Fábio está preso desde fevereiro confundido com ladrão de banco

Mecânico negro foi detido após ser alvo de reconhecimentos irregulares; imagens de câmera de segurança mostram homem com características distintas. Para advogada, acusação se baseia somente no passado do réu

Dryelle Albertina Vianna Santana denuncia que o marido Fábio Gomes Ribeiro está preso injustamente há quatro meses. | Foto: arquivo pessoal

Desde setembro de 2021, o mecânico Fábio Gomes Ribeiro, homem negro de 47 anos, tentava se desvincular do seu passado e reconstruir sua vida ao lado de sua família. Como egresso do sistema prisional, passou a ter uma rotina com as suas três filhas de 2, 4 e 6 anos e sua esposa, fazendo “bicos”, procurando emprego fixo e ajudando nas tarefas de casa. Foram quase cinco meses em liberdade até que, na manhã do dia 23 de fevereiro deste ano, Fábio foi surpreendido por policiais civis que entraram em sua residência em Itaquera, na zona leste da cidade de São Paulo.

“Bateram na porta, ele abriu e um policial já bateu nele, começou a dar socos nele perguntando da arma e da roupa. E ele: ‘Que arma? Que roupa? Não estou fazendo nada, estou na minha casa, o que aconteceu?’ e eles falaram: ‘você roubou um banco’”, conta sobre o momento Dryelle Albertina Vianna Santana, 33, recepcionista hospitalar e esposa de Fábio, que encontrou a casa revirada horas depois. Apesar de negar as acusações, o mecânico foi levado para a 5ª Delegacia da Disccpat (Divisão de Investigações sobre Crimes contra o Patrimônio), do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), e desde então não voltou mais para a casa.

Há quatro meses Fábio segue preso no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Pinheiros IV confundido com um homem que participou de um roubo a uma agência do banco Itaú no Parque do Carmo, zona leste da capital paulista, na tarde do dia 14 de janeiro deste ano. De acordo com o boletim de ocorrência assinado pelo delegado Pedro Ivo Correa L. dos Santos, uma das vítimas que trabalha como segurança do banco contou que por volta das 14h um rapaz que aparentava ter entre 39 ou 40 anos, “de aproximadamente 1.67 cm de altura, magro e de pele branca, usava calça jeans e uma camisa xadrez na cor azul” foi barrado ao tentar passar pelo detector de metais na porta da agência.

Nesse momento, o gerente foi chamado e verificou se o homem portava alguma arma, mas nada foi encontrado. Assim que o assaltante conseguiu entrar na agência, os funcionários foram rendidos por ele e outros quatro homens que entraram no local armados. Os homens conseguiram fugir levando R$ 27.310,00 dos caixas, dois revólveres da marca Taurus e dois botões de pânico. Toda a ação foi registrada pelas câmeras de segurança do banco.

A partir das imagens, a Polícia Civil identificou Fábio por uma foto 3×4 extraída do sistema de informação e apresentou às vítimas no dia 4 de fevereiro. Depois do reconhecimento fotográfico, ele foi encaminhado para a 5ª Delegacia da Disccpat e passou por um reconhecimento pessoal sozinho, ou seja, fora dos procedimentos previstos no artigo 226 do Código de Processo Penal e foi reconhecido pelos funcionários da agência.

Defesa de Fábio apresenta no processo uma comparação entre ele (à direita) e o homem que aparece nas imagens dos assalto (à esquerda). | Foto: reprodução

Mesmo com as irregularidades, o Ministério Público de São Paulo manifestou-se favorável à prisão preventiva de Fábio, que foi decretada pela juíza Luciana Piovesan da 27ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) em 17 de março. Desde então todos os pedidos de liberdade provisória foram negados e a promotora Eliana Guillaumon Lopes Vieira pediu a condenação de Fábio.

Segundo a advogada de defesa Nathalia Taynara Pereira, o vídeo do assalto só foi juntado aos autos do processo depois da primeira audiência do caso, realizada de forma virtual em abril. “Para minha surpresa na nova audiência de instrução [realizada em maio] apareceram um novo juiz e uma nova promotora, que não tinham analisado o vídeo. O juiz foi bem ríspido com Fábio perguntando por que ele não tinha falado na delegacia que não tinha sido ele. E o Fábio disse que estava sendo pressionado, que preferiu falar diante do juiz. Foi uma aberração a segunda audiência dele. E depois eu vi que a juíza da primeira audiência voltou para o processo”, conta.

Em juízo, o reconhecimento também não seguiu as regras do Código de Processo Penal e contou com pessoas que tinham características bem divergentes das de Fábio. “Eles [os vigilantes] não conseguiram reconhecer efetivamente, ficaram no ‘talvez seja’, foi assim que foi informado. Esse reconhecimento está totalmente controversso e ilegal”, aponta a advogada.

“Eles se apegam ao passado dele”

Passados quatro meses, a família e os vizinhos de Fábio não encontram explicações para o que aconteceu com ele. Dryelle garante que o homem que aparece nas imagens não é o seu marido e que, no dia do crime, os dois estavam em casa e à noite, quando ela saiu para trabalhar no hospital, Fábio ficou cuidando das filhas do casal como de costume. “A minha casa é humilde, eles entraram e viram que meu marido não tinha nada porque ele decidiu parar com essa vida [que ele tinha] e tinha parado mesmo. Aqui tem câmera, onde moro, mas só duram 15 dias as imagens. Não tinha como eu provar que ele estava aqui”, lamenta.

A recepcionista diz que Fábio não tem tatuagem na mão como o homem que aparece no assalto e que ele possui características diferentes como a cor da pele e o tamanho das orelhas. Dryelle também critica a falta de investigação no caso e uma reportagem veiculada no jornal SBT Brasil que registrou a prisão do marido na delegacia e reproduzia a informação da polícia de que ele fazia parte de uma “quadrilha”.

Ela explica que Fábio estava há quatro meses em liberdade após cumprir uma pena de quatro anos por um roubo cometido em 2017 e estava recomeçando a vida. “Eles se apegam ao passado dele, mas ele não estava fazendo nada. É difícil porque minhas filhas perguntam ‘cadê o pai?’ e eu falo que ele está trabalhando. Elas sofrem, ficam doentes porque eu não levo elas lá, é um ambiente muito pesado”, detalha.

Agora, Dryelle conta com a ajuda da vizinha Márcia Andrade, aposentada de 58 anos que já lutou para provar a inocência do seu filho preso injustamente em 2013, para cuidar das filhas e continuar trabalhando. Há dois meses, ambas seguem na expectativa de uma sentença que absolva Fábio das acusações. “Eu tenho o Fábio como filho e o que me deixa mais triste é que eu entendo. O Fábio no final do ano esteve com a gente na praia, ficamos lá cinco dias. Toda festa e almoço em família sempre ele está”, conta.

“Como que eles prendem o menino, se não é ele quem aparece nas imagens? Qualquer um vê. A pessoa que está nas imagens tem uma tatuagem, a pessoa está de máscara. Só porque é pessoa de cor, é o Fábio?”, questiona. “A nossa justiça é muito falha, falha, falha. Quantos inocentes estão presos? Se ele devesse, eu falava: de novo, está acostumado com a cadeia. Mas dessa vez ele não fez, é inocente mas não tem voz para isso”, desabafa.

Reconhecimento como prova única

A advogada criminalista Fernanda Peron, que integra a Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, analisou o processo a pedido da Ponte e elencou uma série de irregularidades nos reconhecimentos que, por serem a única prova contra Fábio, mereciam uma atenção maior tanto da polícia quanto do judiciário. “Os juízes costumam dizer que essas regras são só sugestões da lei e não precisam ser seguidas, o que é um absurdo tremendo porque a lei não tem palavras inúteis e deve ser cumprida pelas autoridades públicas. Atualmente, o STJ tem mudado esse entendimento dizendo que o artigo 226 [do Código Penal] deve ser respeitado, mas a maioria dos juízes, sobretudo em São Paulo, ainda dispensa essa regra como se fosse mero formalismo da lei”, critica.

Para a advogada, as imagens da câmera de segurança, além de indicarem diferenças entre as feições de Fábio e do autor do crime, mostram que os criminosos usavam máscaras, o que dificulta a identificação com exatidão. Tanto fatores emocionais quanto externos podem influenciar a memória humana tornando-a falha, explica a Fernanda.

“O reconhecimento deveria ser inválido porque as vítimas foram expostas repetidamente à imagem de uma só pessoa, primeiro por fotografia, depois pessoalmente e, por fim, na audiência virtual. Além de ignorar totalmente o disposto no artigo 226, isso significa que as memórias das vítimas foram se consolidando no sentido de identificar justamente a pessoa para a qual estavam olhando, de forma totalmente viciada. Isso literalmente encobre a memória verdadeira, criando uma memória falsa na qual o rosto lembrado do fato é substituído pelo novo”, explica.

Ajude a Ponte!

Neste caso, a advogada aponta que a investigação da polícia e do Ministério Público não procurou identificar os homens que participaram do assalto por meio de perícia, não procurou saber o motivo de um deles ter sido liberado após ser barrado pelo detector de metais e que de forma chegaram e fugiram do local. “Tudo indica que essa situação lamentável tenha ocorrido com Fábio somente por conta de seus antecedentes criminais, por ter passagens por crimes de roubo, pelo preconceito dos policiais, promotores e juízes, reflexo da sociedade como um todo. Muitos não aceitam um cidadão se recuperar e retomar sua vida, e ainda culpam o egresso e sua família por não se esforçarem o suficiente”, analisa.

O que diz a polícia

Procurada pela Ponte, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) se posicionou sobre o caso por meio de nota. No entanto, a pasta não respondeu aos questionamentos sobre se houve uma análise técnica das imagens da câmera de segurança, se é procedimento do Deic os policiais apresentarem as fotos dos suspeitos às vítimas antes do reconhecimento pessoal e quais as provas levantadas para apontar Fábio como integrante de uma quadrilha.

“O caso foi investigado pela 5ª Delegacia da Divisão de Investigações Sobre Crimes Contra o Patrimônio (DISCCPAT). Durante as apurações, imagens de câmeras de monitoramento foram analisadas e o homem reconhecido pela vítima. O caso foi encaminhado ao Ministério Público.”

O que diz o Ministério Público

Questionado sobre as irregularidades dos reconhecimentos realizados com Fábio, o MP disse que se manifesta nos autos do processo.

O que diz a Justiça

Já o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) enviou a seguinte nota:

“O Tribunal de Justiça não se manifesta sobre questões jurisdicionais. Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente.”

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