‘Fazemos apologia ao cuidado’: ato protesta contra investigação de médico-palhaço e movimento que denuncia violência policial

Manifestação nesta quinta (23) contou com música, dança e apresentações na Praça Princesa Isabel, no centro de SP; Flavio Falcone e coletivo A Craco Resiste são investigados a pedido do vereador Rubinho Nunes (PSL), do MBL

Artistas fazem malabrismos durante ato na Praça Princesa Isabel | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

Jailson, 52, costuma se apresentar como Corinthiano. Ao chegar na no Teatro de Contêiner, na Rua dos Gusmões, centro da capital paulista, ele ajudava a calibrar a caixa de som e os microfones acondicionados numa bicicleta que tinha adesivos de “IFluxo”. “Estou aqui desde 1992, já passei por muita coisa, às vezes tenho umas recaídas, mas o Flavio me ajuda muito”, contava ao mostrar a tatuagem no pulso que tem o nome do médico-palhaço Flavio Falcone.

Com apoio de coletivos e grupos de teatro, na tarde desta quinta-feira (23/9) um ato artístico na Praça Princesa Isabel foi organizado em repúdio à investigação contra o psiquiatra e o movimento A Craco Resiste, que denuncia violência policial na região da Luz, conhecida pejorativamente como Cracolândia. O inquérito aberto pela Polícia Civil começou após uma representação do integrante do MBL (Movimento Brasil Livre) e vereador Rubinho Nunes (PSL). Esse documento foi encaminhado ao Ministério Público Estadual em setembro de 2020, quando ele ainda estava em campanha eleitoral, mas os integrantes e o psiquiatra passaram a ser chamados para prestar esclarecimentos neste ano.

Na denúncia o vereador alega que a A Craco Resiste faz apologia ao uso de drogas por ter um logo que remete a cachimbos, além de um manifesto que trata de redução de danos, e pede para apurar, sem apontar indícios, uma suposta distribuição de cachimbos a usuários de drogas. O movimento, porém, atua com denúncias de violência e os integrantes afirmam que não fazem nenhum tipo de distribuição de insumos, embora a prática não seja ilegal. Um grupo de advogados, incluindo sete membros do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), entraram com um habeas corpus pedindo o trancamento do inquérito no dia 17 de setembro.

“Essa investigação é uma forma de criminalizar a redução de danos”, argumenta Flavio, que tem um projeto na região chamado Teto, Trampo e Tratamento. “O que a gente quer com esse ato é mostrar que, se nós estamos sendo alvo dessa investigação e formos penalizados sem cometer crimes, vai ser um estímulo para que outras instituições que trabalham com redução de danos serem atacadas”, complementa. “O que fazemos é apologia ao cuidado, buscamos que as pessoas sejam tratadas com dignidade.”

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Jailson leva a bicicleta de som junto com grupos e coletivos pela Rua Mauá em direção à Praça Princesa Isabel | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

Flavio, especificamente, não faz parte d’A Craco Resiste, mas apoia o coletivo. Ele passou a ser investigado ao ser identificado por fotos nas suas próprias redes sociais atuando na Luz. Uma delas é com a carroça do coletivo de arte Birico, que visa gerar renda a artistas da Cracolândia, que usou para distribuir água e fazer apresentações na Praça Princesa Isabel. A Polícia Civil colocou como legenda que seria um veículo usado para levar seringas. Atualmente, o carrinho está em exposição no painel Birico – Poéticas Autônomas em Fluxo, no Sesc Bom Retiro.

O ato teve uma breve caminhada do Teatro de Contêiner até a praça, sem fechar as vias, mas acompanhada da música “Ilusão (Cracolândia)” do MC Hariel enquanto alguns artistas vestidos de palhaços dançavam e um outro rapaz fazia malabarismos com bolinhas. Pelo menos três integrantes d’A Craco Resiste estiveram presentes, mas não fizeram falas ao microfone. Quatro membros do coletivo foram intimados para prestar depoimento. “Como já estou mais exposto do que eles por causa do trabalho e por estar sempre de palhaço, vim dar minha cara a tapa, mas todos temos receio de algum tipo de retaliação”, pontuou Falcone.

Em uma das fotos da investigação, Falcone está perto de uma carroça, na qual explicou à polícia que estava distribuindo água. | Foto: Reprodução

Na praça, o número de barracas de pessoas em situação de rua aumentou exponencialmente durante a pandemia e após o fechamento do Atende II, em abril de 2020, último equipamento de atendimento à população de rua naquela região. Ali, duas vezes por semana, o projeto Teto, Trampo e Tratamento costuma fazer slam e apresentações artísticas. A bicicleta com o som é ajustada e alguns fizeram malabarismos com objetos, dançaram e cantaram músicas dos Racionais MCs, como “Diário de um Detento” e “Homem na Estrada”.

Rodeado de algumas pessoas, Flavio contou sobre a investigação e perguntou: “quem já sofreu violência das forças de segurança?”. Os presentes levantaram a mão. Um homem falou ao microfone, com a mão enfaixada, que teria sido agredido nesta semana pela GCM (Guarda Civil Metropolitana).

MC Nego Bala, 23, nascido e criado na região, também denunciou a violência policial. “Se a GCM antes usava cassetete para oprimir, imagina com fuzil”, afirma, ao criticar o anúncio da Prefeitura feito em julho, que autorizou a aquisição de R$ 400 mil em fuzis e carabinas para a guarda. Tendo passado por internações na Fundação Casa quando adolescente e ter perdido a mãe que se envolveu com drogas, ele destaca que arte salva vidas como a sua, que virou encontrou na música, especialmente no funk um canal para se expressar. Ele já fez apresentação na Bélgica e pretende lançar seu primeiro disco ainda neste ano. Para ele, as violências na região representam um “apartheid”, com objetivo de especulação imobiliária e limpeza de negros. “Não querem saber como a pessoa chegou até aqui. Querem tirar as pessoas como se fossem lixo”.

MC Nego Bala discursa com o microfone em ato na Praça Princesa Isabel | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

Edna Muniz, 39, tem a mesma percepção. Ela integra há cinco meses o coletivo Tem Sentimento, que atua com geração de renda para mulheres cis e trans da Cracolândia, e morou na Praça Princesa Isabel. “Eu consegui um trabalho e uma moradia por causa desses projetos. Os governantes precisam ver a gente como ser humano, não como lixo”, critica. “Essa é uma questão difícil, eu como usuária também tenho meus momentos de recaída, mas o pior é estar na rua, não acreditarem em você, te negarem emprego, moradia, tudo fica mais difícil. Hoje eu me vejo bem melhor do que antes, superando e crescendo, até vou fazer curso em Sorocaba de construção de pau-a-pique”, conta orgulhosa.

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O protesto terminou por volta das 15h30 com Nego Bala cantando suas composições. A que fechou fala sobre sonhos e foi escrita quando tinha 12 anos e estava de castigo em uma de suas internações na Fundação Casa.

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