Valéria circula nos mundos dos adultos, com aventuras pelo mundo das crianças, tendo em seu currículo prêmios como o Jabuti, o São Paulo de Literatura e o Oceanos. A dupla faz parte do movimento Mulherio das Letras, que reúne cerca de sete mil escritoras, editoras, ilustradoras, pesquisadoras e livreiras do Brasil, dos Estados Unidos e da Europa na luta por igualdade de gênero no mercado editorial.
O livro, publicado pela Florear Livros, também traz as histórias de horror do Navio Raul Soares, um lugar de tortura durante o regime militar brasileiro no Porto de Santos. A cidade portuária é o cenário para a circulação das lendas de 13 contos que passeiam por lugares como a Santa Casa de Misericórdia, Paquetá e o Teatro Brás Cubas, além de trazer lendas mais contemporâneas e nacionais, como o terror de muitas crianças dos anos 80 e 90: a loira do banheiro.
O sobrenatural ajuda a dar rosto e voz a vítimas reais, vítimas violências diárias em diferentes momentos da História. “Foi escrevendo que percebi que havia um fio condutor invisível nas histórias de crimes macabros e desses fantasmas, a violência contra a mulher e essa era a ligação do sobrenatural com a história real que acontece no livro”, avalia Vanessa.
Quem quiser saber mais sobre a história poderá assistir o bate-papo das autoras mediado pelo pesquisador Ricardo Dalai no Instagram da editora Florear Livros. O evento aconteceu no dia mais propício para lançar histórias sobrenaturais: 31 de outubro.