Motoboy negro ficou 15 dias preso com base em um reconhecimento irregular e agora responde processo em liberdade; ‘nunca esperei ser forjado desse jeito’, desabafa
A madrugada de 4 de novembro deste ano parece não ter fim para o motoboy Gabriel Assunção de Freitas, 20 anos. Naquele dia, minutos depois de ter chegado na rua de sua casa no Parque Santo Antônio, na periferia da zona sul da capital paulista, após o expediente como entregador em uma pizzaria, um barulho de isopor quebrando chamou a atenção do jovem. Assim que saiu de casa, Gabriel se deparou com policiais militares revistando a bolsa que carregava em sua moto, questionou a ação e, em seguida, foi abordado.
“Eu achei que ia ser uma abordagem normal. Não perguntaram nada, foram retirando tudo do meu bolso. Eu vi uma policial que já estava me acusando no telefone, falando que era eu e eu sem entender nada. Depois só falaram para me algemar”, recorda. O motoboy foi encaminhado para o 11º DP (Santo Amaro), onde foi preso “em flagrante” acusado de participar de um roubo e, e só voltou para casa 15 dias depois na última quinta-feira (17/11) quando saiu do CDP (Centro de Detenção Provisória) de Osasco, na região metropolitana de São Paulo.
“Nunca esperei ser forjado desse jeito”, lamenta. “Antes eu nunca tinha sido abordado desse jeito, por isso eu sai de boa para falar com os policiais, porque eu não achava que eles iam ter essa reação. Mas foi uma coisa impressionante, eu não esperava”, relatou à Ponte. A prisão de Gabriel revoltou os vizinhos, que gravaram o momento que ele foi levado, e organizaram um protesto na comunidade no último dia 11 deste mês para cobrar a liberdade do motoboy.
Tanto a família quanto os amigos do jovem passaram uma semana buscando imagens de câmeras de segurança de todo o percurso feito por Gabriel, inclusive as registradas dentro da pizzaria na qual o jovem trabalha. A liberdade provisória só foi concedida pelo juiz Fábio Aguiar Munhoz Soares, da 17ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), após o pedido da defesa. Até hoje, a moto utilizada no trabalho continua apreendida pela polícia.
“Tudo foi bem intenso. Eu to sentindo um peso mesmo depois [da liberdade dele]. Houve uma injustiça e eu como mãe vendo ele como está, sair com esse negócio de restrições, liberdade provisória. Como assim? Como se fosse ainda um marginal”, diz, indignada, Zeneide Santos de Assunção, 46, mãe de Gabriel.
Ela conta que perdeu o emprego como babá no período em que o filho esteve preso e agora busca apoio psicológico para que ambos se recuperem do trauma que passaram. “Eu vivo preocupada, vivo tensa e angustiada”, desabafa. “Eu não acredito na Justiça, estou revoltada com a Justiça. Para mim a única justiça que existe é a justiça de Deus”, afirma.
“Para eles, se teve um assalto próximo, a pessoa que está passando se é preta e pobre eles já relacionam. E não tem a história de que a mãe chora, que vai buscar ele lá não sei aonde. Eles não dão nem o direito de investigar. A gente é que tem que fazer o trabalho deles. É isso que é revoltante”, critica.
Reconhecimento irregular e BO incompleto
Segundo o boletim de ocorrência assinado pelo delegado Rodrigo Mazzeto Hessel, os PMs Lucas Pereira dos Santos e Luiz Henrique Ferreira de Sousa receberam a informação de que a tenente Amanda Rodrigues da Silva havia flagrado um roubo praticado por seis indivíduos que estavam em três motos, um deles portando uma arma, contra quatro vítimas. No documento não consta o horário do crime, apenas que ocorreu na região do Parque Santo Antônio e que foram levados três celulares, documentos pessoais e que uma mochila com uma máquina de cartão foi encontrada no local.
Durante as buscas, os PMs relataram avistar dois suspeitos que fugiram em uma moto e deixaram para trás um revólver. Momentos depois, em outra rua, ambos avistaram uma moto “cujo motor ainda estava quente, assim como um capacete e uma mochila de entrega cor preta” e abordaram Gabriel.
Imagens obtidas pela família mostram que na noite do dia 3 e na madrugada do dia 4 o motoboy estava trabalhando na pizzaria, e trocou mensagens com a esposa pelo WhatsApp por volta das 1h da manhã avisando que se encontraria com ela e a filha do casal. Apesar de nada ter sido encontrado, o jovem foi levado para realizar um reconhecimento pessoal na delegacia que não seguiu os procedimentos previstos no artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP).
A lei prevê que, primeiro, a vítima descreva as características da pessoa e que, depois, seja colocada diante de pessoas que possuam semelhanças para que seja feito o reconhecimento. “Me colocaram sozinho na sala de reconhecimento”, conta o jovem. As características dos assaltantes também não são descritas no processo.
Apenas duas das quatro vítimas reconheceram Gabriel. Mesmo assim, durante audiência de custódia a prisão “em flagrante” do jovem foi homologada pelo juiz Fabio Pando de Matos do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e convertida em preventiva. No dia 10 de novembro, a promotora do Ministério Público de São Paulo (MPSP), Simone de Divitiis Perez, ofereceu a denúncia que foi aceita pela Justiça.
Segundo a advogada Débora Roque, integrante da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, que analisou o processo a pedido da Ponte, além do reconhecimento irregular feito com Gabriel, a prisão dele não se encaixa nos requisitos de um flagrante. O CPP prevê que o estado flagrancial acontece quando a pessoa é encontrada cometendo a infração, ou logo após cometê-la, é perseguida ou então é encontrada com objetos utilizados no crime.
“Essa presunção citada na lei não pode ser confundida com o ‘achismo’, ela deve ser embasada juntamente com indícios do caso concreto, e esses indícios não podem ser aqueles que colocariam qualquer pessoa como suspeita do crime, como foi no caso”, explica. A advogada diz que o motor da moto ser encontrado ainda quente não é um indício de que Gabriel teria alguma participação no roubo.
“Quantas pessoas poderiam ser encontradas que acabaram de desligar suas motos naquele horário ou mesmo que estivesse pilotando uma motocicleta? Isso não é algo incomum”, aponta. Para ela, a prisão do jovem mostra que parte da população, principalmente sendo preta, pobre e periférica, não existe Estado democrático de direito e o princípio da presunção de inocência.
“A polícia estava mexendo na motocicleta de Gabriel e ele não teve o direito nem de questioná-los do porquê, foi levado e acusado da prática de quatro roubos. Isso deveria estar repercutindo, a sociedade deveria estar indignada com essa situação, mas a nossa passividade só demonstra que já estamos acostumados com isso. Estamos muito longe de viver esse estado democrático de direito”, completa.
A família aguarda o fim do processo e pede ajuda, com uma vaquinha online, para arrecadar o dinheiro para arcar com os custos da defesa de Gabriel e as parcelas da moto que foi apreendida para perícia enquanto o jovem não pode retornar ao trabalho. A defesa fez o pedido para que o veículo seja liberado.
Outro lado
A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública (SSP) e a Polícia Militar sobre as irregularidades presentes na prisão de Gabriel, os motivos do boletim de ocorrência estar com informações incompletas e quais outras provas foram levadas em consideração além do reconhecimento feito na delegacia. A pasta não respondeu aos questionamentos.
“A Polícia Civil esclarece que o jovem citado foi preso em flagrante, no último dia 4, por roubo a transeuntes, pelo 11º Distrito Policial (Santo Amaro). O autor foi reconhecido por duas das vítimas e teve seu capacete e mochila identificados por três das vítimas, em conformidade com os artigos 226, 227 e 228 do Código de Processo Penal. Na audiência de custódia, a prisão do suspeito foi convertida para preventiva. Todos os procedimentos foram avaliados e acatados pela Justiça.”
Já o Ministério Público, questionado sobre as provas utilizadas para a denúncia do motoboy, apontou que foi a favor da revogação da prisão preventiva.
“A denúncia foi recebida e foi deferida a liberdade provisória ao réu Gabriel no dia 16/11, sendo ele colocado em liberdade no dia 17/11. O feito terá o andamento com a realização de audiência de instrução processual e ao final verificar o mérito da ação penal se procedente ou improcedente.”
O Tribunal de Justiça também foi procurado, mas encaminhou a seguinte nota:
“O Tribunal de Justiça não emite nota sobre questões jurisdicionais. Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente.”