Polícia investiga médico-palhaço e coletivo que denuncia violência policial no centro de SP

Inquérito foi aberto contra coletivo A Craco Resiste após representação de integrante do MBL e vereador Rubinho Nunes (PSL), que alegou apologia ao crime; psiquiatra e ativistas consideram que investigação criminaliza movimentos sociais

Print da página do Facebook do coletivo A Craco Resiste que foi usada na representação criminal | Foto: reprodução

A Polícia Civil de São Paulo está investigando a atuação de ativistas na região da Luz, conhecida pejorativamente como “Cracolândia”, no centro da capital paulista. O inquérito foi aberto pelo Denarc (Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico) após o advogado e um dos fundadores do MBL (Movimento Brasil Livre) Rubens Alberto Gatti Nunes fazer uma representação criminal ao Ministério Público Estadual, em setembro de 2020, para apurar apologia ao crime e indução ao uso indevido de droga contra a A Craco Resiste, coletivo que denuncia violência policial no território.

Conhecido como Rubinho Nunes, o autor da representação se elegeu como vereador de São Paulo no ano passado pelo PSL. O pedido de apuração foi feito durante a campanha eleitoral na qual, em vídeo e postagem no Twitter, alegava que se tratava de uma “ONG que distribuía cachimbo na Cracolândia”. Dias antes, seu colega, o deputado estadual Arthur do Val (Patriota), conhecido como Mamãe Falei, e que concorria a prefeito, havia feito diversas transmissões ao vivo no território ao lado da GCM (Guarda Civil Metropolitana) antes das operações acontecerem e também divulgou vídeos com ofensas ao Padre Julio Lancellotti, que chegou a ser chamado de “cafetão da miséria” por atuar no local. A Justiça Eleitoral, em outubro, mandou as postagens em redes sociais serem apagadas por propaganda eleitoral antecipada e por caluniar o pároco. Moradores na região disseram à Ponte na época que as ações repressivas aumentaram e o padre também denunciou ameaças. Do Val tem pretensão ao cargo de governador nas eleições de 2022.

O pedido de Rubens Nunes contém prints da página do Facebook d’A Craco Resiste e também destaca dois parágrafos do manifesto que explica o significado do nome e do logo do coletivo, que tem dois punhos cerrados segurando cachimbos (o manifesto pode ser lido na íntegra aqui). Depois, ele copia um trecho, que está em negrito, que aparece depois da explicação do que é redução de danos: “é uma abordagem que parte do pragmatismo e do respeito aos direitos humanos. A partir do entendimento de que as pessoas continuarão usando drogas, porque não querem ou não conseguem parar, buscam-se maneiras de minimizar os impactos sobre os indivíduos e a sociedade”, aponta o manifesto do coletivo. As estratégias apontadas incluem “desde a distribuição de insumos, como cachimbos e seringas, evitando ferimentos e contaminação por doenças contagiosas, até ações que garantam moradia e possibilidade de renda aos usuários”.

No pedido, o advogado argumenta que o coletivo incentiva o uso de drogas. “Este crime pode ser praticado pela internet desde que todos os elementos estejam presentes, especialmente o ‘publicamente’, sobretudo pela atitude de distribuir cachimbos e seringas aos usuários de drogas pesadas não previne, mas provoca a disseminação”, escreveu. Ele solicita que as páginas do coletivo sejam retiradas da internet e que seja realizada apuração de “ajuda financeira a distribuição de cachimbos e seringas descartáveis aos usuários de drogas ilícitas”.

O promotor Danilo Palamone Agudo Romão, da 2ª Promotoria de Justiça Criminal da Capital, solicitou a abertura de inquérito pela polícia. O delegado Claudio Henrique Assis de Lopes instaurou a investigação em março deste ano.

Uma das pessoas intimadas naquele mês para prestar esclarecimentos é o psiquiatra e palhaço Flavio Falcone, que atua na região desde 2012 , tendo trabalhado em programas de atendimento da prefeitura e do governo do estado à pessoas com dependência química. Atualmente, ele integra o Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes, ligado ao Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo e desenvolve um trabalho chamado Teto, Trampo e Tratamento na região.

Na intimação, à qual a Ponte teve acesso, a Polícia Civil diz que identificou o médico como “defensor dos usuários de drogas” e que ele “receberia verba pública da Prefeitura da Cidade de São Paulo para a produção de suas peças teatrais, sem possuir nenhum vínculo empregatício ou estatuário”, atuaria fantasiado de palhaço num “programa chamado ‘Redução de Danos’ derivado do movimento A Craco Resiste, onde seria voluntário atuante”. Ainda é apontado que os membros do coletivo teriam autorização do PCC e fomentariam confrontos com a polícia “com o objetivo de impedir a circulação da região a fim de desenvolverem seus trabalhos sociais”.

Em uma das fotos, Falcone está perto de uma carroça, na qual explicou à polícia que estava distribuindo água. | Foto: Reprodução

Flavio explica que não integra o coletivo, teve que encaminhar todos os documentos que comprovam que teve vínculo empregatício com o poder público além de ter conseguido editais de cultura para projetos, mas assim como os colegas d’A Craco Resiste, entende que a abordagem de redução de danos é melhor que o método proibicionista, no qual a abstinência total é a regra. “A redução de danos vem sofrendo um ataque do campo da direita há pelo menos quatro anos”, afirma. “Esse campo entende que autorizando internação compulsória vai resolver o problema da Cracolândia porque, na cabeça deles, esse povo é doente, não tem capacidade e autonomia sobre a vida deles e isso, na verdade, acaba sendo lucrativo comercialmente para as comunidades terapêuticas”, critica. “A abordagem de abstinência total é uma forma de controle social porque não diferencia as pessoas que têm vício das que usam casualmente, apenas quer saber que a pessoa parou de usar a droga, sem se importar com a autonomia da pessoa, a criação de laços, moradia e trabalho.”

O médico afirma que não atua com distribuição de insumos e que redução de danos é uma abordagem, não um movimento como sugere a Polícia Civil. Existiu uma Política Nacional de Redução de Danos, instituída em 2002 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, mas que acabou sendo extinta via decreto pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em abril de 2019, movimento que foi repudiado por órgãos como o Conselho Federal de Psicologia. Dois anos antes, o então ministro da Saúde no governo Michel Temer, Ricardo Barros, hoje deputado federal pelo PP e líder do governo na Câmara dos Deputados, revogou a Portaria 1.028/2005 que regularizava as ações de reduções de danos, sendo uma delas “desestímulo ao compartilhamento de instrumentos utilizados para consumo de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência” e campanhas para educação sexual para prevenir infecções sexualmente transmissíveis. O governo federal, em 2011, também fez ações incentivo de redução de danos, distribuindo de itens como protetor labial por causa das feridas na boca com o uso de latas para fumar crack.

“É como dizer que estão fazendo apologia ao sexo por distribuir camisinha”, afirma o educador social e membro d’A Craco Resiste Raphael Escobar. Ele, que também atua no território desde 2011, enfatiza que o coletivo atua exclusivamente como movimento que denuncia violência do Estado no local e que não realiza nenhum tipo de distribuição de cachimbo, embora a prática não seja ilegal. “O que a gente faz é deixar claro o nosso posicionamento de um grupo que é antiproibicionista, contra a guerra às drogas, e o que parece é que estão perseguindo e criminalizando os movimentos sociais porque nosso dossiê também fundamentou a ação civil pública sobre o comportamento da GCM na Cracolândia”.

Ele se refere à ação impetrada pela Promotoria de Direitos Humanos para que a GCM deixe de atuar como Polícia Militar na região, cuja petição contém, além de uma apuração interna do Ministério Público Estadual, as imagens feitas pelo coletivo entre dezembro de 2020 e março de 2021 na região da Luz, na capital paulista, em que guardas aparecem espirrando spray e jogando bombas contra população de rua sem motivo. A divulgação do dossiê se deu em abril e a ação civil ainda tramita no Tribunal de Justiça.

“Não temos CNPJ, não somos ONG, não recebemos financiamento e nem temos esse papel dentro do território. Somos um grupo de pessoas, moradores, trabalhadores que se uniu em 2017 quando o [João] Doria (PSDB) ganhou as eleições da prefeitura e ficamos apreensivos de que poderia ocorrer mais uma operação Dor e Sofrimento como foi em 2012”, diz Escobar ao lembrar de repressão das forças de segurança no local durante a administração de Gilberto Kassab (PSD).

O coletivo também publicou uma nota em que aponta que o Estado tem investido mais em instrumentos de repressão, como armas menos letais, e aquisição de fuzis para a guarda, do que em alternativas que coibam o tráfico de fato e atenda a população vulnerável. “Para disfarçar essa falta de resultados, as estruturas da polícia estão sendo usadas em uma tentativa de silenciar as vozes que apontam para esses problemas. Não vão conseguir. Seguiremos com as denúncias e exigindo políticas que acolham as pessoas, como feito em várias partes do mundo”, diz trecho.

O que diz o vereador

A Ponte questionou Rubens Nunes a respeito da representação criminal que disse foi fundamentada com base em “denúncias” recebidas pelos seus canais de comunicação e que ele entende haver indícios dos crimes de apologia ao crime. Questionamos se ele tem conhecimento sobre abordagem de redução de danos e ele disse que não acredita que distribuição de insumos ajude as pessoas. “A linha entre ‘reduzir danos’ e estimular o uso é muito tênue. Acredito em outras formas efetivas de contribuir com a saúde e o bem estar destes dependentes químicos, não no uso de dinheiro público para fornecer cachimbos a viciados em drogas ilícitas”.

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Perguntamos se ele tem propostas para a região, já que não encontramos projetos de lei que tratem do assunto no site da Câmara Municipal. “Para solucionar isso, entendo que seja necessária a revitalização do espaço, bem como a realocação dos centros de auxílio a estas pessoas para locais distantes de zonas residenciais, para evitar aglomeração de dependentes nas ruas da cidade”, declarou.

O que diz o Ministério Público

A assessoria do órgão informou que a representação foi encaminhada à Polícia Civil e ainda não retornou à Promotoria.

O que diz a polícia

Pedimos entrevista com o delegado que instaurou o inquérito e questionamos sobre o conteúdo.

A In Press, assessoria terceirizada da Secretaria de Segurança Pública, encaminhou a seguinte nota*:

O caso é investigado em inquérito policial pelo Denarc. Detalhes serão preservados para garantir autonomia ao trabalho policial.

Correções

*Reportagem atualizada às 17h43 de 26/08/2021

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