Família de homem negro morto em ação policial na ‘Cracolândia’ pede indenização ao Estado

Raimundo Nonato Rodrigues Fonseca Junior foi morto em maio de 2022 após operação da Polícia Civil para dispersar pessoas em situação de rua na capital paulista; vítima deixou três filhos menores de idade

Manifestação Vidas da Craco Importam
Em manifestação Vidas da Craco Importam, Raimundo Nonato Rodrigues Fonseca Junior, morto em ação da Polícia Civil, foi lembrado em cartaz de passeata em 2022 | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

A família de Raimundo Nonato Rodrigues Fonseca Junior entrou com um pedido de indenização contra o governo de São Paulo pela morte do homem negro de 32 anos, que foi baleado durante uma ação da Polícia Civil, em maio de 2022, que visava dispersar pessoas em situação de rua e com dependência química que se aglomeravam na Avenida Rio Branco, no centro da capital paulista, região conhecida de forma pejorativa como “Cracolândia”.

O pai da vítima entrou com a ação judicial em dezembro do ano passado relatando que soube da morte do filho pela ex-companheira e que esperava uma ligação dele dizendo que voltaria para casa. “Infelizmente, o autor perdeu o seu filho por um ato ilícito do Estado. Em que pese acreditar na reparação pelo dano moral duramente suportado, ele sabe que nunca terá o seu filho de volta, tendo que aprender a conviver com tamanha dor, pelo resto de sua vida”, descreveu a advogada Janaina do Nascimento dos Santos na petição.

Segundo ela, além dos pais, Raimundo deixou três filhos menores de idade, que vivem com a mãe. No documento, consta que os parentes não tiveram acesso ao boletim de ocorrência e, além do pedido de por danos morais, também solicitam informações sobre a investigação do caso, que está a cargo do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil.

A morte de Raimundo teve repercussão após moradores gravarem um vídeo que mostra uma ação policial contra um grupo de pessoas no cruzamento da Avenida Rio Branco com a Rua General Osório, em 12 de maio de 2022. É possível ouvir barulhos de tiros e ver um homem armado atirando. A vítima aparece caída em frente a um supermercado, na altura do número 764 da Rio Branco. Depois, as imagens mostram um caminhão do Corpo de Bombeiros no local e policiais militares isolando o espaço com escudos.

A vítima foi atingida no peito por volta das 21h e levada à Santa Casa, mas não resistiu aos ferimentos. Os boletins de ocorrência sobre o caso tratavam inicialmente apenas de um “tumulto” na região e que Raimundo foi encontrado baleado no chão. Na época, uma testemunha relatou à reportagem o que presenciou. “Os usuários [de drogas] começaram a chutar o ponto de ônibus e aí começou o primeiro tiro: tei, tei, tei. Eu gritei e falei ‘gente, recua, isso não é bomba, isso é tiro”. Ela prossegue dizendo que gritou que tinha moradores na rua ali. “Nisso, deram mais dois tiros. Foi quando o usuário caiu na minha frente.”

Os policiais civis Oswaldo José Sodré Ley Rangel, Bernardo Zamith Netto e Sergio de Souza Campos, do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra), se apresentaram no 2º DP (Bom Retiro) 24 horas depois porque se reconheceram nas imagens e tiveram as armas apreendidas para investigação. As armas recolhidas foram uma espingarda e três pistolas Glock.

De acordo com depoimentos dos policiais obtidos pela Ponte, eles teriam ouvido comerciantes pedindo socorro porque “usuários de crack” estavam tentando invadir os estabelecimentos, sendo que uma mulher tentava entrar no supermercado e o proprietário segurava a grade para impedir. Essa mulher teria sido retirada por um homem negro mas, segundo eles, ela estaria incitando os demais a irem para cima dos agentes aos gritos de “polícia vai morrer”. O investigador Oswaldo Rangel disse que pediram verbalmente para ela sair, mas não adiantou, e disparou seis vezes com espingarda calibre 12 de bala de borracha para dispersar as pessoas, que não teria sido suficiente.

O investigador Bernardo Zamith Netto disse que mesmo assim “os usuários de drogas não cessaram as investidas e, temendo por sua vida e de seus parceiros, não restou outra opção” que não fosse disparar três ou quatro vezes “em direção ao chão” com a sua pistola .40. Ele afirma que não viu ninguém ser atingido, que ainda permaneceu por cerca de duas horas nas imediações, e que só soube que Raimundo foi baleado por reportagens veiculadas na imprensa. Já o investigador Sergio Campos disse que não fez disparos e o dono do supermercado confirmou sobre uma mulher tentando invadir seu estabelecimento. Um outro homem que estava na multidão também foi atingido na mão.

O caso continua sendo investigado pela Polícia Civil. Em depoimento, a irmã de Raimundo confirmou que ele tinha problema com álcool e drogas, chegou a ser internado pelo menos oito vezes e que trabalhava como servente de pedreiro. Segundo ela, o irmão se tratava em uma clínica na capital e mostrava que estava em boa aparência e que acha que ele estava no fluxo, como é chamada a cena aberta de uso e venda de drogas, porque pode ter tido “uma recaída”, mas “nada justificaria aquela ação violenta da polícia”.

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A morte de Raimundo, que estava em situação de rua e era usuário de drogas, gerou um protesto na região contra as ações truculentas na polícia no território. Poucos dias antes, uma grande operação da Polícia Civil com apoio da PM e da Guarda Civil Metropolitana havia retirado as pessoas que acampavam na Praça Princesa Isabel. A dispersão do fluxo gerou críticas e foi motivo de abertura de inquérito por parte do Ministério Público, que classificou que as pessoas foram tratadas como “gado”.

Hoje, os governos municipal e estadual estimam que existem oito pontos da “Cracolândia” espalhados pelo centro da cidade e divulgaram, em janeiro, um plano conjunto de medidas para o território que são contestadas por especialistas ouvidos pela Ponte.

O que diz a polícia

A reportagem questionou a respeito do andamento das investigações do caso de Raimundo e sobre a situação atual dos policiais civis à Secretaria de Segurança Pública. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, encaminhou a seguinte nota:

O caso tramita pela Assistência da Divisão de Crimes Funcionais da Corregedoria da Polícia Civil e está em fase de conclusão.

O que diz a PGE

À Ponte, a Procuradoria Geral do Estado, que representa o governo paulista na ação judicial, disse que ainda não foi citada da ação para poder se manifestar.

Reportagem atualizada às 10h15, de 13/2/2023, para incluir a resposta da SSP.

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