Juíza expediu alvará de soltura aos cinco acusados mesmo depois de eles terem confessado o crime. A alegação da magistrada foi de que eles não dificultaram a investigação
Arthur Stabile
Pai, mãe, irmã, amigos e ativistas trans protestaram no início da tarde desta sexta-feira (28), no fórum criminal da Barra Funda, zona oeste de São Paulo, pedindo a prisão dos cinco suspeitos de matar a travesti Laura Vermont, no dia 20 de junho. Em 11 de agosto, a Justiça do Estado concedeu liberdade a todos, alegando que eles não tentaram “furtar-se à sua responsabilização criminal” e substituiu a reclusão por medidas cautelares.
“Estou indignada, porque não se pode soltar esse tipo de gente. Do mesmo jeito que fizeram com a minha filha, podem fazer com outras pessoas”, afirmou Zilda Laurentino, mãe de Laura, vestindo uma camiseta com a foto e o nome da filha. “Eles moram perto de casa, com certeza temos medo. Tenho netos, a família toda é do bairro. Temos receio deles”, confessou. Ela estava acompanhada do marido, Jackson de Araújo, pai de Laura, da filha Rejane, amigos da vítima e de dois advogados que auxiliam o Ministério Público a denunciar os acusados.
Houve a tentativa por parte dos seguranças do Fórum Criminal Min. Mário Guimarães de barrar o protesto, dizendo ser proibida a realização de atos dentro do espaço. Em resposta, os manifestantes gritaram “assassinos na cadeia”, além de falas como “a prisão é o lugar deles, para não matar mais gente” e “esse é um choro de um pai e de uma mãe que perderam sua filha”.
Van Basten Bizarrias de Deus, Iago Bizarrias de Deus, Jefferson Rodrigues Paulo, Bruno Rodrigues de Oliveira e Wilson de Jesus Marcolino tiveram prisão preventiva decretada no dia 30 de julho, com base em vídeos de câmeras de segurança de uma padaria que os mostra agredindo Laura, que morreu em decorrência de traumatimo craniano. Após a briga, a travesti ainda teria assumido o volante de uma viatura da PM e se desentendido com dois policias antes de morrer. Van Basten e Iago, que são irmãos, e Jefferson estavam presos desde o início de julho. Wilson e Bruno foram pegos posteriormente.
Porém, a juíza Érica Aparecida Ribeiro Lopes expediu alvará de soltura aos cinco mesmo depois de eles terem confessado o crime. A alegação da magistrada foi de que eles não dificultaram a investigação. A saída envolvia ainda a garantia de que eles não deixariam a cidade de São Paulo até o julgamento, bem como não procurarem as testemunhas e parentes da vítima, permanecerem em suas casas durante a noite e não frequentarem bares ou casas noturnas onde há o comércio de bebidas alcoólicas.
“Fiquei muito mal quando soube da liberdade deles. Já estava ruim, mas piorei. A juíza não poderia ter feito isso, não houve justiça. Cinco caras tiraram a vida da minha filha de 20 anos, uma vida inteira pela frente…”, lamentou-se Jackson de Araújo, durante o ato, cobrando novamente a prisão dos acusados. “Só sentirei que justiça foi feita quando eles estiverem presos, não respondendo em liberdade, quando o julgamento pode acontecer daqui 10 anos”.
Fundamento genérico e transfobia
Há o entendimento por parte dos advogados da família que a juíza argumentou de forma vaga para dar sustentação à soltura dos acusados. “A fundamentação dada para a liberação é genérica, porque não houve a individualização das condutas e circunstâncias pessoais dos réus. Foi cedida a liberdade provisória com base na ficha criminal, por não tem passagem, e por terem residência fixa. Mas esses fatores não são mais requisitos obrigatórios para liberdade provisória de acusados, conforme entendimento do STF”, analisa Carolina Souza Dias Gerassi, que acompanha o caso junto de Eduardo Rodrigues Alves Mazzilli.
Ambos atuam com a finalidade de restaurar a prisão dos cinco suspeitos. “A questão é que a família da Laura está temendo pela integridade física. A integridade psicológica já foi embora depois de tudo isso. Eles fecharam o próprio comércio com medo. Estão aparorados”, prossegue Carolina.
A motivação do assassinato citado pela polícia decorre do desentendimento de Laura Vermont com os cinco réus. Para a ativista da causa travesti Luiza Coppieters, este é um caso claro de transfobia. “Foi transfobia, sim. Quando uma pessoa como ela aparecer na rua, a existência dela não é aceita e o ódio produz uma ação para destruí-la”, aponta. Não há como enquadrar este crime como transfobia pois não existe esta tipificação no códico penal, como acontece com a homofibia – recentemente, o feminicídio tornou-se crime, o que agrava a pena de quem mata uma mulher. “O judiciário brasileiro privilegia a propriedade privada e não a vida”, critica Luiza.
O ataque contra Laura
No dia 19 de junho, Laura saiu de casa, no bairro Vila Nova Curuça, na zona leste de São Paulo, para se encontrar com amigos em uma festa na avenida Nordestina, uma das mais movimentadas da região. Próximo das 4h da manhã, a travesti foi vista caminhando atordoada nesta mesma avenida, ferida e desorientada. Um vídeo chegou a ser feito por um frentista de posto de gasolina e publicado na internet.
O caso foi revelado pela Ponte Jornalismo. Os ferimentos teriam sido causados pelas agressões de Van Basten, Iago, Jefferson, Bruno e Wilson, a maioria na cabeça, entre elas três pauladas desferidas pelo primeiro acusado. Eles a perseguiram após discutir em frente a uma padaria.
Posteriormente, Laura foi abordada por um veículo da Polícia Militar, acionado por conta da confusão. Segundo os PMs Ailton de Jesus, 43 anos, e Diego Clemente Mendes, 22, ambos do 39º Batalhão, a travesti teria resistido a abordagem e tomado o comando da viatura – segundo a família, ela não sabia dirigir. Diego se pendurou ao veículo e desferiu um tiro, que atingiu o braço esquerdo da vítima. Após bater a viatura em um muro, ela ainda teria batido a cabeça em um ônibus e em um poste antes de morrer.
A dupla acabou presa por quatro dias depois que a delegada Ivna Schelble, do 63º DP, estranhou a riqueza de detalhes do depoimento de uma suposta testemunha levada pelos PMs e apurou sua suspeita. O jovem de 19 anosrecebeu um papel de Ailton com a versão que teria de dar no depoimento. Diego reconheceu que “foi instruído por [o PM] Ailton a não relatar a verdade dos fatos, mas se manter em silêncio e apenas aquiescer com o que ele fosse narrar”. Eles responderão em liberdade por falso testemunho e fraude procesual, tendo pago um salário mínimo de fiança.
Segundo o laudo do IML (Instituto Médico Legal), a morte de Laura ocorreu devido a “consequência de traumatismo cranioencefálico e insuficiência respiratória”, não pelo disparo feito pelo PM Diego.