Governo de SP reconhece problemas em tornozeleiras de presos que foram punidos por falhas no equipamento

Ponte revelou três casos de detentos do regime semiaberto que passaram cerca de três meses no fechado por sistema ter apontado que eles deixaram as residências fora de horário permitido em saída temporária de Natal de 2021, o que não aconteceu

Felipe*, Gabriel* e Marcio* relataram problemas com a tornozeleira eletrônica durante a saída temporária de Natal, em dezembro de 2021 | Fotos: reprodução/arquivo pessoal

“Alívio” foi a primeira palavra que a esposa de Márcio* disse quando soube, nesta terça-feira (12/4), que a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) reconheceu que o marido não descumpriu as regras da saída temporária de Natal do ano passado, a chamada “saidinha”. Ele, que cumpre regime semiaberto, foi colocado no fechado desde janeiro com outros detentos da Penitenciária Odon Ramos Maranhão, em Iperó, no interior paulista, por supostas violações que o sistema teria registrado, como deixar a residência fora do horário permitido, mas que acabaram não se comprovando. Os três denunciaram falhas nas tornozeleiras que usavam e tiveram as penalidades revistas após a Spacecom Monitoramento S/A ter periciado os aparelhos.

Dos três casos, Márcio é o que está há mais tempo no regime fechado, que foi decretado pelo juíz Emerson Tadeu Pires de Camargo, da Vara de Execuções Penais, de forma cautelar (provisória) até que a apuração do caso fosse concluída. Gabriel* e Felipe* tiveram as faltas disciplinares revistas duas semanas após a Ponte denunciar os problemas, já que a fabricante detectou falhas nos equipamentos que não foram provocadas por eles e já retornaram ao regime semiaberto – no caso de Felipe, ele agora cumpre o regime aberto, o menos gravoso.

No semiaberto, o detento pode fazer atividades externas durante o dia, como trabalhar ou estudar, e retorna à noite para unidade prisional. Apenas as pessoas que cumprem o regime semiaberto têm direito às chamadas “saidinhas” porque leva em consideração o bom comportamento, participação de atividades educativas e a retomada de vínculos familiares.

A tornozeleira de Márcio só foi recolhida pela Spacecom em 11 de março, e a avaliação, segundo a SAP, demorou 30 dias. Nesse meio tempo, apesar de ter advogado constituído, o detento chegou a fazer um pedido de liberdade provisória ao Tribunal de Justiça, escrito à mão, solicitando para que o juíz lesse a reportagem sobre o caso e que reconsiderasse o regime fechado usando argumentos da professora de Direito Penal da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Maíra Zapater, que apontou na época à Ponte que a suspensão antecipada do regime pode ser considerada “arbitrária e ilegal”.

Ele escreveu exatamente o trecho dito pela professora: “Eu entendo que a pessoa que está sendo monitorada não pode arcar com falhas da tornozeleira que não são atribuíveis à ela. Você não pode impor esse ônus que teria que ser do Estado e que caberia ao Estado determinar quais sã regras de como a pessoa se conduzir (ver Resolução 412 – CNJ – agosto de 2021). Não houve comunicação do setor com o requerente”. O detento menciona norma do Conselho Nacional de Justiça que orienta as unidades prisionais sobre como os agentes devem atuar nesse tipo de ocorrência, mas não tem força de lei por ser uma recomendação. Os próprios presos tiveram de gravar vídeos mostrando onde estavam, registrar boletim de ocorrência e buscar contato com a penitenciária para comunicar que as tornozeleiras ou apitavam dentro de casa ou descarregavam com frequência. Antes de qualquer análise, o diretor Heber Anor Janei pediu ao tribunal a suspensão provisória do semiaberto dos três, o que foi acatado pelo magistrado.

Trecho de pedido de habeas corpus escrito à mão por Márcio* em 1/3/2022 | Foto: reprodução

Para Helder Gustavo Cardoso Pedro Bello, advogado de Márcio e Felipe, esse tipo de medida antes de qualquer análise é uma “tortura psicológica”. “Fato é que, independente da situação, não haveria necessidade de castigar, punir antecipadamente alguém, por tão pouco”, declarou.

A SAP informou à Ponte que “ficou constatado que os disparos da tornozeleira foram causados por condições naturais adversas de propagação e não por problemas técnicos do equipamento ou por intervenção direta do monitorado”. A pasta não explicou que condições foram essas, mas destacou que “não ficou caracterizada a responsabilidade do preso” e que vai enviar a sindicância ao Poder Judiciário com pedido para arquivar o procedimento. O laudo da Spacecom e o parecer do diretor da penitenciária ainda não foram encaminhados ao Tribunal de Justiça e o advogado e a família de Márcio souberam pela reportagem sobre o resultado da sindicância. Depois de remetido ao tribunal, cabe ao juiz determinar o retorno do detento ao regime semiaberto.

A empresa é uma das maiores fabricantes no país e já teve contratos anteriores com a administração paulista, e voltou a ser contratada em 2018 para monitorar 7 mil presos do regime semiaberto em situação de trabalho externo e em saídas temporárias ao custo de R$ 28,3 milhões, depois de o governo romper o contrato com a Synergye Tecnologia da Informação, em 2017, por uma série de problemas por mau funcionamento.

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E o tempo que os detentos ficaram no regime fechado? Segundo Helder Bello, não é feito um desconto da pena pelo erro e caberia um pedido de indenização na esfera cível. “O Estado enxerga como se nada tivesse acontecido”, lamentou.

A professora Maíra Zapater, da Unifesp, explica que na Lei de Execução Penal a remição de pena é prevista apenas em dois casos: por trabalho e por estudo durante o cumprimento da pena (quando o detento já é condenado). “Não existe nenhuma forma de compensar esse tempo transcorrido no regime que foi decretado ilegalmente”, explica. Ela também aponta o pedido de indenização por meio de ação judicial como uma alternativa.

*Os nomes foram trocados a pedido das famílias dos entrevistados.

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