Essas famílias não poderão fazer quarentena. A prefeitura de Porto Alegre derrubou suas casas

    Tratores derrubaram pelo menos dez casas da Vila Nazaré, embora Ministério Público e Defensorias tenham pedido interrupção de despejo por causa do coronavírus

    Na semana em que a cidade de Porto Alegre (RS) recebeu a confirmação da primeira morte pela pandemia de coronavírus, pelo menos dez famílias da Vila Nazaré, na norte da capital gaúcha, ficaram impossibilitadas de atender à recomendação de ficar em quarentena dentro de suas casas. É que as residências ondem viviam foram todas derrubadas por tratores da Prefeitura, comandada por Nelson Marchezan Júnior (PSDB).

    Um vídeo gravado na tarde da última terça-feira (24/3), e postado nas redes sociais pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto mostra a ação do poder público no bairro. “Eles estão derrubando tudo, desde sábado [21/3]. Sem dó nem piedade. Passam com o trator independente do que tenha dentro da casa”, relatou um auxiliar de supermercado ouvido pela Ponte, que pede para não ser identificado por medo de repressão. 

    No último sábado, a casa da filha dele foi derrubada com todas as coisas dentro. “Passaram a máquina por cima da casa. Lá tinha tudo, geladeira, fogão, microondas, mesa, cadeira. Tinha uma freezer, também porque minha filha usava para vender os lanches dela. Ela estava há dois meses internada no hospital, por conta de uma gravidez de risco, e quando voltou as paredes da casa estavam ameaçando cair, por causa das outras demolições ao redor. Fui reclamar, pedir para eles não derrubarem a casa dela, eles nem deram bola, passaram por cima igual”, conta o auxiliar. 

    Vila Nazaré após a passagem dos tratores | Foto: Arquivo Ponte

    O caso do auxiliar de supermercado não é isolado. Segundo o coordenador nacional do MTST-RS (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto no Rio Grande do Sul), Eduardo Osório, pelo menos 10 famílias tiveram suas casas demolidas pela Prefeitura de Porto Alegre nos últimos dias. 

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    A Vila Nazaré fica localizada na linha da futura extensão da pista do Aeroporto Salgado Filho e por isso, desde o ano passado, as famílias que vivem no local estão sendo removidas. Segundo o coordenador nacional do MTST-RS, das 2 mil famílias que habitavam a Vila Nazaré, 800 já foram reassentadas. “Não estamos impedindo ninguém de sair, tanto que quem desejar se mudar, está se mudando. A questão é que, com a chegada da pandemia, as formas de remoção estão contrariando todas as recomendações da OMS [Organização Mundial da Saúde] e da Justiça. É um reassentamento forçado o que eles estão fazendo”, afirma Osório. 

    Água cortada durante a pandemia

    Segundo Osório, uma das estratégias para forçar a remoção é cortar a energia elétrica e a abastecimento de água do local. “Eles foram desestruturando toda a comunidade. Fecharam postos, creches e até o centro de serviço social foi demolido”, denuncia Osório. 

    O encarregado de supermercado que viu a filha perder a casa confirma que a água foi cortada e diz que a Prefeitura está “se aproveitando da pandemia” para prejudicar os moradores. “As pessoas que não acham que vale a pena trocar sua casa por um apartamento menor e mais longe estão sendo forçadas a aceitar. E quem não aceita, eles passam por cima”, diz. 

    O auxiliar mora há 27 anos no local e não quer se mudar: “Eles querem transferir para onde eles quiserem. Eu não quero deixar minha casa, que é muito maior que esses apartamentos, e que eu lutei pra construir”.

    Outro morador da Vila Nazaré afirma que as demolições derrubaram os encanamentos das casas. “Estamos sem água, por aqui carro-pipa não passa, mas por irresponsabilidade deles. Eles falam que o pessoal que se vire. Agora, com a epidemia do coronavírus, o pessoal já está no meio dos escombros, no meio da bagunça toda, e ainda por cima sem água”, conta o morador. 

    Vila Nazaré após a passagem dos tratores | Foto: Arquivo Ponte

    As preocupações com o futuro são visíveis. Para o auxiliar de supermercado, o governo não se preocupa com a periferia. “Nunca se preocuparam e não é agora, no meio de uma pandemia, que vão se preocupar. Fazemos o que pudemos para nossa higiene, para prevenir de pegar esse vírus, mas não depende só de nós. Eles não estão preocupados em proteger a gente, não. Quem se preocupa com pobre?”, pergunta. 

    O papel da Prefeitura

    A ação da Prefeitura de Porto Alegre contraria a própria determinação do prefeito Marchezan que, no último sábado (21/3), assinou um decreto impedindo o funcionamento de diversos serviços, incluindo a construção civil. 

    No mesmo dia em que foi assinado o decreto, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul, o Ministério Público do Estado e as Defensorias Públicas do Estado e da União ajuizaram uma ação civil pedindo que fosse interrompida a remoção de famílias da Vila Nazaré com o argumento da falta de alternativa aos moradores em meio à pandemia de coronavírus. 

    Ontem, a juíza federal substituta Thais Helena Della Giustina, do TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), indeferiu o pedido de suspensão das remoções das famílias e manteve o reassentamento da Vila Nazaré. Além disso, determinou que sejam observadas todas as medidas de segurança e higiene a fim de evitar a disseminação do coronavírus, durante o processo de remoção e realocação.

    Procurada pela reportagem, até o momento, a assessoria do MPF disse que não há nada novo sobre a decisão. 

    A competência, segundo a decisão interlocutória do TRF-4, de verificar a adequação das medidas, além de fiscalizar e garantir o seu cumprimento, fica a cargo da Prefeitura de Porto Alegre e do Departamento Municipal de Habitação. 

    Em uma nota divulgada pela página no Facebook do Departamento, foi informado que a Prefeitura seguirá o cronograma da mudança das famílias da Vila Nazaré para o loteamento Irmãos Maristas.  

    ‘Essas pessoas vão para uma habitação digna’

    Procurada pela Ponte, a Prefeitura de Porto Alegre não respondeu. No Twitter, o prefeito Marchezan escreveu, em resposta a um questionamento do líder nacional do MTST, Guilherme Boulos, que as famílias da Vila Nazaré estão sendo realocadas para lugares mais “dignos”: 

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