Exame criminológico é pseudociência e pode levar a colapso carcerário, dizem especialistas

Obrigatoriedade voltou à Lei de Execução Penal após sanção de Lula à Lei das “Saidinhas”. Em São Paulo, gasto para fazer avaliação passaria dos R$ 66 milhões

Ilustração: Junião

A obrigatoriedade dos exames criminológicos para progressão de pena voltou à Lei de Execução Penal (LEP) por meio da lei nº 2.253/2022 (lei das “saidinhas”, como ficou conhecida). O texto foi sancionado em abril pelo presidente Lula (PT), que vetou a restrição das saídas temporárias para visitas a familiares. Enquanto os parlamentares tratam da derrubada ou não da parte vetada, o exame já em vigor preocupa especialistas. Eles acreditam que a imposição do exame, tido como pseudociência, pode levar a um colapso no sistema carcerário. O gasto previsto apenas para São Paulo — estado que comporta 1/4 da população prisional nacional — é de R$ 66 milhões por ano, apenas com o pagamento de pessoal.

“O exame criminológico é um tema que não teve centralidade no debate no Congresso, mas ele é tão ou mais danoso do que o próprio fim da saída temporária”, diz Camila Tourinho, coordenadora auxiliar do Núcleo de Situação Carcerária (Nesc) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Conforme diz a defensora, faltam hoje profissionais para atender a demanda atual de exames em São Paulo. No estado, há inclusive o credenciamento de equipes para dar conta dos atendimentos.

Mesmo com mais contratações, afirma o presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Pedro Paulo Bicalho, o problema é maior. Os exames não têm rigor científico, não conseguem atestar a periculosidade e reforçam visões estereotipadas sobre os presos.

“O que vamos ver é uma imensidão de massa carcerária que não conseguirá progredir. Portanto, aumentando a hipertrofia no nosso sistema prisional, que já é a terceira maior do mundo”. Isso também pode levar a rebeliões, diz o presidente do CFP. “Nós sabemos o quanto produz insatisfação na massa carcerária quando ele tem um direito negado, como, por exemplo, o direito à progressão”, completa.

Exame de futurologia

A criminóloga Aline dos Passos chama de exames de exercício de futurologia. “Os exames criminológicos sempre foram um amontoado de achismos, reforço de estereótipos e etiquetamentos, e sobretudo, uma maneira de os juízes se eximirem do risco de uma decisão pela qual podem ser cobrados pela opinião pública embebida em populismo penal”, diz. 

O que a lei sancionada fez foi remontar o texto original da LEP de 1984, que previa os exames criminológicos. O dispositivo descrito no artigo 8 falava na instituição de uma comissão avaliativa “para obtenção de dados reveladores”. 

Não há no texto original um detalhamento de como o exame deveria ser aplicado. A lei fala apenas que a comissão poderá entrevistar pessoas, requisitar informações sobre os condenados e realizar exames ou diligências necessárias. 

A determinação da realização do exame para a progressão de regime foi suprimida pela lei 10.792/2003. O entendimento, à época, já era de que o exame não tinha nenhuma eficácia científica comprovada.

Mesmo com a decisão, muitos juízes continuaram a pedir os exames. A chancela final, favorável ao pedido, veio do Supremo Tribunal Federal (STF). Por meio da súmula vinculante 26, houve permissão para que juízes pudessem requisitar esse tipo de exame. “Portanto, cai a obrigatoriedade, mas não cai a proibição”, explica Pedro Bicalho.

Em 2011, o Conselho Federal de Psicologia emitiu resolução proibindo que psicólogos fizessem esse tipo de exame.  Para o CFP, esse tipo de avaliação pontual não atende aos princípios éticos da psicologia. 

Para explicar a visão, Pedro faz uma analogia com a escola. Ele diz que não é compreensível que um professor aplique uma prova sem dar aula “porque ele vai estar avaliando algo que ele não acompanhou”. 

“É mais ou menos parecido. A avaliação chamada de exame criminológico não pode ser, ética e tecnicamente falando, uma avaliação pontual. Ela precisa ser resultado de um acompanhamento que não tem existido”, acrescenta. O ideal, defende Bicalho, seria que psicólogos e demais membros da equipe multifuncional acompanhassem todo o período de prisão e não apenas sob o espectro pontual.

Contudo, a validade da resolução do CFP durou pouco. Por meio judicial, ela foi derrubada em 2015 e, hoje, não há outra que a substitua formalmente. Mesmo assim, Bicalho diz que o Conselho é contrário aos exames. Segundo ele, pareceres técnicos contrários à avaliação foram enviados ao Congresso e à Presidência na época da votação e da sanção. 

Para a criminóloga Aline dos Passos, sob o escrutínio moral, a avaliação criminológica tem por função apenas confirmar que o crime era o “destino” daquela “personalidade”. Para Aline, a decisão do CFP era acertada, já que os psicólogos não têm função de videntes. 

“Eles podem participar da construção de um programa de cumprimento de pena (individualização da pena, para usar linguagem técnico-jurídica mais adequada), mas não dizer se uma pessoa deve ou não progredir, se tem probabilidade ou não de cometer crimes, uma vez em meio aberto”, fala Aline.

Gasto de mais R$ 66 mi 

Uma estimativa feita por entidades contrárias ao exame criminológico e ao fim das saídas temporárias, projetou um gasto anual de R$ 66.193.081,60 apenas em São Paulo para realização dos exames. O dado considerava apenas o gasto com a remuneração de profissionais credenciados. Conforme o levantamento, cada exame custa aos cofres públicos R$ 648,85.

Esse número é seis vezes maior do que o orçamento da Secretaria Estadual de Políticas para a Mulher em 2024, com pouco mais de R$ 10 milhões, e também seis vezes mais do que todo o orçamento de políticas estaduais para egressos do sistema prisional.

Em São Paulo, explica Camila Tourinho, há falta de profissionais para atender à demanda atual. “São equipes volantes, ou seja, sequer têm vínculo com a unidade prisional”. Esse distanciamento torna ainda mais pontual a avaliação. “É uma exigência que não faz sentido e acaba por estigmatizar as pessoas presas”, completa. 

Como não há bases científicas para a realização do exame, é difícil, diz Camila, falar como até mesmo descrever como são feitas essas avaliações. “Não existe nenhuma regulamentação sobre isso. Os critérios são bem obscuros. Cada equipe faz de uma determinada forma, dando a possibilidade de uma análise que passe por critérios morais ou ideológicos”, fala. 

Segundo Camila, há casos em que os juízes encaminham perguntas que a equipe deve responder sobre o condenado, mas isso não é a regra. De forma geral, os exames reúnem dados sobre o histórico do sentenciado, do comportamento durante o cumprimento da pena e algum apontamento sobre planos. Camila fala que o que os juízes esperam é que seja feito um prognóstico de reincidência, “o que é impossível de se fazer”, diz.

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A defensora conta que já teve contato com exames onde as equipes exigiram do sentenciado declaração de arrependimento. Ela cita que já lidou com situações em que as pessoas diziam ser inocentes e, no exame criminológico, eram confrontadas pela declaração de arrependimento: “como elas iam responder a essa pergunta?”.

A realidade nas unidades prisionais é de equipes multidisciplinares sobrecarregadas e unidades que não as possuem, diz Camila. Os profissionais (assistentes sociais e psicólogos, por exemplo) deixam de cumprir as funções a que estão encarregados para dar conta da realização deste tipo de atividade, o que deve se agravar.

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