Estudo desmente ‘sucesso’ do Pacto Pela Vida do governo de Pernambuco

Programa de redução de homicídios foi aplaudido pelo jornalismo e pela academia, mas queda de mortes intencionais escondeu aumento na violência de Estado

Protesto no Recife em janeiro de 2017 decreta o fim do PPV | Foto: Thais Arruda/Esp.DP/D.A Press

Desenvolvido em 2007 e implementado em 2008, o Pacto Pela Vida (PPV) foi um programa do governo do estado de Pernambuco, à época chefiado por Eduardo Campos (PSB), na área da segurança pública. O projeto planejava tratar segurança a partir de eixos temáticos, e a estratégia, no papel, extrapolava a repressão. Havia investimento em governança, em novas métricas para medir a criminalidade, havia a expectativa de participação popular e toda uma camada de proteção social que ajudasse a evitar o crime.

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O Pacto Pela Vida não foi desenhado para combater qualquer crime, mas especificamente os que impactam a mortalidade – assassinatos, latrocínios e afins. Essa foi a ideia nos 16 anos em que o programa esteve em operação, até ser descontinuado em 2023.

Bem recebido pela população, pelo jornalismo e pela academia, todos foram unânimes em afirmar que o Pacto Pela Vida era um sucesso até 2014, quando os índices de mortes violentas só diminuíam. A meta era reduzir a taxa em 12% ao ano, o que foi conseguido. De 2014 até 2023, os números não corresponderam mais à meta.

Um estudo publicado em 2023 pelo mestre em serviço social Vitor Santos Oliveira, no entanto, faz uma nova análise dos dados governamentais sob a luz da violência de Estado, e percebe que, mesmo entre 2008 e 2016, enquanto o Pacto Pela Vida recebia louros por reduzir em 12% ao ano as mortes violentas, violências de Estado seguiam em uma crescente. Isto é, mortes violentas realmente foram reduzidas na sociedade, mas mortes causadas por policiais, mortes em presídios e mortes de egressos nunca foram reduzidas.

Enquanto investia nas forças policiais, em bônus e gratificações por cumprimento de meta, em governança e em novos sistemas, a pesquisa aponta que o governo pernambucano investia muito pouco em proteção social, o eixo do programa que ajudaria a prevenir crimes. Houve ano, Santos descobriu, que 95% do orçamento destinado à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos foi usado pela secretaria executiva que cuidava de presídios. “Isso, a meu ver, diz sobre o privilégio conferido à repressão [no Pacto Pela Vida]”, Oliveira analisa.

Para entender o que foi encontrado e como a dissertação coloca em xeque o sucesso e o caráter inovador do programa estadual, a Ponte conversou com Vitor Santos Oliveira. Leia abaixo os principais pontos da entrevista:

Ponte ― O que é o PPV?

Vitor Santos Oliveira ― O PPV é o programa estadual de segurança pública Pacto Pela Vida. Ele é considerado a primeira política de segurança pública de Pernambuco, segundo o próprio estado de Pernambuco, mas também segundo a Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública). Ele é o primeiro esforço de sistematização estadual de um conjunto de políticas públicas que teve como objetivo central diminuir a violência letal. Esse é, digamos, o centro dele. Ele é um conjunto muito extenso de ações, mas seu objetivo principal era reduzir em 12% ao ano os índices de CVLI (Crimes Violentos Letais Intencionais).

O Pacto Pela Vida é formulado em 2007 e implementado em 2008. Ele foi considerado um programa muito inovador porque fez uma formulação coesa e porque trouxe alguns elementos. O principal deles é a meta de redução de violência letal intencional, mas não só. A participação popular também foi considerada um de seus esforços de inovação, porque no ano de 2007 houve a realização do Fórum Estadual de Segurança Pública, entre março e abril, e foi um fórum que contou com a participação da sociedade civil para levantar o que seriam as demandas por segurança pública. Isso é um dos elementos em que ele é considerado inovador. Se estabeleceram seis eixos de atuação: repressão qualificada ao crime; aperfeiçoamento institucional; informação e gestão do conhecimento; formação e capacitação; prevenção social do crime e da violência; e gestão democrática. É de fato um conjunto de eixos muito amplo, em comparação com o que normalmente a gente encontra nas políticas de segurança pública, que só muito recentemente passaram a ter formulações mais coesas e claras.

Ponte ― Quais eram os objetivos do programa?

Vitor Santos Oliveira ― Como se vê por esses eixos estruturantes, havia diversos outros aspectos, como o aperfeiçoamento institucional, formação e capacitação e a produção de informação e gestão do conhecimento. Esse é um outro elemento central no Pacto Pela Vida, porque entre os seus atributos considerados inovadores, há esse estabelecimento de meta: o Pacto Pela Vida precisa reduzir 12% dos CVLI por ano, o que é uma meta bastante arrojada. Para conseguir averiguar se essa meta está sendo cumprida ou não, o Estado precisa começar a produzir um conjunto robusto de estatísticas. De forma geral, a finalidade do Pacto Pela Vida é reduzir os CVLI e fazer isso de duas maneiras. Primeiro através de uma repressão qualificada ao crime, que vai combater o crime violento, não é pegar ladrão de galinha na rua, é combater o homicídio, a lesão corporal seguida de morte, o latrocínio, os crimes que não podem ser reparados. Por outro lado, principalmente para tudo o que não é crime violento, tem no Pacto Pela Vida essa ideia de prevenção social ao crime, que seria realizada por meio da garantia dos direitos sociais e pela redução da desigualdade econômica. Então tem, de fundo, uma vasta produção bibliográfica, mais articulada ao campo da esquerda, que vai desnaturalizar o crime, dizer que o criminoso não nasce criminoso, há todo um processo social que produz o crime e a criminalização, e isso precisa ser entendido nas suas nuances: combater os crimes violentos e prevenir os crimes de menor potencial ofensivo.

Ponte ― O PPV é uma política progressista de segurança pública?

Vitor Santos Oliveira ― Eu acho que dá para afirmar que ele se enuncia como uma política inovadora por conta desses elementos, e principalmente por trazer um conjunto de ideias, uma coisa que surpreendentemente não havia nas políticas de segurança pública até então, esse aspecto da prevenção ao crime. Não se trata só de reprimir os criminosos, mas de diminuir as condições sociais que, em tese, produziriam os criminosos. O Pacto Pela Vida não se afirma como “progressista”, eu não encontro isso nos dados, mas a leitura que se faz dele, muito pela academia, muito pelo jornalismo, é essa.

O Pacto Pela Vida se enuncia como inovador, como participativo, mas a leitura que a academia, os jornais e a política, de uma forma geral, fez do Pacto Pela Vida, passa sim por essa ideia de progressista, de não ser pura e simplesmente tiro, porrada e bomba. Tem inteligência, estatística, seleção de repressão prioritária, não se reprime no atacado.

Uma das mudanças que eu acho muito significativas é o estabelecimento de metas de redução da criminalidade e incentivos pecuniários. Tal área integrada de segurança bateu a meta de redução? Ganha prêmio, ganha gratificação. Um pesquisador afirma, por exemplo, que o Prêmio de Defesa Social, para o cumprimento dessas metas estabelecidas, pode significar um 14º salário acumulado ao longo do ano. Não é pouca coisa.

Ponte ― Houve eixos do programa privilegiados em detrimento de outros?

Vitor Santos Oliveira ― Com certeza. A repressão qualificada ao crime foi um dos eixos privilegiados. Por outro lado, a gestão democrática da política de segurança pública foi o eixo menos privilegiado. Inclusive houve, em determinado momento, que um conjunto de organizações da sociedade civil decretou o fim do Pacto Pela Vida, porque já vinha patinando bastante essas instâncias de gestão democrática, de participação popular na política de segurança pública, e aí em algum momento as organizações da sociedade civil, cansadas de tensionar por uma maior participação, fazem, como ato simbólico, um enterro do Pacto Pela Vida.

Publicamente, parece que repressão qualificada ao crime e prevenção social do crime e da violência andam lado a lado. A gestão democrática, até quando a gente vai para os discursos, você vê que o negócio foi deixado de lado. A prevenção parece que não. Mas aí quando eu faço uma análise orçamentária, a gente vê que a prevenção social ao crime foi baseada em precariedade. Se a gente pega o Prêmio de Defesa Social e as gratificações do Pacto Pela Vida, em 2018 foram gastos R$ 37 milhões. Em 2019, R$ 85 milhões. Essa é a execução orçamentária de uma secretaria inteira, da Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude (SDSCJ), que executou R$ 86 milhões em 2018 e R$ 49 milhões em 2019. Isso fora toda a folha de pagamento das forças policiais, só como prêmio, só esse adendo representa a execução orçamentária de uma secretaria que, a meu ver, deveria ter muita centralidade. Os dados orçamentários mostram que esse eixo da prevenção social foram muito precarizados. Comparativamente, não houve dinheiro dedicado igualmente para as duas partes.

A Secretaria Executiva de Ressocialização era, até o começo de 2024, parte da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos. O orçamento dessa secretaria executiva era 95% do orçamento da secretaria como um todo. Ela tinha esse nome, mas para as pessoas de outros estados a Secretaria Executiva de Ressocialização, em Pernambuco, hoje virou Seap, Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização, que é uma secretaria de administração penitenciária, que cuida das unidades prisionais. Você tem uma secretaria que cuida das unidades prisionais dentro de uma secretaria de justiça e direitos humanos e é a administração penitenciária que consome todo o orçamento.

Isso, a meu ver, diz sobre o privilégio conferido à repressão, seja qualificada ou não. Não me parece que o aprisionamento esteja realizando uma repressão qualificada, pelo contrário, é um aprisionamento em condições bárbaras. Esse é um dado que aponta também para essa discrepância entre o que foi conferido para a repressão qualificada e o que foi conferido para as políticas sociais.

Outro ponto importante é que não só a prevenção social ao crime foi secundarizada, terciarizada, foi precarizada, mas ela também passa a ser colonizada por essa função da segurança pública, que é reduzir a criminalidade. Eu acho que isso é um dado muito relevante de uma certa transformação do sentido do Estado. Você pega políticas sociais e faz com que elas sirvam para reduzir a criminalidade.

Viatura da PM de Pernambuco com a inscrição “Pacto Pela Vida” | Foto: PM-PE/Divulgação

Ponte ― Como surge a sua pesquisa e como ela se desdobra aos impactos do PPV na violência de Estado?

Vitor Santos Oliveira ― Foi recorrente encontrar pesquisas que aderiram ao enunciado do Pacto Pela Vida. “Qual o sentido da política pública? Reduzir 12% ao ano os crimes violentos letais intencionais. Vamos analisar se a política pública teve sucesso. Reduziu? Sim, então sucesso. Reduziu? Não, então não sucesso”. Ponto. Muitas pesquisas vão se dedicar a fazer isso, das mais variadas formas. Por exemplo, uma pesquisa mais vinculada à questão das premiações e gratificações diz “ah, vamos entender se as premiações e gratificações funcionaram à luz da redução ou não dos CVLI”. Isso é uma coisa que foi bastante recorrente.

Existem pesquisas que dizem “bom, até 2014, sucesso, depois de 2014, não sucesso”, mas o que tem abaixo do enunciado? Porque uma política pública que também foi considerada uma intervenção transversal e científica na sociedade não se reduz só a essa meta. Diversos autores estão dizendo que ela efetivamente logrou em instituir uma nova governança no corpo do estado, isso não é pouca coisa. Para além dessas metas enunciadas, o que a gente pode olhar? Eu fui olhar a violência de Estado. Existem várias camadas que estão abaixo disso que foi enunciado pela política pública. Eu tenho essa preocupação: “o Pacto Pela Vida quer reduzir a violência, mas como a violência de Estado ocorre aqui?”.

Eu tinha questões que não via reverberar no que estava sendo ou pesquisado na academia, ou no que estava sendo levantado pelo jornalismo naquele momento. A reportagem da Paula Passos na Ponte é o primeiro momento em que alguém levanta as primeiras informações sobre os mortos pela polícia, e aí você vê que a coisa parece ser meio diferente, porque havia um consenso de que o movimento foi de redução da violência, mas a Paula mostra que a violência de Estado, no sentido das mortes decorrentes de intervenção policial, decolou.

A Paula faz um pedido via LAI e eu falo “bom, vou fazer isso”. Meu mestrado começou em 2020, na pandemia. A Paula puxou os dados até 2017, e eu falo “já posso completar essa série histórica”. Tinha um trabalho a ser feito, e eu acho que era um trabalho importante. Ela fez uma reportagem, e eu posso tentar desenvolver esse debate na minha dissertação. Disso, eu começo a olhar para a violência de Estado na vitimização, nos assassinatos cometidos pela polícia. Mas também acabo ampliando isso, vou lidar lá com os excludentes de ilicitude, vou lidar com o encarceramento, com as mortes que ocorrem dentro da cadeia e com as mortes de egressos, de sobreviventes das cadeias, para tentar fazer um panorama do que são as diversas expressões da violência de estado.

Ponte ― Sua pesquisa diz que o PPV aumentou a violência direcionada às populações jovens, racializadas e periféricas. Como isso aconteceu?

Vitor Santos Oliveira ― Quando eu digo isso, eu falo especificamente sobre violência de Estado. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública está mostrando há muito tempo que a maior parte das MVIs (Mortes Violentas Intencionais), que é a métrica que eles trabalham, são homens, jovens, pretos. Pronto, isso é um dado. A gente tem que enfrentar isso. Eu também não estou dizendo nada muito novo, tem séries históricas gigantescas que falam sobre isso. Pretos, pobres e periféricos são mais atingidos pela violência letal. Esse é o pano de fundo.

Aí, quando a gente vai olhar para a violência de Estado, a gente encontra dados que, como se não bastassem os que eu acabei de trazer, em 2020, no Recife, todos os mortos pela polícia eram pessoas negras. No estado, apesar da população negra corresponder a 61,9% da população total, 97% dos mortos pela polícia eram negros. Aí a gente olha para o encarceramento, e no encarceramento, novamente, os dados mais imparciais mostram que as cadeias estão entupidas de jovens, pretos, periféricos, de 18 a 30 anos, réus primários, uma parte expressiva presos provisórios, muitos deles não foram presos por crimes violentos – a maior parte deles por tráfico de drogas e crimes contra o patrimônio.

Não só a violência policial letal cresce, mas o encarceramento em condições torturantes cresce enormemente, as mortes ditas naturais, dentro das unidades prisionais, crescem. Jovens de 18 a 30 anos morrendo de mortes naturais, por doenças evitáveis. Essas mortes só podem ser entendidas como produzidas. Por ação ou por omissão, um jovem de 18 a 30 anos não morre assim por uma doença com tratamento. Alguma coisa está acontecendo aí.

Ponte ― A forma como o PPV foi analisado por pesquisadores reforçava seu enunciado público?

Vitor Santos Oliveira ― Existe um conceito de sociologia estadocentrica, uma sociologia que olha para os desígnios do Estado. Basicamente é “o Pacto Pela Vida enunciou que precisa reduzir 12% [das mortes violentas ao ano]. Vamos ver se reduziu 12% ou não”. O que acontece no mundo fora disso, essa sociologia não está atenta. O que eu tento mostrar na minha dissertação é que esses resultados são técnicos, são violentíssimos, são racistas e são muito sérios. Não dá pra gente não olhar pra isso. Eu entendo que pesquisar é não só desvendar a realidade, mas fazer isso no sentido de transformar ela.

Veja só, onde outros pesquisadores encontraram uma redução da violência e depois uma subida da violência, eu encontrei um aumento constante. Um aumento constante das pessoas mortas pela polícia, um aumento constante das pessoas encarceradas em condições torturantes, das pessoas que morrem nessas condições torturantes, das pessoas que sobrevivem às cadeias e vão ser mortas nas ruas, pela violência policial ou pela violência em geral. É uma questão de enfrentar a complexidade do processo social. Temos que mostrar quais podem ser os resultados disso: uma produção de pesquisas que, durante muito tempo, que não viu uma coisa que está impactando muita gente.

Ponte ― Mortes cometidas por policiais são contabilizadas na meta de redução do PPV?

Vitor Santos Oliveira ― Isso foi um tremendo imbróglio. Entre os seus aspectos inovadores, esse é um deles. “O Pacto Pela Vida faz o que nenhum estado faz”. Aqui em Pernambuco a gente fala muito do nacionalismo pernambucano. Em Pernambuco tudo é o maior em linha reta do Brasil, as pessoas brincam. O Pacto Pela Vida, a meu ver, tem bastante disso. “É o melhor programa”, “o mais moderno”, etc. O que nenhum outro estado do Brasil faz, Pernambuco faz: ele inclui as mortes cometidas pela polícia na estatística oficial de redução da violência. Então os CVLIs, teoricamente, incluem mortes causadas pela polícia. Ninguém faz isso, todo mundo dá um olé, dribla, tem série histórica que muda a cada seis meses. Pernambuco não.

Mas eu fiquei com essa pulga na orelha e queria comprovar isso. Porque certos documentos dizem que as estatísticas de CVLI inclui a violência policial. Em algum momento o estado de Pernambuco denomina como MIAE, Mortes por Intervenção de Agente do Estado, e depois vira o que se nacionalizou pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, MDIP, Mortes Decorrentes de Intervenção Policial. Baixei as planilhas de CVLI, peço via LAI e tem um buraco nas estatísticas. As mortes por policiais não aparecem. Se você ler os documentos, eles dizem que conta, mas eu não acho essas mortes nas estatísticas. Eu em algum momento confronto a planilha de CVLI, do governo pernambucano, que eu acho que tem série desde 2008, com a planilha de MVI, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Teoricamente, para o estado de Pernambuco, elas deveriam ser iguais, porque são os mesmos crimes que estão sendo computados nas duas. Mas tem diferença, o MVI é maior que o CVLI.

Em síntese, o CVLI conta as mortes cometidas pelas polícias se, e somente se, elas não foram cobertas por excludente de ilicitude. E todas foram. Eu peço por LAI as mortes cometidas pela polícia, vem um dado desagregado. Na hora que eu confronto isso com os dados que já tenho, dos excludentes de ilicitude, os números batem perfeitamente.

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Ponte ― Em sua dissertação há uma análise sobre o neoliberalismo brasileiro e a constituição do trabalho. Que papel esses elementos ocupam no tabuleiro do crime, da segurança e das políticas públicas sobre esses assuntos no Brasil?

Vitor Santos Oliveira ― Há um debate teórico muito intenso a esse respeito. Tento fazer um certo arremate, alguma reflexão teórica sobre essa pilha de corpos que eu venho mostrando na dissertação. Eu acho que nós temos muitos dados, indícios, muita teoria produzida a esse respeito. É possível afirmar que a gente vive um momento de crise do trabalho brutal. Isso é um dado muito relevante. Isso não é só neoliberalismo, no sentido das políticas conscientes dos políticos que querem atacar a classe trabalhadora. Isso tem relação com o desenvolvimento do capitalismo global, a terceira revolução industrial, telecomunicações, robotização, agora inteligência artificial. E acho que isso tem diminuído a quantidade de absorção de camadas cada vez maiores da população no mundo do trabalho. A classe trabalhadora, os pretos e pobres, periféricos, concentrados nas periferias metropolitanas, têm uma quantidade gigantesca de trabalhos precários. Ninguém se dá ao luxo de ter um trabalho só. “Ah, eu só trabalho na biqueira”, ou “eu só sou Uber”. É um nível de crise do trabalho em que as pessoas trabalham cada vez mais, ganham casa vez menos e em condições cada vez mais desprotegidas.

Isso vem acontecendo ao redor do mundo. Nos países subdesenvolvidos, do terceiro mundo, de modernização tardia, isso é cada vez mais intenso. A gente nunca teve um mundo do trabalho protegido. A CLT nunca se realizou para mais da metade da população brasileira, o trabalho sempre foi precário. Mas isso vai se intensificando cada vez mais.

Tanto que, para quem tem as menores condições de se inserir no mundo de trabalho protegido, essas pessoas vão cada vez mais sendo impelidas a tentar a sorte no crime, que, diga-se de passagem, é uma das coisas mais arriscadas. Metade dos presos no Brasil não foram nem julgados ainda, é uma aposta de alto risco e as pessoas estão conscientes disso, as pessoas não estão sem ver isso. Eu acho que dá para relacionar esse desenvolvimento das forças produtivas, o neoliberalismo como uma coisa mais no campo da política formal, de redução dos direitos sociais, da proteção do trabalho e tal. Há uma infinidade de diferenciações de como é que esse descarte do mundo do trabalho vai acontecer. Ser preso em um complexo prisional em Pernambuco é outra coisa do que quem está trabalhando como MEI, mas de toda forma o processo de racialização tem relação com as dificuldades de inserção no mundo do trabalho, e quem apresenta as piores chances de se inserir no mundo do trabalho vai ser afetado das maneiras mais brutais. É isso que a cadeia faz.

Veja só o que é a cadeia em Pernambuco e em tantos outros lugares. “A pena não pode passar do preso para a sua família” é balela. O processo de encarceramento brasileiro seria impossível, são as famílias que arcam com os custos de ampliação do encarceramento no Brasil. O estado poupa orçamento para pagar gratificação e as famílias estão lá levando jumbo [sacola que as familiares levam com alimentos e itens de higiene pessoal para pessoas presas], levando comida, pagando aluguel dentro das cadeias. Porque tem presídios em Pernambuco com 450% de taxa de ocupação. São 4,5 pessoas para cada vaga. Está posta a violência econômica. As pessoas vão ter que mobilizar dinheiro para ver quem fica em melhores lugares, como em todo o resto da sociedade, inclusive.

Ponte ― Essa dificuldade inserção no mercado de trabalho e de ressocialização de pessoas presas é o que você chama de “expansão das penalizações para fora das cadeias”?

Vitor Santos Oliveira ― É sim. Um dado que eu encontro na dissertação e que eu acho muito relevante, embora não ache que seja uma particularidade de Pernambuco, é que a população em regime aberto é um terço da população penalizada. Inclusive, para mim foi um esforço, eu sempre falava “população prisional”, e isso é quase uma imagem do começo do século 20, dos filmes, em que o cara sai, bate a tranca nas costas dele e ele fala “cumpri minha pena, paguei minha dívida com a sociedade”, vai para a rua e acabou, não tem mais penalização.

A gente vive um processo em que a penalização sai da cadeia. As pessoas cumprem pena em condições atrozes. Jovens de 18 a 30 anos morrem de doenças tratáveis e evitáveis. E ainda assim, eu encontrei isso no trabalho de campo no Patronato Penitenciário de Pernambuco, as pessoas vão passar um, dois, quatro, dez anos assinando a documentação do regime aberto. Não é a mesma coisa que estar preso, atrás das grades, mas também não é “ficou para trás”.

E dá para pensar, também, em como isso vai transformando as periferias hoje em dia. Os enquadros, as tornozeleiras, tudo isso são formas da gestão policial das periferias. Tem um monte de gente penalizada, então precisa de um monte de polícia para cuidar delas. Acaba sendo essa a lógica.

Esses são elementos de uma mudança histórica que dá pra gente ver quando olhamos para o encarceramento, quando a gente olha para como a política de segurança vai adquirindo centralidade. Ela não está gerindo quem está dentro da cadeia, e já não está gerindo só quem está dentro da cadeia e seus familiares. Ela está gerindo também um monte de pessoas que estão em liberdade, que vão para a rua, que voltam.

Ponte ― O Pacto Pela Vida melhorou a segurança de Pernambuco?

Vitor Santos Oliveira ― Uma resposta sintética é que não, não melhorou. Se melhorou, usando uma resposta otimista, eu diria que muito pouco, e por pouco tempo. Mesmo os estudos que estão mostrando que o Pacto Pela Vida reduziu a violência, ao tirar todo o resto da tela, estão dizendo que isso durou muito pouco tempo. Eu acho que ele não reduziu a violência de maneira sistemática ou trouxe soluções duradouras.

Não acho que seja uma questão só de política pública, mas uma questão do desenvolvimento da sociedade, do desenvolvimento do capitalismo. Não acho que as intervenções do Pacto Pela Vida tenham reduzido a violência. Elas aumentaram a violência de Estado e elas reduziram muito timidamente as demais violências.

Inclusive, esse é um ponto importante sobre aquela conversa das perspectivas estadocêntricas. Caberia se perguntar até “tá, o crime caiu lá de 2007 a 2014, mas será que foi o Pacto Pela Vida?”. Um monte de coisa mudou, todos os estudiosos dizem que o crime é algo multicausal, super complexo. Tem muitos autores que estão olhando e falando “bom, uma coisa que reduziu a criminalidade foi o monopólio do crime propiciado pelo encarceramento em massa”. Caberia, é uma pergunta que eu faço na dissertação, ver se foi o Pacto Pela Vida mesmo que causou essa redução na violência. Outros autores estão olhando e dizendo “houve um momento de ajuste das facções criminais, do tráfico internacional, e que isso reduziu os crimes violentos no Brasil inteiro”.

Muitas pesquisas olham o Pacto Pela Vida e falam “foi o Pacto Pela Vida que reduziu”, mas eu fico com a dúvida. É uma questão bem complexa e eu não atribuiria somente ao Pacto Pela Vida. De toda forma, foi uma redução muito pontual e muito tímida.

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Ponte ― Ao fim, foram garantidos avanços na prevenção social?

Vitor Santos Oliveira ― Pelos dados que eu encontrei, não. Novamente, talvez de maneira tímida e pontual, mas o que eu mostro é que houve uma destinação orçamentária prioritária para a repressão, algo que era para estar no mínimo mais equilibrado não aconteceu. As políticas sociais foram precarizadas, então como é que essa prevenção social ao crime vai se realizar?

Não quero atribuir tudo ao Pacto Pela Vida, longe disso, mas Recife, pelos últimos dados que vi, era a capital com maior taxa de desemprego entre jovens. Quais foram as políticas sociais para isso? Não vejo políticas sociais de um décimo-quarto salário. Para mim, isso já é um certo indício de que essas políticas foram muito precarizadas e não lograram fazer uma mudança estrutural que aumente a qualidade de vida, que assegure direitos, que assegure moradia, que assegure acesso à saúde.

Falando assim, fica até evidente que é demais para uma política de segurança pública, mas como ela enunciou que pretendia isso, fica essa leitura de que não alcançou. A gente teria que pensar no conjunto dessas políticas sociais para além de uma discussão de segurança pública, a política social precisa ser pensada em termos da sociedade que a gente quer. Discutir política social em termos de combater crime é aceitar a miséria.

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