Fachin vê avanços do Rio contra letalidade policial, mas amplia exigências na ADPF das Favelas

    Relator propôs, entre outras coisas, que seja criado um comitê com participação civil para acompanhamento do plano de redução das mortes cometidas por policiais. Julgamento foi suspenso sem os votos dos demais ministros

    Na sessão do STF, propôs criação de comitê com participação da sociedade civil para acompanhamento do plano de redução da letalidade | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

    O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou, na tarde desta quarta-feira (5/2), o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como “ADPF das Favelas”. O processo tramita desde 2019, ajuizado pelo PSB contra o Estado do Rio de Janeiro para que fossem adotadas medidas de redução da letalidade policial — que afeta especialmente a população negra e das comunidades.

    A sessão de retomada foi toda preenchida pela leitura do voto do ministro Edson Fachin, relator da ação. Ele avaliou que o Estado empenhou avanços durante a tramitação do processo, mas disse entender que ainda persiste um estado de coisas inconstitucional na política de segurança pública no Rio de Janeiro.

    Leia mais: Artigo | A ADPF das Favelas e a luta por uma perícia independente e autônoma

    No andamento da ação, Fachin havia determinado que o Estado do Rio elaborasse um plano para reduzir as mortes por policiais, decisão confirmada pelos demais ministros posteriormente. Agora, ele propôs a homologação apenas parcial do plano apresentado, exigindo que sejam adotadas medidas adicionais. O restante do Plenário ainda deverá definir se acompanha o relator ou se abre divergência. O julgamento foi suspenso ao final da leitura do voto de Fachin, e ainda não há previsão de quando será retomado.

    Comitê civil e perícia independente

    Entre as medidas adicionais propostas por Fachin, está a determinação para que o Estado crie um comitê com participação da sociedade civil para acompanhamento do plano de redução da letalidade policial. Ele também propôs que o Rio regulamente, em até 180 dias, o afastamento preventivo de agentes de segurança envolvidos em mais de uma ocorrência com morte decorrente de intervenção policial em período menor que um ano.

    Fachin elencou que o Estado deve prover maior transparência e complexidade nos dados compilados sobre as mortes por policiais. Devem ser publicizados, por exemplo, indicadores de autoria de disparos. O ministro citou a necessidade de uso diferenciado da força pelos policiais e de promoção de uma política de assistência psicológica aos agentes que tenham atuado em ocorrências com mortes.

    O relator ainda propôs uma série de regras para as operações policiais, como a necessidade de disposição de profissionais de saúde para atendimento de eventuais vítimas. Além disso, votou pela imposição de práticas que garantam independência na perícia das mortes — essa era uma demanda encampada pelo Fórum Popular de Segurança Pública do Rio de Janeiro (FPOPSEG).

    Nos termos sugeridos por Fachin, na ocasião em que um policial civil for suspeito por uma morte, por exemplo, o Ministério Público deverá garantir uma perícia por outros profissionais que não sejam vinculados à Superintendência-Geral de Polícia Técnico-Científica, que está submetida à Polícia Civil.

    “A desvinculação da perícia da Polícia Civil é um avanço, pois acreditamos ser inconcebível ter a polícia que mata como a que produz perícia”, avalia, à Ponte, Fransérgio Goulart, coordenador executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), uma das entidades que compõem o FPOPSEG.

    “A construção de um comitê de monitoramento e acompanhamento das medidas é também um ganho no voto do relator”, acrescenta Goulart, ponderando que trata-se apenas de um primeiro voto.

    Leia aqui a íntegra do voto de Fachin na ADPF 635

    Decisões anteriores da ADPF

    Ainda em 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) já havia sentenciado o Estado do Rio a elaborar metas e políticas de redução da letalidade policial, em desdobramento do caso Favela Nova Brasília, de 1994, em que três jovens foram vítimas de violência sexual e outras 26 pessoas foram mortas por policiais. O descumprimento daquela sentença foi rememorado na ADPF.

    Fachin já proferiu uma série de outras decisões no andamento da ADPF das Favelas para conter a letalidade policial no Rio. Em 2020, ainda no início da pandemia de Covid-19, ele determinou a suspensão de operações policiais no estado, restringindo a ocorrência delas a casos excepcionais, mediante prévio aviso ao Ministério Público estadual (MP-RJ), órgão ao qual cabe o controle externo da atividade policial.

    O relator da ação também ordenou que as fardas dos policiais passassem a ter câmeras e equipamentos de geolocalização (GPS). Além disso, as viaturas das forças de segurança, incluindo as de equipes especializadas, como Bope e Core, tiveram de passar a contar com gravação em áudio e vídeo. O ministro ainda restringiu o uso de helicópteros e a realização de operações próximas de escolas, creches, hospitais ou postos de saúde, também mediante supervisão do MP-RJ.

    O governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro (PL), é crítico das medidas tomadas no âmbito da ADPF 635 e diz que elas têm limitado a atividade policial ostensiva. Uma análise publicada pelo MP-RJ em maio do ano passado, no entanto, identificou que, do início de 2021 ao final de 2023, o número de operações policiais no estado aumentou, ao passo que a letalidade policial diminuiu.

    Ainda no estudo, o Ministério Público vinculou essa mudança justamente à ação no STF: “Os padrões observados não apenas indicam uma relação mais clara entre a evolução da ADPF 635 e a diminuição da letalidade da ação policial, mas também sugerem um possível ganho de eficiência e aprimoramento nos sistemas de registro das operações, destacando uma tendência promissora em direção a práticas mais transparentes e responsáveis no contexto do controle externo da atividade policial”.

    Redução da letalidade policial

    Em 2021, um estudo do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF), concluiu que, só em 2020, 288 vidas foram poupadas por contas das restrições às operações policiais. Já segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), as mortes decorrentes de intervenção policial no Rio caíram 52% de 2019 a 2023, indo de 1.814 para 871 registros.

    No início deste ano, um relatório global da organização internacional de direitos humanos Human Rights Watch (HRW) atribuiu a queda da letalidade policial no Rio à atuação do STF.

    Na sessão anterior do Supremo que tratou da ADPF, em 13 de novembro do ano passado, Fachin fez a leitura do relatório, que contempla resumos do caso e dos argumentos das partes. Os envolvidos na ação também puderam fazer as sustentações orais, incluindo os vários “amigos da corte” (“amici curiae“), como são chamados os órgãos e entidades ligadas ao tema que puderam acompanhar o processo.

    Maior segurança não exige maior letalidade

    Na sessão mais recente, Fachin contextualizou no início de um longo voto que as medidas já tomadas no âmbito da ADPF não proibiram a atividade policial, mas pretenderam regulá-la dentro da legalidade. O ministro citou que, durante a tramitação da ADFP das Favelas, não só a letalidade policial no Rio caiu, mas também os números de policiais mortos e das ocorrências de crimes como roubos e homicídios dolosos, evidências que desmontam o mito de que uma polícia mais letal traria mais segurança.

    “Ainda que fosse comprovada a eficácia da atuação letal das forças policiais para a redução da criminalidade, essa seria uma opção inconstitucional e incompatível com o ordenamento juríridico pátrio e o direito internacional de direitos humanos”, destacou ainda Fachin.

    O ministro afirmou também reconhecer o empenho de policiais, ponderando que a atuação dentro da legalidade é justamente o que sustenta a confiança da sociedade nas forças de segurança e viabiliza o trabalho delas. Já o controle social pela violência, segundo Fachin, gera apenas um ciclo de violência. “O comportamento de agentes do Estado dentro da legalidade estimula o respeito às leis e a cooperação das comunidades com as forças de segurança, o que só é possível quando elas são vistas pelos cidadãos como minimamente confiáveis”, disse o relator.

    “A deterioração da segurança pública não é uma ameaça apenas para os cidadãos, mas é também para os policiais, que não raro perdem suas vidas em numerosos suicídios e assassinatos”, argumentou. Fachin disse também que o julgamento da ADPF é uma oportunidade de reconhecer uma injustiça histórica contra milhares de pessoas que vivem nas comunidades mais pobres, ameaçadas desde o século passado por uma perspectiva higienista que criminaliza qualquer um que esteja nesses territórios.

    “A redução de tais espaços à ideia de complexos territoriais criminosos a serem militarmente combatidos e confinados é uma simplicação que naturaliza um grau inconcebível de violência pelo Estado”, disse.

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