‘Eu lido com o medo da morte do meu filho todos os dias’, diz mãe de LGBT

    Mônica Lemes é integrante do coletivo Mães pela Diversidade e conta os desafios de ser mãe de Igor, jovem negro, gay e periférico em uma sociedade conservadora que dá ‘carta branca para matar negros e LGBTs’

    Igor e Mônica fazem parte do movimento Mães pela Diversidade, que luta pela vida de LGBTs | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    “Eu quero meu filho vivo”. Essa foi uma das falas de Mônica Lemes, 44 anos, mãe de LGBT, em uma entrevista repleta de sorrisos e lágrimas. Ao lado do filho, Igor Lemes Rodrigues, 18 anos, ela recebeu a Ponte em sua casa, em Pirituba, uma das quebradas da zona oeste de SP, na véspera do dia das mães, comemorado neste domingo (12/5). Desde 2017, Mônica e Igor fazem parte do coletivo Mães pela Diversidade, grupo formado por mulheres que lutam pelos direitos dos filhos LGBTs enquanto estão vivos.

    “Nossos filhos são mortos e excluídos da sociedade porque simplesmente são o que são. Simplesmente por não estarem dentro dos padrões. Temos um governo que dá carta branca para matar negros e LGBTs. Eu tô aqui pra romper com essa heteronormatividade, pra lutar e pra gritar. Se tiver que morrer, eu vou morrer por essa causa. Não sou LGBT, mas eu sou mãe de LGBT”, brada a mãe, que entrou para a militância e levou seu filho junto.

    Única mulher entre quatro irmãos, Mônica precisou lidar ao longo de sua trajetória com o machismo e o patriarcado. Natural de Catalão, cidade interiorana de Goiás, cerca de 260 km da capital Goiânia, chegou em São Paulo aos 4 anos de idade. “Crescemos com muitas dificuldades, com um pensamento muito patriarcal, onde a mulher tem que cuidar dos filhos e o marido trabalha fora. Cresci inserida nesse contexto, em que os meus três irmãos tudo pode e eu nada podia. Eu tive que me autoafirmar aos 15 anos de idade na questão de briga de gênero. Mas que eu também não entendia muito, eu só sabia que eu devia ter o direito igual ao dos meus irmãos”, conta Lemes.

    Quarenta anos depois, Mônica lida com o medo de ser mãe de um jovem negro, gay e que não performa masculinidade. Além de Igor, Mônica tem mais dois filhos: Iago, de 23 anos, e Ivan, de 15. Os dois, diferentes do irmão do meio, são héteros e brancos. Por isso, argumenta a mãe, a luta por Igor é maior. “Eu criei eles sozinha, com o apoio familiar dentro de um contexto machista, tudo masculino a minha volta, com aquele discurso de que o homem pode tudo. Sempre teve a questão do preconceito velado que eu tive que romper dentro do ambiente familiar”.

    Da esquerda para direita: Ivan, Igor, Mônica e Iago | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    Desde os primeiros anos da vida de Igor, a mãe já reparara a diferença entre eles e os irmãos. Mônica, que é pedagoga e atuava como professora à época, decidiu que deixaria o filho livre para ser quem ele era, assim como fazia com os outros dois filhos. “Me falavam que eu tinha que cuidar da sensibilidade dele, porque se eu não cuidasse ‘ele viraria viado’. Eu tive que brigar pelo Igor, brigar para ele ser como ele é. Ele era uma criança sendo uma criança”, relata a mãe, que hoje estuda Serviço Social na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) para ajudar na luta pelos direitos LGBTs.

    Apesar de permitir que o filho tivesse toda a liberdade de ser quem era, Mônica acredita que poderia ter feito muito mais por Igor. Naturalizar a diversidade do filho, explica Lemes, a fez não perceber as opressões que Igor passou durante a infância. “Eu estava, de uma certa forma, não assumindo isso naquele momento. Eu poderia ter assumido que o meu filho era LGBT e lutado por ele. Na escola ele recebeu tratamentos diferentes por causa da sensibilidade dele. Que bom que eu tenho um filho sensível, era o que eu dizia. Mas eu não entendia que isso era eles falando da homossexualidade dele. Eu via como algo natural, mas as outras pessoas não”, desabafa.

    Igor conta à Ponte como foi esse momento da sua trajetória, quando percebeu que não era como as outras crianças ao seu redor. “Na minha infância eu percebia muito que eu era diferente dos outros meninos, não tinha o mesmo interesse que eles, não fazia nada do que a sociedade diz ser coisa de menino. Eu fui muito excluído, porque no ambiente masculino eu era muito sensível, no ambiente feminino eu era menino. Eu fui crescendo e me entendendo. Sempre fui de ter mais amizades com meninas, estar rodeado de meninas”, explica o jovem.

    A saída de armário

    Mesmo com o apoio da mãe, haviam cobranças dentro do ciclo familiar de Igor, principalmente dos tios e primos. “Eles me cobravam uma saída do armário sendo que eu nem sabia o que eu era. Eu não sabia o que estava acontecendo comigo, já que fui criado para achar que homem é homem, mulher é mulher, menino beija menina e é isso. Quando fui crescendo vi que não era bem assim que funcionava as coisas e percebi que eu não tinha interesse algum por meninas, mas me forcei por um tempo. Em 2015 eu namorei por 7 meses com uma menina que hoje é minha melhor amiga. No meio do relacionamento eu me assumi bissexual. Ela virou e falou quando terminamos ‘Igor, pelo amor de deus, você é bi de bicha'”, relembra Igor.

    Aos 15 anos, Igor percebeu que não estava conseguindo mais lidar com isso sozinho e que precisava contar para sua mãe que, de fato, era LGBT. Nessa época, a depressão e ansiedade ganharam mais forças. “Em 2015 foi uma luta interna muito grande pra entender o que estava acontecendo, pra saber o que eu tinha que fazer da minha vida, pra quebrar essas paredes da heteronormatividade. Quando comecei a entrar nesse conflito, veio a ansiedade e a depressão, eu ficava trancado no meu quarto, não queria sair por nada, só ia pra escola. Nesse momento eu pensei: ou eu saio do armário ou eu me mato”, desabafa o jovem, que contou para a mãe que era bissexual no dia 6 de janeiro de 2016.

    Mãe e filho lutam contra a heteronormatividade e o racismo | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    A saída do armário de Igor, fez com que Mônica mudasse sua postura no mundo. “Quando ele me contou que eu fui lutar realmente pela causa, porque aí eu percebi que poderia ter feito muito mais pelo meu filho quando ele era criança, ele era uma criança LGBT e eu simplesmente deixei passar isso. Entende como isso chega a ser negligência? Não uma negligência minha enquanto mãe, mas a sociedade oprime tanto que mesmo eu com a minha mente não tinha entendido que estavam falando que o meu filho era gay. A minha história desabrocha quando realmente eu olho para o meu filho, que estava tremendo, com os lábios brancos e diz ‘mamãe eu sou bi'”, conta Mônica emocionada ao lembrar do dia que mudou não apenas a vida de Igor, mas também a sua.

    A mãe fez questão de contar para os outros dois filhos sobre a sexualidade de Igor. “Passaram três dias e eu conversei com o meu filho mais velho, pois eu tive que prepará-lo, olha que absurdo você ter que prepara o terreno para pessoa ser o que ela é. Fui conversar com o Iago que super acolheu de uma forma linda ‘mãezinha, é meu irmão’. Fui para o caçula depois de um tempo, contei e ele também acolheu de uma forma linda, mas como ele é todo heteronormativo disse que se alguém mexesse com o irmão ele ia bater, e aí tem que ir lá e ensinar que não é pela violência que se resolve, mas esse era o jeito dele falar ‘eu acolho o meu irmão’. Depois que o Igor sentiu essa tranquilidade, aí sim ele pode dizer que não era bi e sim gay”.

    Algum tempo depois de contar para a família que era gay, Igor passou a mostrar que a masculinidade não era algo que o atraía. O jovem se sente mais confortável usando roupas ditas como femininas e usar brincos e maquiagem. Também foi nessa época que ele assumiu os cabelos afro. “Ele começa a colocar pra fora a identidade dele, a expressão de gênero dele. Aí foi uma outra briga, falar que ele ia se maquiar sim, que ia usar o cabelo afro sim e que ia usar roupas feminilizadas. É muito forte isso, foram várias barreiras que enquanto mãe eu tive que me colocar para o meu filho seja o que ele é. A sociedade patriarcal enxerga que o meu filho gay é uma pessoa frágil, que é uma pessoa delicada, e só a mulher pode ser delicada, mal sabem eles o quanto nós mulheres somos fortes”, defende Mônica.

    A luta contra o racismo e a heteronormatividade dentro da escola

    Em casa, tudo fluía bem. Igor tinha a aceitação e o amor da mãe, dos irmãos e dos avós, que mesmo sem entender nunca se opuseram às decisões do jovem. Na escola, porém, a situação era outra. Mônica teve que brigar muito para que o filho pudesse ser ele mesmo fora de casa. Mas com muito tato, já que Igor é bolsista em um colégio particular católico nos Jardins.

    “Eu já tinha passado pela fase das pessoas me pressionarem, por causa da minha sexualidade. Quando eu realmente chutei a porta do armário, vem a coordenação da escola e começa a barrar algumas coisas. Eu comecei a usar o turbante pra ir pro colégio, porque é uma coisa que eu gosto de usar, mas chega um momento que a coordenadora me leva até a sala dela e fala que eu não posso mais usar o turbante porque ele não é uma coisa de menino. O turbante tinha a ver com a minha religião, com a minha crença e com a minha descendência porque eu sou negro”, conta Igor, que frequenta um terreiro de umbanda e candomblé há 3 anos. “Eu fui muitas vezes na escola para defender o Igor. Antes de ser gay, ele é negro, e o uso do turbante deveria ser encarado como o uso do boné. O que impede ele de usar? O preconceito. Não tem outra fala”, critica Mônica.

    O uso da maquiagem também foi proibido pela direção do colégio. “Teve um dia, no ensino médio já, que eu fui de batom para escola e uma outra coordenadora pede para eu tirar para evitar conflitos dentro do colégio, alegando que ela não tem nada contra, mas que o colégio não permitia o uso do batom, mas para homens, porque as meninas usavam batom vermelho. Eu ainda tenho muito essa luta lá de falar por quem é excluído, de falar sobre o preconceito velado. Sempre peço que as pessoas abram um pouco a mente e permitam novas coisas no colégio para evitar vária questões psicológicas. Eu passei por esses momentos de pressão psicológica, de não me aceitar, de me esconder e eu sei o quanto é ruim não poder ser você mesmo”, relembra Igor.

    ‘Eu temo pela vida do meu filho’

    Ser mãe de LGBT, negro e periférico não é fácil. Todos as vezes que Igor sai de casa, Mônica teme não ver mais o filho com vida. “No contexto que estamos no Brasil hoje, onde se tem licença para matar LGBTs e negros, o que dói é que meu filho faz parte dessa minoria. A gente lida com o medo da morte dos nossos filhos. Meu filho pode sair e não voltar, mas não é somente pela violência, a gente tem medo de que ele saia e não volte por um ódio instalado, simplesmente por eles serem quem eles são. Eu só quero o meu filho vivo, assim como quero todos os outros. Eu quero que o meu filho não seja estatística, que ele não vire um número, assim como tantos já viraram”, relata Lemes.

    A eleição de Jair Bolsonaro (PSL) à presidência aflorou o medo de Mônica e de Igor. Em outubro, a Ponte conversou com outra mãe de LGBT, também do coletivo Mães pela Diversidade, para mostrar como o temor pela vida dos filhos aumentou durante a corrida eleitoral. “Tive muitos conflitos familiares nesse período, em relação aos meus tios e primos. Eu comuniquei que não continuaria no grupo, pois eles votaram em alguém que vai contra tudo que eu sou. Eu precisei deixar de ser eu por um tempo. Até o fim do ano eu parei de usar maquiagem e brincos. Me deixava muito tenso sair daqui de casa, que é na periferia, e chegar no Jardins, onde fica minha escola. Por duas horas eu me sentia exposto e sujeito a qualquer tipo de agressão, verbal ou física”, conta Igor.

    Durante a corrida eleitoral, pela primeira vez, Mônica pediu ao filho que não usasse brincos e maquiagem na rua. “Eu implorei pro meu filho não usar brincos e não usar maquiagem. Pedi para esperar a poeira abaixar para ele voltar a ser quem ele é. Pedi pro meu filho voltar para o armário, não ser quem ele é, e isso me fez muito mal”.

    O medo de Mônica aumentou quando ela presenciou uma conversa, cheia de discurso de ódio, quando voltava da faculdade. “Três senhores, todos trabalhadores, estavam falando no ônibus que, assim que ele [Jair Bolsonaro] ganhasse, eles comprariam uma escopeta para atirar no primeiro que desmunhecasse a mão e agisse como viadinho, porque homem tinha que ser homem. Eu via o meu filho com esse tiro de escopeta na cara. Eu voltei pra casa sem brigar, sem falar nada e isso me fez muito mal. Eu me senti covarde. Naquela semana eu precisei ir três vezes à terapia. O Igor não sabe, mas eu chorei muito por causa disso. Às vezes mãe chora escondido, né? Quando Bolsonaro ganhou, fiquei pensando qual seria o primeiro que daria o tiro de escopeta no meu filho”, confessa Mônica.

    Não se silenciar diante de discursos LGBTfóbicos também faz parte da luta de Mônica. “Essa semana um senhor começou a falar mal de LGBTs perto de mim e eu retruquei ‘eu sou mãe de gay e não aceito que você fale dessa forma do meu lado’, pois a luta é também não se silenciar, temos que nos posicionar”.

    “O Igor é exatamente o conjunto que a sociedade não quer ter. Ele é negro, é gay, não é um gay masculinizado e é macumbeiro. Quando ele sai com os irmãos, que são brancos e heterocisnormativos, é óbvio que é ele que vai ser abordado pela polícia se eles forem parados”, critica a mãe.

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