No registro do roubo pelo qual Winícius é acusado, única descrição é de um adolescente negro com verruga; prisão foi feita por PMs do 5º Batalhão, investigado por extorsão
16 de abril deste ano começou como um dia igual a qualquer outro para o estudante universitário Winícius Molina da Gama Silva, 21 anos. Acordou cedo, saiu de casa, no Jaçanã, zona norte da cidade de São Paulo, por volta das 6h30, e fez o caminho de 20 minutos de bicicleta até o supermercado Extra da Vila Guilherme, onde trabalha como operador de caixa.
Duas horas depois de Winícius iniciar o expediente, policiais chegaram ao supermercado com um mandado de prisão contra o rapaz. Ele ficou surpreso, enviou mensagens por celular para a mãe e para a avó, e seguiu com os policiais para o 73º DP (Jaçanã).
Da delegacia, o estudante foi levado direto para o CDP (Centro de Detenção Provisória) da Vila Prudente, na zona leste. Preso sem ter cometido crime, segundo seus familiares. Tudo o que Winícius fazia na vida, contam, era trabalhar, namorar e estudar Tecnologia da Informação.
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A Ponte não pode ver a íntegra do processo judicial pelo qual Winícius foi preso, que corre em segredo de Justiça, mas o boletim de ocorrência que deu origem ao processo, um roubo de carga ocorrido em 14 de junho de 2018, menciona apenas uma descrição: a de um adolescente negro com uma verruga na testa. Winícius é branco, tem 21 anos e nenhuma verruga no rosto.
Os parentes do jovem, no entanto, lembram que nesse 14 de junho ocorreu a abertura da Copa do Mundo da Rússia e que Winícius estava em casa para assistir à partida. Eles apresentaram à reportagem fotos e um registro de localização que, segundo eles, comprovariam a informação.
O reconhecimento do estudante, segundo a história contada pela família, teria sido feito a partir de uma foto enviada pela polícia via Whatsapp.
Segundo familiares, o rapaz nunca havia tido problemas com a Justiça. “Ele é educado, respeitador, justo, honesto, com princípios. Nunca me deu trabalho, sempre teve responsabilidade com escola desde pequeno”, descreve a mãe dele, a auxiliar administrativa Wanessa Mirolda, 39 anos.
Na mira do batalhão
Winícius teria entrado na mira da Polícia Militar após ser alvo de uma armação pelas mãos de policiais do 5º Batalhão da Polícia Militar Metropolitano, em 17 de março do ano passado. Investigado por suspeita de receber propina do tráfico de drogas e forjar tiroteio para encobrir um assassinato, o batalhão foi alvo de uma operação da Corregedoria da PM na semana passada. Na ocasião, segundo a família, os PMs teriam “plantado” uma arma de fogo com o jovem e tirado uma foto dele para mostrar a vítimas de roubo em busca de possíveis reconhecimentos.
Naquele dia, Winícius havia saído com o carro da mãe para levar a namorada a uma esfiharia do bairro. No caminho, o casal foi abordado por uma viatura com três policiais do 5º Batalhão, entre eles a cabo Renata Augusta de Lima, investigada por suspeita de extorquir traficantes e forjar uma ocorrência.
O estudante parou o carro e informou que não era habilitado. Os PMs teriam informado que não haviam encontrado nada de ilegal no veículo, mas apresentaram uma foto de Winícius em um celular e perguntou se era ele. O rapaz disse que sim.
Foi aí que a atitude dos policiais mudou. Um PM, então, contou que aquela imagem do rapaz havia sido compartilhada em grupos de Whatsapp de policiais como autor de um roubo de carga acontecido em junho de 2018.
O estudante negou qualquer participação em crime. Os policiais militares, no entanto, tiraram uma nova foto do rapaz e disseram que enviariam a imagem para a vítima do roubo fazer um reconhecimento. Minutos depois, os PMs informaram Winícius e a namorada que a vítima havia reconhecido a fotografia e, por isso, o jovem seria conduzido a uma delegacia da Polícia Civil para ser autuado pelo roubo.
No 73º DP (Jaçanã), porém, os policiais não apresentaram ao delegado uma ocorrência de roubo, mas de posse ilegal de arma de fogo. Disseram que haviam encontrado no carro da mãe de Winícius uma garrucha calibre 32, arma de cano curto que costuma ser vendida como antiguidade, em péssimo estado de conservação.
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A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo sobre este procedimento e o motivo de não ter levado a namorada do rapaz, que estava presente na abordagem, para a delegacia. Não houve resposta.
Autuado pela posse ilegal da garrucha enferrujada, Winícius pagou uma fiança de R$ 2 mil e foi liberado. O que ele não esperava é que, um ano e um mês depois, uma fotografia tirada pelos policiais o levaria para a prisão.
O roubo de carga
A Ponte teve acesso ao boletim de ocorrência do crime pelo qual Winícius teria sido preso, um roubo a um carro com uma carga de cigarros, ocorrido por volta das 9h de 14 de junho de 2018 nos Jardins, na zona sul capital, e registrado no 90º DP (Parque Novo Mundo). Segundo o boletim, o criminoso é descrito como um adolescente negro com uma verruga na testa — características diferentes de Winícius.
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Abordado pelo ladrão, o motorista foi levado ao Jardim Japão, na zona norte, onde outras pessoas não identificadas levaram o veículo. O carro foi encontrado horas mais tarde, ileso, com a chave e sem a carga.
Segundo a família, Winícius nunca soube deste crime e não tem nenhum envolvimento.
Questionada pela Ponte, a Secretaria de Segurança Pública disse que Winícius havia sido preso em flagrante no dia 17 de março do ano passado e liberado após o pagamento da fiança. No entanto, ainda de acordo com a nota do governo paulista, durante o registro da ocorrência, o jovem foi reconhecido por uma vítima como autor de um roubo de carga de cigarros.
A secretaria não informa como aconteceu este reconhecimento, sequer cita o uso irregular de imagens, conforme relato pela família de Winícius. A nota oficial ainda diz que, em novembro do ano passado, o Poder Judiciário encaminhou o inquérito policial do caso do roubo e, no mês seguinte, o caso foi relatado à Justiça.
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Para o advogado Ariel de Castro Alves, membro do Condepe (Conselho Estadual de Direitos Humanos), o rapaz pode ter sido vítima dos PMs do 5º Batalhão, pois “alguns PMs [dessa unidade] estariam recebendo dinheiro de traficantes mediante extorsões, e estariam forjando ocorrências, inclusive de supostos confrontos”.
O membro do Condepe destaca ainda as possíveis irregularidades durante o reconhecimento do autor do crime de roubo, sobretudo pelo fato de as características de Winícius não corresponderem às descritas pela vítima do roubo pelo qual o jovem foi acusado.
De acordo com o artigo 226 do Código de Processo Penal, o reconhecimento de suspeitos de cometimento de crime deve ser feito com pessoas semelhantes colocadas ao lado. Além disso, a vítima precisaria descrever as características do criminoso antes de ir fazer o reconhecimento. Para piorar, na psicologia do testemunho, o reconhecimento a partir de uma única foto é chamado de show-up e é considerado um método bastante falho, por favorecer a formação de falsas memórias e induzir a reconhecimentos equivocados.
O governo paulista afirma que instaurou uma investigação preliminar para apurar os fatos denunciados pela família.
Protesto
Na manhã deste domingo (28/06), familiares e amigos de Winícius foram à entrada do 5º Batalhão para fazer um protesto pedindo por justiça e pela liberdade do jovem. Antes de chegar à frente da unidade policial, entretanto, eles se depararam com a rua fechada e foram impedidos pelos policiais militares de se aproximarem.
Cerca de 20 pessoas foram com camisetas brancas, máscaras e cartazes dizendo que o estudante é inocente. “A gente queria ter reunido mais pessoas, mas para segurança de todo mundo, devido ao coronavírus, nos reunimos em pessoas mais próximas e tomamos todo cuidado, mas foi bem importante para validar nosso pedido de justiça e de verdade para o Winícius”, disse a analista Patrícia Dantas Gama, de 27 anos, prima do jovem.
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O ato iniciou por volta das 10h30 e durou cerca de meia-hora. “Foi bem positivo porque a gente conseguiu mostrar para os policiais do 5º Batalhão que a gente não está apontando o dedo na cara de ninguém, a gente sabe muito bem que existem muitos policiais honestos e que trabalham duro, mas o que a gente quer é justiça para o Winícius o quanto antes”, concluiu Patrícia.
O batalhão do forjamento
A prática de crimes possivelmente cometidos por policiais do 5º Batalhão foi noticiada pela Ponte em janeiro deste ano. Na ocasião, a Corregedoria da Polícia Militar passou a investigar um sargento da unidade, suspeito de extorquir traficantes da região, roubar um fuzil de um criminoso e até mesmo simular uma ocorrência de troca de tiros para encobrir um homicídio de morador de rua.
Na última quinta-feira (25/06), a Corregedoria da PM realizou uma operação no 5º Batalhão. O local ficou bloqueado para entrada e saída de policiais, enquanto os corregedores da Polícia Militar investigavam armários e outros lugares de serviço dos policiais.
Oficialmente, a PM negou que tenha alguma ligação com a denúncia de janeiro. No entanto, o ouvidor da Polícia de SP, Elizeu Soares Lopes, disse, após entrar em contato com a Corregedoria, que a operação não parecia ser algo corriqueiro.