Família pede justiça para entregador de 22 anos morto por PMs

Familiares, amigos e ativistas protestaram neste domingo (26) na zona oeste da cidade de São Paulo cobrando respostas pela morte de Carlos Henrique Medeiros de Farias, baleado em 15 de fevereiro

Cileide Alves Pereira de Farias, 43 anos | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

“Hoje eu acordei chamando o nome do filho: ‘Carlos Henrique, cadê você?’, mas não tinha resposta”, lamenta a vendedora de cosméticos Cileide Alves Pereira de Farias, 43. “Eu já ouvi mães dizendo que perderam parte do coração quando perderam o filho. Eu perdi minha vida”, prosseguiu. Vestida de branco, ela estava com uma camiseta com o rosto do entregador Carlos Henrique Medeiros de Farias, 22, morto pela polícia no dia 15 de fevereiro em uma praça do bairro Jardim Rubio, região onde morava com a família, na zona oeste da cidade de São Paulo.

Paraibanos, Cileide e o marido vieram para a capital paulista quando Carlos e a irmã dele, Cilândia Medeiros de Farias, 24, ainda eram pequenos. “Quando eu vim para cá, eu acreditava na polícia, porque se acontecia alguma coisa, era a polícia que vinha proteger. Mas com o tempo, eu não acreditei mais”, critica. “Já vi muita abordagem violenta, algemando os meninos ou parando por nada. Meu filho já foi abordado. Se a polícia parava, ele já levantava o braço. Ele não contava para não me preocupar porque ele sabia que eu iria para cima”, afirma.

Amigo de Carlos segura cartaz durante protesto | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Foi por isso que ela decidiu participar do protesto deste domingo (26/2), que contou com o apoio da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio. Uma das articuladoras do movimento que denuncia violações de direitos humanos, Ana Paula Carneiro, quando tomou conhecimento do caso, surpreendeu-se. “Eu conhecia o Carlos desde pequeno porque eu e a família fizemos uma luta de ocupação uns anos atrás e moramos muito próximos por um tempo. Ela [Cileide] era minha vizinha”, conta. “O ato tem o objetivo de a população e todos verem que houve uma injustiça aqui no bairro e que a gente está mobilizando as pessoas para pedir justiça”, explica.

Ali, familiares, amigos e ativistas se reuniram na Praça B14 e caminharam pelas ruas do bairro com cartazes com expressões como “justiça”, “vidas importam”, “justiça pelo Carlos” e uma faixa com a frase “contra o genocídio”. Jovens que conheciam o entregador também seguiram o trajeto em motos, marcando a presença com o forte ronco do motor.

Carlos deixou uma motocicleta, a que usava para trabalhar e que estava no nome do pai. Segundo a família, ele fugiu da abordagem policial porque estava com a carteira de habilitação vencida. “Ele não estava armado, ele nunca teve uma arma em casa. Eu quero que eles provem que essa arma era do meu filho”, diz Cileide, indignada. Isso porque, no boletim de ocorrência, os policiais militares sustentam que por volta das 21h39 Carlos caiu da motocicleta após desobedecer uma ordem de parada e sacou um revólver calibre 38 de numeração raspada contra os PMs, que atiraram.

Jovens seguem de moto, pelo bairro, em protesto contra a morte de Carlos | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

O registro não informa a qual batalhão os policiais pertencem, mas segundo a família seria da Companhia de Ações Especiais de Polícia (Caep). A arma apreendida, diz o BO, estava com uma munição picotada (falhada) e cinco íntegras.

Segundo o documento, o sargento Willian Roberto Pereira fez 16 disparos de fuzil em direção à vítima enquanto o soldado Paulo Júnior Barbosa da Costa atirou seis vezes com a pistola .40. Três desses tiros atingiram o entregador na mão direita, ombro direito e axila direita. “Um dos tiros pegou no braço que ele tem tatuado o meu nome”, lamenta a mãe.

A manifestação, que iniciou às 14h, terminou por volta das 16h20 no cruzamento das ruas Professor João de Lorenzo e Angelo Aparecido Santos Dias. Com gritos por justiça e uma salva de palmas, Cileide encerrou o ato cantando ao microfone a música “Segura na Mão de Deus”, do pastor Nelson Monteiro da Mota. A fé em Deus, conta, é o que tem se apegado para juntar forças. “Jamais pensei em estar nesse momento de dor, mas Deus está comigo, ele me levantou”, desabafa.

Cruzamento das ruas Professor João de Lorenzo e Angelo Aparecido Santos Dias | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

A vida da família nunca foi fácil e, para Cileide, um quadro de depressão e síndrome do pânico que lida há 14 anos, desde que seu irmão mais novo foi assassinado, além de outros problemas familiares, a deixa com altos e baixos. “Tinha dias que eu não levantava da cama por causa de tanto comprimido que eu tomava e tinha dia que eu levantava cedo, fazia café, tudo”, lembra. “Quando eu achei que estava melhorando, que o Carlos estava ficando feliz porque eu estava ficando melhor, aconteceu isso”, diz, com os olhos marejados.

No bairro, Carlos vivia com os pais, dois irmãos e um filho pequeno de quatro anos, Kevin Henrique, fruto de um relacionamento com uma ex-companheira. O menino, que estava presente na caminhada vestindo uma camiseta com foto do pai, tem hemofilia, um distúrbio que afeta a coagulação do sangue. Por isso, o pai ia com frequência até o Hospital das Clínicas buscar medicação para o menino. “Desde que o Carlinhos morreu, o Kevin só fica chamando pelo pai. Colocou as correntes do Carlos no pescoço e não tirou”, conta Cilândia, irmã do entregador, que mora próximo à casa dos pais. 

“Eu moro nesse bairro há 25 anos, meu filho era trabalhador, não era ladrão”, discursou Cileide no ato.

Kevin Henrique com a camiseta estampando a foto do pai | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

A família ressalta que desde os 15 anos Carlos fazia bicos entregando panfletos ou realizando entregas para estabelecimentos da região. Seu último emprego com carteira assinada havia sido em uma loja de gesso. Com a pandemia de Covid-19, passou a trabalhar como motoboy para aplicativos.

O entregador Leonardo Modesto, que integra o movimento Entregadores Antifascistas, também foi ao protesto prestar solidariedade e aponta que a polícia atua de forma muito truculenta com os motoboys. “É pela exploração do trabalho que o cara deixa deixa de pagar documento, toma multas absurdas, de viseira, acessórios, apreendem moto. O cara, com medo de perder a moto e o sustento da família, acabou que teve a vida ceifada precocemente, com filho pequeno”, lamenta.

No dia do crime, Cilândia conta que estava dormindo quando foi acordada por uma ligação no celular. Não atendeu a tempo, mas viu que a sua mãe havia deixado um áudio. “Ela estava desesperada, dizendo que um rapaz tinha batido na porta dela para avisar que Carlos estava jogado na praça”, conta. 

Manifestante segura balão em protesto contra a morte de Carlos | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Naquela noite, depois de conversar com a mãe, a irmã mais velha foi de moto com o marido, que também fazia entregas, até o local mencionado. Quando os dois chegaram na praça, havia uma viatura da Caep. Segundo eles, essa viatura não saiu dali até a manhã seguinte, motivo pelo qual acreditam que se tratava da viatura envolvida na morte do rapaz.

No boletim de ocorrência consta que os PMs utilizavam câmeras nas fardas, mas elas não foram apresentadas à Polícia Civil. Os policiais também não prestaram depoimento formal com base em um dos mecanismos da Lei do Pacote Antricrime que prevê que os policiais envolvidos em casos com resultado morte têm até 48 horas para constituir um defensor público ou advogado assim que citados formalmente na investigação para poder prestar depoimento. No registro, afirmaram que querem ser representados pela Defensoria Pública. Assim, as informações que constam no BO foram dadas por um terceiro policial militar, Manassés Paulino dos Santos, quem documento não especifica se participou ou não da abordagem.

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Os parentes de Carlos buscam por testemunhas que possam ter presenciado a ação, já que outras pessoas que moram nos arredores chegaram à praça onde ele foi morto antes da família. “Eu quero justiça. Muitos perderam os filhos e não tiveram coragem de agir por medo, medo da polícia. Por quê? Não tem por que ter medo, vamos para cima, vamos se unir que a união faz a força”, clama a mãe da vítima.

faixa da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

O que diz a polícia

A Ponte questionou as assessorias da Polícia Militar e da Secretaria de Segurança Pública a respeito do caso, das imagens das câmeras dos policiais envolvidos, da investigação e pediu entrevista com o delegado Glauco De Carvalho Quadros, do Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil, mas Fator F, assessoria terceirizada da pasta, recusou o pedido de entrevista e encaminhou a seguinte nota:

O Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) investiga todas as circunstâncias da morte de um homem, de 22 anos, que fugiu de uma abordagem policial na noite de quarta-feira (15), na zona oeste da capital paulista. Durante a fuga, o suspeito caiu da moto e apontou uma arma na direção dos policiais, que intervieram. O homem não resistiu aos ferimentos. No local, foi apreendido um revólver calibre 38 com a numeração raspada, cinco munições íntegras e uma deflagrada. A Polícia Militar também instaurou inquérito policial militar (IPM), com o acompanhamento da corregedoria da instituição, para apurar o caso. Os policiais envolvidos na ocorrência passarão pelo Programa de Acompanhamento e Apoio ao Policial Militar (PAAPM).

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