Projeto que nasceu de parceira do Movimento Independente das Mães de Maio com a Unifesp recebeu aporte de R$ 4 milhões do Ministério da Justiça e Segurança Pública; expectativa é atender 150 pessoas ao longo de dois anos
Quando perdeu o filho Edson Rogério Silva dos Santos, 29 anos, Débora Maria da Silva, 63, adoeceu. O episódio ficou conhecido como os Crimes de Maio — uma reação mortal com quase 600 vítimas fatais de grupos de extermínio com participação de agentes do Estado a ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC). Ao lado de outras vítimas do massacre, Débora fundou o Movimento Independente das Mães de Maio, que luta há 17 anos por reparação, memória e acolhimento. Um dos resultados do trabalho é um projeto que vai atender de forma multidisciplinar familiares de vítimas da violência institucional em cinco estados do país.
O Projeto de Pesquisa e Intervenção Multiprofissional é fruto da parceria das Mães de Maio com o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A ação, que mistura acolhida, formação e suporte jurídico, recebeu no fim do ano passado aporte de R$ 4 milhões do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).
“Já que o Estado insiste em matar nossos filhos, nós precisamos de um tratamento. Não um tratamento para poder continuar matando, mas um tratamento digno para poder preservar a vida dessas mulheres. Elas não podem pagar pelo jogo da ganância, pelo jogo do poder com a vida dos seus filhos”, diz Débora Maria.
O financiamento federal vai possibilitar atendimento nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará e Minas Gerais. O objetivo, explicam Aline Rocco e Valéria de Oliveira, integrantes do Caaf, é que em cada local exista um polo de suporte formado por uma equipe multidisciplinar (com advogados, assistentes sociais e psicólogos). Cerca de 30 familiares em cada estado devem ser beneficiados com as ações.
Outra frente que será desenvolvida é a de formação. Esse canal terá suporte de mães que já atuam na causa da violência estatal e trabalham junto ao Caaf em outras pesquisas e em movimentos locais de busca por justiça. Para Valéria, o projeto é uma espécie de zigoto na luta por reparação.
“Quando nós formulamos a proposta, não fazia sentido buscar um projeto que abarcasse só São Paulo ou só a Baixada Santista, sendo que os índices de violência nesses outros estados são tão alarmantes quanto no estado de São Paulo e o índice de adoecimento dessas mulheres também. Nós entendemos esse projeto como uma forma inicial de reparação, que é uma coisa que também nunca foi feita pelo Estado. O Estado mata, não repara, dá condições para que a violência se perpetue, mas não dá condições de reparação”, diz Valéria.
Aline, que também é assistente social, explica que a iniciativa quer minimizar o ciclo de adoecimento de mães e familiares.“É difícil ter uma mãe que não tome remédio controlado. Vira e mexe elas têm recaídas. Tem a questão da perda dos próprios filhos, mas elas também estão sempre retomando a memória ao acolher outras mães. Elas fazem o trabalho que o Estado deveria fazer e não faz, não reconhece e mata”, fala.
Débora concorda. “Para poder seguir lutando e clamando por justiça, é preciso tratar mentalmente. Você precisa se cuidar e combinar com as outras [mães] que você não vai morrer”.
A previsão da Unifesp é que até março o edital do projeto seja lançado e que ele avance para o início dos trabalhos ainda no primeiro semestre — com contratação e formação de equipes. O projeto será mantido por dois anos e tem previsão de pagamento de bolsas de R$ 400.
No ano passado, as Mães de Maio cumpriram agenda em Brasília e estiveram com autoridades como o ministro Flávio Dino e representantes de outras pastas, como o Ministério dos Direitos Humanos, Ministério da Igualdade Racial e Ministério das Mulheres. O objetivo foi reforçar a importância de uma política pública de acolhimento. A articulação foi fundamental para efetivação do financiamento federal.
O secretário de Acesso à Justiça (Saju) do MJSP, Marivaldo Pereira, destaca que o projeto profissionaliza uma atuação que é feita há anos pelos familiares, a maioria mães, de forma voluntária.
“Isso é algo que, na prática, essas mães, de forma muito voluntária, muito militante, já têm feito em vários estados. No Rio de Janeiro, São Paulo e no Ceará, sempre que tem uma nova mãe nessa situação, elas sempre são as primeiras a chegar. A abordagem de uma mãe que já passou pela dor e sofrimento de perder um filho jovem é totalmente diferente do que qualquer outra abordagem que a gente possa imaginar”, destaca Pereira.
No ano passado, o MJSP também viabilizou recurso de R$ 3,5 milhões para a ampliação de um projeto de acolhida desenvolvido na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com a Defensoria Pública. Com o subsídio, a Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência de Estado (Raave) vai oferecer 100 bolsas para estudantes de pós-graduação do Instituto de Psicologia, no valor de R$ 700. Os bolsistas terão a missão de ampliar o trabalho da rede nas regiões periféricas do Rio.
Luta por política pública
O custeio federal ao projeto das Mães de Maio é resultado de trabalho de articulação desenvolvido há mais de uma década. A luta das integrantes é por uma política pública que efetive o atendimento aos familiares da violência do Estado.
“A gente não é projeto. Nós queremos política pública para essa camada de mulheres que são invisíveis, a maioria preta, doméstica, muitas delas diaristas, que não têm condições de sobreviver porque o adoecimento é perverso. O adoecimento é visível para nós e tem que ser visível para essa sociedade egoísta”, comenta Débora.
Um dos caminhos tentados pelas Mães de Maio para construir essa política foi o projeto de lei (PL) 01-00734/2020, apresentado pelo então vereador paulistano Eduardo Suplicy (PT). Ele previa a criação de um Programa de Enfrentamento aos Impactos da Violência Estatal.
O PL detalha pelo menos três frentes de atendimento para os familiares: suporte institucional, proteção social e atenção em saúde. Contudo, o projeto nunca chegou a ser apreciado em plenário.
Com base nas demandas levantadas para a construção do PL, as Mães desenvolveram um projeto-piloto que atendeu mães e familiares da Zona Leste de São Paulo, em 2021. Por uma emenda parlamentar, foi desenvolvido o “Escute as Mães de Maio”. Ele sistematizou como pode ser feito o programa proposto pela PL.
Três psicólogas e uma advogada atendiam as pessoas, além de desenvolver formação. As Mães de Maio também atuavam como formadoras. O produto final, além dos atendimentos, foi uma cartilha e um documentário que ainda será lançado.
Outro trabalho conjunto entre Caaf e Mães de Maio foi a pesquisa que reanalisou os Crimes de Maio na perspectiva da antropologia forense e da justiça de transição. O documento final foi publicado em 2018 e revisitou indícios de que os ataques foram consequência da violência de Estado e que as investigações não avançaram.
Em 2022, foi publicada uma nota técnica com orientações sobre a Política de Atendimento Integral às famílias, que explica como devem ser os atendimentos multidisciplinares aos familiares de vítimas de violência do Estado. O documento foi a base para a construção do projeto que o MJSP financiou.
A nota recomenda que os atendimentos sejam prestados por uma equipe multiprofissional composta por advogados, psicólogos, assistentes sociais e sociólogos. O trabalho de intervenção deve ser feito conjuntamente visando a atenção integral.
Outro ponto que a nota traz é o protocolo de intervenção. Ele pede, entre outros pontos, que:
- Seja feita entrevista para conhecer a história da família violentada;
- Elaboração de perfil socioeconômico dos atendidos;
- Identificação de fatores de risco e de proteção relacionados aos atendidos.
No ano passado, as Mães de Maio e outras lideranças na luta por reparação participaram de um workshop realizado na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. O encontro é fruto de uma parceria com a professora Yanilda M. González. O adoecimento das mães e familiares é tema de uma pesquisa que está em curso junto à pesquisadora estadunidense.
Para a reitora da Unifesp, Raiane Assumpção, a atenção da academia com os familiares de vítimas do Estado foi fundamental para a concepção de projetos que abarcasse a experiência das mães.
“Esse trabalho já vem sendo construído com as Mães de Maio há mais de uma década. Nesse processo todo, nós fomos entendendo que discutir a questão da violência de Estado só faria sentido a partir de um processo de compreensão do que é a própria experiência das mães”, fala Raiane.