Liomezia Maria de Jesus, mãe de E., 16, fez investigação por conta própria: “É de entristecer a alma. A palavra do branco vale, mas o preto precisa de uma câmera para provar que não foi ele, não basta meu filho falar”
Na manhã de 15 de janeiro de 2021, a atendente Liomezia Maria de Jesus, 32 anos, mandou mensagem para seu filho mais velho, E.J.S., de 16 anos, assim que chegou no trabalho. “Não esquece de ver a cortina”.
Mais tarde, às 11h36, ela mandou uma nova mensagem. “Você já foi ver a cortina?”. O estudante respondeu que não, porque estava chovendo na capital paulista. Ela insistiu para que ele fosse lá resolver isso. E o estudante foi, vestido de bermuda preta, chinelos e uma blusa cinza. O que Liomezia não imaginava é que o filho não retornaria para casa.
Por volta das 13h, E. foi abordado pelos PMs Camilo Pagliarini Magalhães e Thiago Fernando Delisposte, da 1ª Companhia do 46º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano, na Praça Monte Azul Paulista, no Ipiranga, e levado para o 95º DP (Heliópolis), acusado de realizar dois roubos às 12h30 e às 12h50 daquele dia.
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Segundo o boletim de ocorrência, assinado pelo delegado Carlos F. de Miranda Santos, os PMs patrulhavam a Praça Monte Azul Paulista, no Ipiranga, quando avistaram E., que teria representado “nervosismo ao avistar a viatura”.
Apesar de E. estar vestido com uma blusa cinza, os PMs acharam que ele poderia ser um dos três homens que, 40 minutos antes, haviam roubado uma mulher na rua Ouvidor Peleja, Vila Mariana, às 12h30. As vítimas descreveram que um dos assaltantes era “pardo”, tinha 1,80m, vestia bermuda preta, blusa de lã preta e cabelo mechas loiras.
Segundo a vítima descreveu na delegacia, os homens teriam abordado ela assim que ela estacionou seu Jeep Renegade no local. Um deles, continuou a mulher, estava armado e a obrigou a descer do carro, roubando sua bolsa, seus anéis e seu iPhone. Eles teriam tentando roubar o carro, mas não conseguiram.
Meia hora depois, às 12h50, os mesmos homens teriam roubado um advogado na Estrada das Lágrimas sentido à rua das Juntas Provisórias, em seu Gol branco. Um dos homens teria mandado a vítima abaixar os vidros, levando sua aliança de ouro, relógio, celular, carteira com documentos e sua mochila com notebook da marca Samsung.
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Ambas as vítimas afirmam que E. era o suspeito que estava com a arma. Mas, quando foi apreendido pelos PMs, o estudante estava apenas com o seu celular pessoal. Nenhum item roubado foi encontrado com o adolescente no momento da apreensão.
A promotora Raquel Maria Leone Almeida Cesar Barbosa, do Ministério Público de São Paulo, representou a apreensão e internação provisória de E., intimando as vítimas e os PMs. Em seguida, o juiz Airtom Marquezini Junior, do Tribunal de Justiça de São Paulo, decretou a internação provisória do adolescente.
Ele foi encaminhado para a CAI Gavoita, da Fundação Casa, no Brás, região central da cidade, para responder por roubo. Desde o momento de prisão, o adolescente nega os crimes. À Ponte, Liomezia, mãe de E., conta que só ficou sabendo que o filho foi arpeendido às 15h.
Ela estava no trabalho e não recebeu nenhuma ligação da polícia, que, segundo a mãe, teria entrado no celular do filho e avisado a parte da família que mora na Bahia. Quando chegou na delegacia, a mãe afirma que o jovem já tinha sido reconhecido pelas vítimas.
No processo, na folha de reconhecimento, não há informações de como o procedimento foi feito e nem se cumpria a recomendação do artigo 226 do Código de Processo Penal, que diz que “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”.
Liomezia também conta que não pode ficar ao lado do filho durante o depoimento, como é garantido no artigo 111 do Estatuto da Criança e do Adolescente. “Foi horrível, meu chão abriu e eu cai em um buraco negro”, diz sobre o momento em que soube da prisão do filho.
“Você não imagina a sensação que uma mãe tem de saber que seu filho foi preso injustamente. Eles tratam a gente como cachorro [na delegacia], é um lugar que você quer sair o mais rápido possível”.
A mãe só conseguiu falar com o filho no domingo, depois de insistir muito. “Ele foi pra Fundação e não me avisaram para qual ele estava indo, só no sábado de manhã me ligaram para falar que eu não deveria ir lá porque não seria atendida, que era para eu ligar às 17h para saber o que tinha sido decidido”.
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“Quando eu liguei não me atenderam, só consegui falar com a responsável no domingo porque eu fui pessoalmente até lá. Depois de muito discutir e argumentar, que me atenderam. No domingo consegui falar com ele, por telefone”, conta.
Dois dias depois da apreensão do filho, Liomezia começou a buscar provas de que E. era inocente. Ela sabia que o filho tinha saído de casa às 12h18 e conseguiu as imagens do prédio onde mora. Saiu refazendo todas as opções de caminho até a casa do seu irmão, próximo da praça onde E. foi apreendido.
Conseguiu apenas algumas imagens na sua rua. “É de entristecer a alma. A palavra do branco vale, mas o preto precisa de uma câmera para provar que não foi ele, não basta meu filho falar. E eu que tenho que ir atrás das imagens”, aponta.
Mas as imagens são suficientes para mostrar que os horários não batem. O adolescente saiu a pé de casa, na rua Nossa Senhora das Mercês, às 12h18 e seguiu a rua tranquilamente. As imagens do prédio onde a família mora, na avenida Nossa Senhora das Mercês, na Vila das Mercês, distrito do Sacomã, localizado na zona sul da cidade de São Paulo, mostram que E. saiu de casa às 12h08, desceu, ficou um tempo no hall do seu prédio, subiu novamente e sai às 12h18.
O primeiro roubo foi às 12h30, 4,3km dali, na rua Ouvidor Peleja. O segundo roubo aconteceu a 6,6 km do primeiro roubo, na Estrada das Lágrimas. Por fim, o local onde E. foi apreendido fica a 3,4 km de distância do segundo roubo.
A mãe conta que E. saiu de casa naquele dia para ir em uma loja de cortinas perto da casa do tio, que fica próximo da praça. Saiu de casa e foi para a casa do tio, onde ficou até às 13h. “Eu preciso provar a inocência do filho, não posso deixar ele naquele lugar por algo que ele não fez”, lamenta.
E. está matriculado no 9º ano da E.E. Raul Cardoso, na Vila das Mercês, e trabalha como ajudante em oficina mecânica com o tio. Para Liomezia, o que aconteceu com o filho acontece com ela todos os dias: racismo. “É uma injustiça, é uma desigualdade social. Como mãe de quatro negros… a gente é preto, a gente sabe, passamos por muitas situações. Se um preto tá bem vestido, roubou. Se é um branco, ele trabalhou para ter. É isso mesmo que a gente acredita? Nosso país é racista, o povo brasileiro é racista”.
“Eu enfrento racismo todos os dias quanto eu saio para trabalhar, onde eu moro eu enfrento racismo. Só tem a gente e mais uma família negra no prédio onde eu moro. Somos olhados torto. Eu sempre tentei defender os meus filhos disso, mas sempre falei que existia racismo, sou realista. Sempre falei que, perante algumas pessoas, principalmente com poder aquisitivo maior, eles não eram iguais. A gente sente na pele”, denuncia.
A matriarca aponta que as vítimas e o delegado agiram como agiram pelo fato de E. ser negro. “O delegado acha que tirou um meliante da rua. As vítimas acreditam que fizeram justiça, mas não fizeram justiça, elas procuraram vingança no primeiro preto que apareceu”.
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“As cutis delas, como tá no boletim de ocorrência, não foram declaradas, mas a do meu filho foi. Por quê? Por que ser preto no processo faz diferença. Os PMs eram brancos, o delegado era branco. Por que só a cor do meu filho foi dita? Para o juiz saber que ele é mais um preto que rouba?”, questiona.
Daqui para frente, lamenta a mãe, o medo de deixar os filhos sozinhos aumentará. “Será que os meus filhos vão poder ir na padaria comprar um pão? Se eu vou conseguir deixar os meus filhos saírem para ir na padaria? Como vai ser minha vida daqui para frente? Será que vou conseguir seguir trabalhando ou ficar em casa para acompanhar eles em todos os lugares? Eu como mãe vou querer proteger os meus filhos todos os horários. Como vou sustentar a minha casa?”.
Liomezia desabafa que decidiu morar em um prédio justamente para proteger seus quatro filhos. “Eu moro em prédio para essa proteção e agora os meus filhos não poderão andar sozinhos. Não foi roubado aqui onde eu moro, eu comprei e paguei”.
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Além de libertar o filho, Liomezia avisa: lutará pela inocência total de E. “Quero processar o Estado e as vítimas, mas não quero esse dinheiro, eu quero que isso seja feito porque é certo. Eu quero que a vítima, quando olhar para um preto na rua, lembre-se disso: ‘esse preto era inocente, tinha mãe, trabalhava, estudava, eu coloquei um inocente na cadeia’”.
“Meu filho tá dormindo no chão de pedra, não tem colchão, em um lugar que fede. É justo tirar o filho de uma mãe? Meu filho não mora em uma casa, ele mora em um lar, tiraram meu filho de dentro do meu lar para ele passar pro isso”, finaliza.
Irregularidades no processo
A pedido da Ponte, a advogada criminalista Fernanda Peron, integrante da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, analisou o processo de apreensão de E. O primeiro ponto irregular, aponta, é a prisão em flagrante.
“O adolescente não foi apreendido em flagrante cometendo o crime ou correndo em fuga. O jovem negro caminhava na rua quando, naturalmente, apresentou nervosismo ao ser selecionado por policiais militares, chamado de suspeito e levado à delegacia”, explica.
“O adolescente nunca foi apreendido ou processado antes, não estava com os bens roubados das vítimas e por três vezes negou a prática infracional. Não há motivos para mantê-lo internado provisoriamente”, completa Peron.
Para o advogado criminalista Damazio Gomes, também integrante da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, as acusações têm muitas inconsistências. “Existe uma filmagem dele dentro do prédio e, pelo horário, 12h18, é muito improvável que ele tenha cometido o ato. A dinâmica descrita de um carro com mais dois meninos é muito difícil porque até esses meninos chegarem, guardarem as coisas… não bate”.
Damazio também chama atenção para o reconhecimento, que não cumpriu os requisitos do artigo 266 do Código de Processo Penal. “Não teve outras pessoas com as mesmas características colocadas ao lado dele, para que a vítima dessa certeza de quem era a pessoa certa. Quando temos só uma pessoa na sala do reconhecimento e a polícia diz que ‘pegamos a pessoa que te roubou’, a vítima já vai com muita certeza porque ela acredita muito na palavra desse agente público”.
“Por muitas questões estruturais, temos uma forma de polícia e de investigação que é muito falha. É muito mais fácil pegar alguém com as características de roupas ou corte de cabelo e aí inclui a pessoa como sendo a pessoa procurada”, finaliza.
Outro lado
Questionada, a Secretaria da Segurança Pública ignorou os pedidos de entrevistas com os PMs e com o delegado e informou que a Polícia Civil “esclarece que o menor citado foi apreendido, levado ao 95º Distrito Policial, onde foi submetido a reconhecimento pessoal, conforme preconiza o artigo 226 do Código de Processo Penal, e reconhecido por duas vítimas de roubo. O adolescente foi ouvido na presença de sua representante, assistido por um advogado e encaminhado à Vara da Infância e Juventude”.
Também procurado pela reportagem, o Tribunal de Justiça informou que não emite nota sobre questão jurisdicional. “Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe à parte a interposição dos recursos previstos na legislação vigente”.
O Ministério Público também foi questionado e aguardamos posicionamento.
[…] a reportagem completa em: https://ponte.org/estudante-negro-foi-comprar-cortinas-para-a-mae-acabou-preso-por-roubo/ Fonte do Vídeo no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=wfPzYBE_boM Precisando de cortina […]
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