Professora da rede pública estadual em Araraquara, no interior do estado, se assustou com face shield da Taurus. Secretaria de Educação confirma que equipamentos foram doados pela empresa
Depois de um ano longe das salas de aula, devido a pandemia de Covid-19, os professores da rede estadual de ensino de São Paulo receberam equipamentos de proteção individual (EPI) ao retornarem às aulas presenciais em março de 2021. Dentro desse material havia face shields, na tradução livre “escudo para rosto”, da marca Taurus, empresa especializada na fabricação de armas.
Se o fato passou despercebido por parte dos trabalhadores, outros notaram a marca do fabricante e ficaram preocupados com o fornecimento sendo feito por uma empresa de material bélico para servidores da educação.
“Chegou no começo do ano alguns materiais que a gente deveria usar e um deles era o face shield. Em alguns desses tinha o logo da Taurus. A gente não entendeu muito bem porque nada foi passado para a gente. Apenas tinha esse material na sala dos professores para que a gente retirasse”, relata o professor de sociologia João Lucas da Silva, que trabalha na cidade de São Carlos, no interior de São Paulo.
Na cidade de Araraquara, uma professora que prefere não ser identificada, estava de licença durante o primeiro semestre e não recebeu o seu kit, mas ao solicitar recentemente um face shield na diretoria da escola onde trabalha, recebeu uma peça com a marca da empresa gaúcha de armamentos.
“No momento eu nem me atentei, quem viu foi o professor de história e estranhou a logo de uma empresa que fabrica armas estampada na da face shield. Coloquei um adesivo com o nome SUS em cima para tampar a marca da Taurus”, conta.
A professora Fernanda Aparecida de Bernardo, 24, que atua na cidade de São Carlos, no interior, contou* que soube que a marca era de fabricante de armas quando o irmão dela viu o equipamento. “Como eu atuo na parte do Proatec (Projeto de Apoio à Tecnologia e Inovação) desde o início do ano, as aulas têm que ser presenciais, eu recebi o kit e comecei a usar, mas o meu irmão que tem interesse em armas me perguntou por que eu estava com um face shield da CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos, pertencente ao grupo da Taurus)”, disse à Ponte logo após a publicação desta reportagem.
“Qual o interesse de ter uma marca de armas no rosto dos professores? Eu acho preocupante e problemático num cenário em que está tendo flexibilização de armamento e parece alguma forma de introduzir esse meio dentro da escola”, pontua a docente.
Professores inseguros
O risco de ainda ser contaminado com o coronavírus e a relação de uma empresa de armas com a educação deixa os servidores do estado temerosos. Segundo os profissionais, apenas um kit com os EPIs foi disponibilizado durante todo o ano e pessoas dentro das escolas já não respeitam mais os protocolos de segurança.
“Não vejo ninguém utilizando as máscaras que foram colocadas nesse kit, pouquíssimos usam PFF2 e outros retiram as máscaras durante as reuniões”, conta a professora de Araraquara.
“É extremamente preocupante. A gente ver a entrada de produtos dessa empresa é um sinalizador muito forte para gente, principalmente da área de humanas que é mais ligada a essas questões, do tipo de acordo que o Estado está tendo para fornecer material no espaço escolar”, diz José Lucas da Silva sobre os protetores faciais.
Relação da Taurus com o governo de São Paulo
Quase ao mesmo tempo em que professores da rede pública começaram a utilizar protetores faciais da empresa, a Taurus deixava de fornecer pistolas para a Polícia Civil de São Paulo. Alegando falhas e disparos acidentais, a corporação está deixando de usar as armas brasileiras e passou a utilizar pistolas da Glock, de fabricação austríaca. Em 2019, a Polícia Militar do Estado já tinha deixado comprar armamento da Taurus.
Em dezembro de 2020, o Tribunal de Justiça de São Paulo liberou a empresa para que pudesse voltar a participar de licitações do estado. O governo paulista tinha aberto processo administrativo acusando a Taurus de fornecer armas fora das especificações técnicas, com defeitos que causavam, inclusive, disparos acidentais e ainda pedia que a empresa pagasse uma multa de R$ 12 milhões.
Em julho deste ano, a empresa e o estado de São Paulo foram condenados a pagar R$ 52.250 como indenização para um policial militar que teve a perna atingida após um disparo da sua própria pistola Taurus quando descia de uma viatura.
“Se de um lado, cabia à fabricante garantir patamares de excelência na produção de equipamento potencialmente mortal, desde o projeto e a escolha do material até a confecção, de outro, o Estado tinha a obrigação de adotar as cautelas de testar e de verificar o armamento antes de destiná-lo a seus agentes, especialmente considerando cuidar-se de instrumento indispensável à função policial”, declarou nos autos o desembargador Jarbas Gomes ao recusar o recurso feito pelo governo estadual.
A Taurus, segundo o seu balanço financeiro de 2020, vendeu 1,8 milhões de armas e teve um faturamento 77% maior do que no ano anterior e produziu, nas fábricas do Brasil e dos Estados Unidos, 8.200 armas por dia.
O que diz o governo
Por meio de nota, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) informou “que 225.003 unidades de face shields foram adquiridas por meio de uma doação da empresa Taurus, em setembro de 2020, para serem distribuídas às escolas da rede”. Ainda de acordo com o comunicado, “a doação foi feita por meio do Edital de Chamamento Público nº 01/2019 da Secretaria do Governo. As informações sobre a doação foram publicadas neste portal”.
Consta nesse link informado pela assessoria que a Taurus doou 243.920 máscaras à Secretaria de Educação, em junho de 2020, e 6.080 máscaras ao Instituto Adolfo Lutz, em agosto de 2020.
O órgão afirma que não existe nenhum outro material da marca Taurus utilizado nas escolas da rede.
O que diz a Taurus
Por e-mail, a Taurus afirmou que, “produziu, por meio de um projeto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e doou de forma solidária 500 mil protetores faciais modelo Face Shield para nove estados brasileiros, incluindo São Paulo”. Segundo a nota, “os equipamentos de proteção foram distribuídos aos profissionais da área de segurança, educação e da saúde que estão na linha de frente de combate ao coronavírus”.
A empresa afirma que no ano passado criou um comitê permanente para ajudar os funcionários e a comunidade da região onde atua, no Rio Grande do Sul, implementando “mais de 90 ações de prevenção que contribuíram socialmente de maneira comunitária durante esse momento de pandemia”. Entre as ações, menciona doações para a Secretaria de Saúde de São Leopoldo e doações de alimentos para as prefeituras de São Leopoldo, Sapucaia do Sul, Esteio e Cachoeirinha, todas no Rio Grande do Sul.
Reportagem atualizado em 28/8, às 9h50, com o posicionamento da Taurus
*Atualização às 14h23, de 28/8/2021, para incluir foto e relato de professora da rede pública. Colaborou Jeniffer Mendonça