Morto com seis tiros por policiais civis na última sexta-feira (14), Gilberto sonhava em montar estúdio de tatuagem, salvou crianças do time de futebol de um desabamento e deixa saudades na comunidade da zona sul de SP
Para além do bom desenhista e do trabalhador esforçado, Gilberto Amancio de Lima, 30 anos, carregou consigo uma história de perdas na família e ao mesmo tempo de muito empenho para dar ao filho melhores condições de vida. Gibinha, como era chamado pelos amigos, foi alvejado por seis tiros de policiais civis na última sexta-feira (14/5) por volta do meio-dia, quando ia fazer um trabalho de tatuagem em um vizinho na Favela da Felicidade, localizada no bairro Jardim São Luís, na zona sul de São Paulo.
Leia também: Policiais matam homem negro no caminho do trabalho com seis tiros na zona sul de SP
Nascido e criado na Favela da Felicidade, Gibinha é o primeiro dos quatro filhos da cuidadora de idosos Edna Aparecida Amancio, 48 anos, e também o primogênito dos sete filhos de Gilberto Barbosa de Lima, 51 anos. Além do mesmo nome, os dois trabalharam no mesmo ofício durante boa parte da vida, o de pedreiro.
Apesar de compartilharem a ocupação, os dois só voltaram a se encontrar um ano atrás, no Mato Grosso do Sul, onde o pai foi morar após o nascimento de dois filhos em SP. O outro filho é Jefferson Lima, 24 anos que, hoje trabalha como analista de dados. “Ficamos mais de 20 anos sem conhecer o nosso pai. No ano passado o Gibinha, que falava que precisava conhecer o pai, mandou uma carta para ele e ele respondeu, achamos o endereço em uma carta antiga. Ele dizia: ‘Vou fazer 30 anos, tenho um filho e nunca vi meu pai, preciso conhecer meu pai'”, relata o irmão.
Os irmãos por parte de pai foram criados sem a figura paterna, mas Jefferson também não conhecia a mãe, que também foi para o MS. “Aí a gente encontrou com eles, inclusive estava todo mundo lá, todo mundo vivo, a gente já tinha outros irmãos.”
Diferente de Jefferson, que morou a vida inteira com a avó, Gilberto foi criado pela bisavó junto com uma irmã por parte de mãe, Pâmela Aparecida Amancio, de 26 anos. Com idades próximas, os dois se divertiam na infância, apesar das adversidades. “Dormíamos em uma beliche, eu em cima e ele embaixo, brincávamos muito, brigávamos aquelas brigas de irmão, mas sempre juntos”, conta a irmã.
Leia também: A cada cinco homicídios em SP, um foi cometido pela polícia
Ela lembra do irmão com carinho. Para agradá-la, Gilberto pegava brinquedos da rua e dava para Pâmela. “Ele mexia no lixo, via alguma coisinha, chegava em casa com uma boneca, alguma coisa, aí chegava em casa e falava: ‘olha o que eu achei, uma boneca’ e eu ficava toda alegre. A metade dos brinquedos que eu tinha eram todos achados por ele, ele achava, levava e eu brincava”.
A mesma coisa era feita com Jefferson. “Eu lembro uma vez quando eu tinha por volta de 10 anos que ele me deu uma bicicleta, todo mundo tinha bicicleta e eu não tinha”, lembra.
A bisavó trabalhava na casa de uma amiga que era feirante. “Ela pagava para a minha bisavó e fazia a doação das coisas que sobravam da feira. Ela criou a gente dessa forma, até que ela se aposentou e criava a gente com a aposentadoria dela”.
A solidariedade do irmão permeou a vida inteira de Pâmela. Gilberto a ajudava a conseguir empregos, ambos começaram a trabalhar ainda na infância. “Eu comecei a trabalhar tinha 13 anos, vendendo café em barraquinhas de rua. E ele começou também bem cedo, a carregar material de construção, ajudando a pintar a parede. Depois com uns 16 anos ele tinha uma barraquinha de cachorro quente, aí ele me encaixou lá com o tempo, eu virei operadora de caixa, a minha tia também trabalhou lá, o meu tio.”
Viver com a bisavó foi uma escolha feita pelos irmãos, a mãe vivia com o padrasto e mais dois filhos. Os pais de Gilberto e Pâmela eram ausentes. Gilberto não chegou a concluir os estudos na escola, mas sempre se dedicou a ajudar a sustentar a casa e a cuidar da bisavó, que faleceu no último ano. “Minha bisavó ficou muito debilitada, ela teve um AVC (acidente vascular cerebral), e tinha convulsões, ele que cuidava dela. Ele era a mulher da casa e eu o homem, porque eu vivia na rua e ele fazendo as coisas em casa, cozinhava, arrumava, cuidava dela. Tanto que ele foi a última pessoa a trocar a última fralda dela”.
O dom de desenhar apareceu na infância, segundo Pâmela. “Ele começou desde pequeno, sempre desenhou muito bem, ele que fazia meus trabalhos de arte da escola. Conforme foi passando o tempo ele foi vendo as tatuagens pela internet, foi se interessando, conseguiu comprar a primeira maquininha, que quebrou e ele não teve dinheiro para consertar. Agora ele ganhou uma maquininha da esposa dele e voltou a fazer as tatuagens”.
O sonho de Gilberto era ter um estúdio de tatuagem no andar de cima da barbearia de um de seus irmãos, local que também funciona como bar e é um dos pontos de encontro dos moradores da comunidade. “Estávamos construindo lá em cima para conseguir fazer um estúdio de tatuagem. Falávamos para ele fazer um curso, depois que ele começasse a ter mais clientes a gente estaria ajudando no estúdio”, narra Jefferson.
A união dos irmãos permaneceu durante a gravidez de Pâmela, o filho de Gilberto é 6 dias mais novo do que o dela. “Contamos no mesmo dia que a gente ia ter filhos para a avó. Até a gravidez da ex-mulher dele nós acompanhamos todos juntos, o dia do pré-natal dela era o do meu. A vida dele era o filho, como ele estava separado da ex, ele sempre estava presente na vida do filho, ele era tudo pra ele.”
Além de se preocupar com o filho de 3 anos, Gilberto é lembrado por ter salvo a vida de crianças da comunidade nos últimos dias, quando um muro onde era construído um vestiário para o time de futebol da comunidade iria cair em cima delas. “O bloco caiu em cima dele e quase morreu. A mãe dele ficou desesperada, desolada, mas ele foi atendido por uma enfermeira da comunidade e se recuperou.”.
Além do trabalho de pedreiro e tatuador, Gibinha era conhecido por ser goleiro do time de futebol da comunidade, chamado Loco É Pouco. “Ele jogava bola desde criança, era conhecido por todos”
Família quer justiça
A morte de Gibinha gerou revolta na comunidade, que realizou dois protestos na última semana. No domingo (16/5), cerca de 130 pessoas marcharam com as palavras de ordem “A favela pede paz” e “Não vamos nos calar”, partindo da Favela da Felicidade até a Avenida João Dias, na zona sul da capital paulista.
O clima de terror vivenciado pelos familiares de Gibinha quando um muro caiu sobre ele não se compara ao sentimento de tristeza vivenciado por eles e pelos amigos do tatuador nos últimos dias.
Desde que Gilberto morreu na última sexta-feira (14), Jefferson busca mobilizar os moradores do bairro com o apoio de movimentos sociais para conseguir explicações sobre a morte de seu irmão. “Estou mais à frente, puxando, divulgando, tentando uma explicação, até agora, não ligaram para a gente, não deram uma explicação, não falaram nada. Estamos correndo atrás tentando descobrir o que que ocorreu, tentando buscar algumas câmeras, se gravaram algo”.
Segundo o analista de dados, depois que Gibinha foi morto a comunidade está com medo, algo que não acontecia antes. “As pessoas têm muito medo de se mostrar, de acontecer algo futuramente, amanhã, algo daqui a dois anos, algo daqui a sete anos, dez anos”.
Pâmela, por exemplo, explica que deixava seu filho brincando na rua e costumava voltar para casa e andar pela comunidade depois das 21h, algo que hoje ela não tem mais coragem de fazer. “Hoje eu sinto muito medo de andar aqui, eu venho ver se a minha mãe comeu, se a minha cunhada comeu, se elas estão bem, mas aí já beirando as nove da noite já tenho medo de andar, já não tem mais ninguém na rua, os comércios fecham.”
A vontade de fazer justiça se dá sobretudo ao fato de saber da índole do irmão. “Sabemos que ele não estava armado, ele não andava armado. Como é que um cara negro que está num beco de comunidade, vai sacar uma arma com três policiais armados na frente dele?”, questiona Jefferson.
Ele lembra também que os policiais são da cidade de São Bernardo do Campo ( a 31 km de distância da favela) e que raramente operações violentas ocorrem na comunidade. “A equipe deles estava muito despreparada ou com medo da comunidade. Foi uma operação muito despreparada, porque aqui entra muito policial, Polícia Civil, Força Tática, Polícia Militar e nunca aconteceu isso. Não é à toa que se chama Favela da Felicidade”.
Como apurou a Ponte em reportagem anterior, os policiais civis César Augusto de Oliveira, Emiliano Aparecido Podadera Bechelani e José Ney Lopes foram à Rua Um, na Favela da Felicidade, atender a uma ocorrência, para realizarem a intimação de uma testemunha, de acordo com o boletim de ocorrência. O depoimento que consta no documento é do policial civil condutor Rodrigo Vieira de Oliveira, que não estava no momento da morte de Gilberto.
A Secretaria da Segurança Pública do governo João Doria (PSDB) enviou a seguinte nota à reportagem: “Policiais civis da Delegacia Especializada de Investigações Criminais (Deic) de São Bernardo do Campo, ao realizar uma intimação, nesta sexta-feira (14), no Parque Santo Antônio, na zona sul da Capital, se depararam com dois indivíduos em uma viela. Um deles apontou uma arma, posteriormente identificada como um simulacro, na direção dos agentes, que intervieram. O homem foi atingido e socorrido, mas não resistiu aos ferimentos. Todas as circunstâncias relacionadas à morte do homem são investigadas pela Divisão de Homicídios do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP). As diligências estão em andamento para esclarecer o fato”.
A família ainda não denunciou os policiais à Corregedoria Geral da Polícia Civil do Estado de São Paulo.
[…] no entanto, apontam outras informações. Em imagens encaminhadas para a Ponte Jornalismo, Jeferson conta que a arma de brinquedo foi colocada pela perícia próxima de Gibinha e que na […]
[…] no entanto, apontam outras informações. Em imagens encaminhadas para a Ponte Jornalismo, Jeferson conta que a arma de brinquedo foi colocada pela perícia próxima de Gibinha e que na […]