Mortes de três jovens pela PM deixou em evidência uma comunidade invisível na capital da Bahia. Agora, os moradores lutam pelo fim da violência policial
Vista da Baía de Todos os Santos, as casas coloridas e desordenadas da Gamboa contrastam com os enormes edifícios de luxo da Vitória, bairro nobre de Salvador. A comunidade fica ali, colada ao tão famoso “prédio de Ivete”, o edifício Morada dos Cardeais, que virou um ponto turístico semi-oficial da cidade por ser uma das residências da cantora na cidade. Mas, ao contrário dos habitantes dos edifícios, os moradores da comunidade convivem com visitas truculentas de policiais. Na madrugada de terça-feira (01/03), uma dessas ações resultou na morte de três jovens que, segundo moradores, foram executados sumariamente. Para que a sequência de tiros chegasse ao fim, foi preciso que as luzes dos prédios se acendessem, inibindo a ação dos policiais militares.
O acender das luzes foi descrito por Ana Caminha, 48 anos, presidente da associação de moradores da Gamboa, que, de dentro de sua casa, ouviu tiros e explosões ecoarem madrugada adentro. “Não teve como a Gamboa não acordar nesta terça-feira porque foram muitos tiros e bombas”, relembra. Segundo Ana, a comunidade já está acostumada com a chegada de policiais, principalmente durante a madrugada. “A gente ouve um tiro, os meninos correm e a coisa se aquieta”, conta. Mas naquela noite foi diferente. Foram incontáveis os estrondos.
Ainda assim, mesmo com o terror daquela terça ainda latente em sua memória, Ana não hesita em dizer que morar na Gamboa é “tranquilo”. A única sensação de insegurança acaba sendo passada por homens fardados que, vez ou outra, decidem fazer da Gamboa um alvo.
Enquanto Ana conversava com a Ponte, uma outra moradora, Helena, também fazia intervenções. Ao citar as visitas feitas por policiais militares ao bairro, Helena, dona de uma venda na Gamboa, imediatamente abaixou a porta de ferro de seu estabelecimento, amassada em dois lugares, depois de serem atingidas por bombas jogadas de cima da Avenida Contorno por policiais.
“Aqui foi a bomba que ele [o policial] veio daquela vez. Ele jogou aqui. Um monte de gente aqui e ele jogou uma bomba”, mostra Helena. O que permite esse tipo de ação é a geografia da Gamboa. Existente desde o período colonial — registros do Forte de São Paulo da Gamboa, inaugurado em 1722, já citavam a comunidade de pescadores que se desenvolvia ali no entorno —, a Gamboa foi posta ainda mais às margens com a construção da Avenida Contorno, na década de 60. “ Eles isolaram a gente da cidade. As pessoas não conseguiam enxergar que tinham famílias aqui embaixo”, considera a presidente da associação.
Com a avenida, a Gamboa passou a se tornar uma espécie de mundo à parte em Salvador. Para ter acesso à comunidade é preciso descer por escadas que ficam nas bordas do viaduto. Carro não entra. Mas de uns tempos para cá, com o esforço dos próprios moradores, a Gamboa foi redescoberta por soteropolitanos e turistas. “A Gamboa, hoje, as pessoas descem com tranquilidade, frequentam a praia e os bares”, afirma Ana. Para ela, que é formada em pedagogia, mas vive da renda de um bar na região, a comunidade tem passado por um processo constante de reafirmação perante aos outros residentes de Salvador.
“A Gamboa – que abriga comunidades do Solar do Unhão e da Gamboa de Cima e de Baixo – é margeado pela Avenida Contorno e é abraçado pela Baía de Todos os Santos. Não, isso não é exagero. Os moradores dessas localidades têm como vista permanente a calmaria do mar. Para os Correios e para o Google, estes locais fazem parte do bairro Dois de Julho, mas para os moradores e frequentadores, este pedaço de terra é uma cidade em si”. Essa é a descrição da comunidade no site www.salvadordabahia.com, criado pela prefeitura de Salvador para dar indicações aos turistas do que fazer na capital baiana.
A Gamboa, no entanto, não é “uma cidade em si”. Com a construção da avenida, a luta dos moradores por direitos se intensificou. Ana Caminha conta que, assim que foi construída, com a ajuda das mãos dos moradores que trabalhavam como pedreiros, a Contorno não dava uma forma de acesso à comunidade. “O primeiro acesso depois da Avenida Contorno foi a gente quem construiu, um acesso de madeira. Um pouco depois, com um mutirão, organizado por mulheres, fizemos uma escada com pedras da praia, que é o que a gente chama de escada de alvenaria”, explica.
Daí em diante, as mulheres aparecem sempre em posição de protagonismo. Por volta de 1994, quando um surto de cólera tomou conta da cidade, as moradoras do bairro se organizam em busca de intervenção da Prefeitura de Salvador. “A Gamboa estava morrendo”, relembra Ana. Com a mobilização e a criação da associação de moradores, a comunidade conseguiu que chegasse até o bairro o primeiro cano trazendo água. “De lá para cá, a gente entendeu a necessidade de lutar por infraestrutura”, avalia.
Zeis
Com vista privilegiada para o mar e disputando território com alguns dos metros quadrados mais caros de Salvador, a Gamboa precisa resistir à atuação constante da especulação imobiliária. Em 2016, os moradores garantiram a emenda que transforma a comunidade em Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social).
Essas zonas são localidades destinadas à moradia popular, as quais a prefeitura deve proteger e assegurar a existência. A Gamboa está classificada como Zeis tipo 5, “que são aquelas que correspondem aos assentamentos ocupados por comunidades quilombolas e comunidades tradicionais, em especial aquelas vinculadas à pesca e à mariscagem”, explica texto publicado pela Fundação Mário Leal, parceira da comunidade.
O processo de regularização da Gamboa como Zeis e a regulamentação fundiária do espaço, no entanto, ainda não está finalizado. “A gente corre o risco de ser mais uma das 234 Zeis de Salvador que não seja regulamentada”, teme Ana Caminha. “A gente espera conseguir que a Zeis dê para a Gamboa a dignidade que merecemos e, com isso, a gente garanta um comprovante de residência falando Gamboa de Baixo em vez de Dois de Julho”, diz.
Ter a Gamboa transformada em Zeis aumenta a esperança de que a comunidade vai passar notada pelo poder público de Salvador e, quem sabe, respeitada pela polícia do estado. Apesar do secretário de Segurança Pública da Bahia, Ricardo Mandarino, afirmar que determinou uma “apuração rigorosa” do caso da última terça-feira, a Polícia Militar disse que não vai afastar os policiais envolvidos na ação. Enquanto a investigação acontece, as mães de Alexandre dos Santos, 20, Patrick Sapucaia, 16 e Cleverson Guimarães, 22, ainda correm o risco de baterem de frente com os homens que mataram seus filhos.
Outro lado
Procurada, a Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) pediu que a reportagem entrasse em contato com a Corregedoria da Polícia Militar do estado, que informou por nota que “até o momento não há registro na Corregedoria da PM de denúncias de moradores da Gamboa a respeito de ações policiais na localidade.
Qualquer cidadão que se sinta atingida pela ação de policiais pode procurar a Ouvidoria da Instituição (pelo 0800 284 0011) ou a Corregedoria Geral da PM (rua Amazonas, nº 13, Pituba), que funciona em regime de plantão 24h todos os dias e onde é possível realizar a denúncia de maneira anônima.“
Reportagem atualizada às 18h09 do dia 8/3/2022 para incluir posicionamento da Corregedoria da Polícia Militar da Bahia