Guarda dá golpe de enforcamento em professor negro na frente do filho no interior de SP

Esposa gravou momento em que vítima é algemada e puxada pelo pescoço quando aguardavam atendimento médico para criança de 15 meses em hospital; guardas foram chamados porque homem estaria “exaltado” por questionar demora

Momentos em que o professor e engenheiro mecânico Maik Israel da Silva recebe os golpes e é algemado em Americana, no interior de São Paulo, na segunda-feira (7/3) | Fotos: reprodução

O casal Larissa Bela Fonte, 25, e Maik Israel da Silva, 35, estavam agoniados na noite de segunda-feira (7/3) por causa do estado de saúde do filho pequeno de 15 meses. “Ele estava com cólicas intestinais muito fortes, disenteria e bastante tosse e estava chorando há muito tempo em casa”, relatou a estudante. Foram ao Hospital Municipal Doutor Waldemar Tebaldi, na cidade de Americana, no interior de São Paulo, mas não imaginavam que iriam parar na delegacia.

Um vídeo gravado por Larissa em que é possível ouvir a criança chorando muito nos seus braços mostra o momento em que o companheiro recebe um golpe de enforcamento de um dos guardas da Romu (Ronda Ostensiva Municipal) enquanto outros dois o seguram com força e tentam algemá-lo. Ela grita, desesperada: “ele só pediu para ser atendido, vocês chegaram e ofenderam ele! Vocês chutaram ele, estão machucando ele na frente do filho dele! Eu só queria que ele levasse a gente para casa! Deixa ele levar o filho dele para casa!”. Ao final do registro, mesmo algemado com as mãos para trás, Maik continua recebendo o golpe pelo guarda.

De acordo com ela, o casal foi ao hospital por volta das 23h, a espera foi de cerca de uma hora e não tinha casos mais urgentes. “Passamos pelo processo de triagem e tinha poucas crianças na frente dele [para serem atendidas] e, como a criança estava chorando incessantemente, isso gera um nervosismo na gente e até nas pessoas que estavam lá aguardando atendimento”, conta. “A maior parte do tempo, nós ficamos do lado de fora da recepção, em local aberto, o Maik e eu, tentando acalmar o neném. Em determinado momento, o Maik entrou na recepção, ficou andando de um lado para o outro, ansioso. Tem uma porta de entrada para a pediatria, que é a ala de internação, que é magnetizada e tem um vidro. Ele foi olhar lá dentro se tinha crianças sendo atendidas para ver se ia demorar mais ainda e, no movimento que ele fez para olhar lá dentro, ele esbarrou na porta com o ombro e fez um barulho alto”, prossegue.

Ela aponta que, apesar do barulho, o esbarrão não causou alarde nas pessoas que estavam no hospital e que o esposo voltou para sentar num banco do lado de fora. Depois, ela foi chamada para ser atendida. “Quando eu saí do atendimento com o neném, tinha três guardas municipais já exaltados na conversa com ele. As moças da recepção [do hospital] chamaram a polícia [guardas] alegando que tinha um sujeito na recepção nervoso e dando chutes na porta”, relata. “O que nos indignou nesse momento foi o fato de as recepcionistas terem chamado a polícia sem ter conversado, sem ter perguntado qual o motivo do nervosismo. O hospital tem segurança ali naquela área que fica dentro da porta, não conversaram, chamaram silenciosamente a polícia. Eu fui questioná-las, elas alegaram que ficaram com medo porque ‘sabe-se lá o que ele poderia fazer com elas lá naquele momento à noite'”.

Larissa afirma que não presenciou o momento em que os guardas passaram a abordar o companheiro, que está abalado com o que aconteceu. “Ele [Maik] disse que os policiais [guardas] chegaram de maneira arbitrária, dizendo para ele parar de fazer graça, falaram que ele estava chutando e socando a porta do hospital, para ele se acalmar ou seria levado à delegacia”, lembra. “Nesse momento, ele não se acalmou porque não sabia porquê chamaram a polícia e que aquele fato não era verídico. Então, ele foi responder ‘não, eu não fiz nada, se você quiser a gente pode ir na delegacia, então’. Quando ele deu essa resposta, os policiais ficaram mais nervosos, houve uma discussão, foi no momento que eu cheguei, e os policiais disseram ‘nós vamos levar você para a delegacia’. Eu disse ‘não, nós vamos para casa’. E eles ‘não, seu marido pediu para ir para a delegacia, mas ele vai lá no camburão’.

Segundo ela, Maik pediu para ir no banco de trás e não no porta-malas da viatura, que é conhecido como “chiqueirinho”. “Começaram a tentar algemá-lo e, como não havia motivo para algemar e colocar na parte de trás do carro, ele resistiu obviamente a ser algemado porque seria ilegal algemar ele naquele momento. Não tinha crime nenhum. Ele resistiu, o policial disse que era desacato, mas em nenhum momento ele xingou o policial e o Maik estava calmo”, prosseguiu.

Nesse momento, ela denuncia que os guardas chutaram a perna de Maik para ele cair. “No momento que ele caiu no chão, a primeira coisa que ele fez foi se levantar e ele conta que se levantou lembrando de cenas em que as pessoas são sufocadas por policiais quando deitadas. Ele se levantou e fez força para que não colocassem a algema nele. Enquanto colocavam a algema nele, foi [o momento] que o policial veio por trás e aplicou o enforcamento no pescoço dele. Quando aplicou o enforcamento, ele deixou algemar o braço dele e, mesmo ele algemado, o policial começou a arrastar ele pelo pescoço em direção ao carro, que é o final do vídeo”.

Larissa disse que não conseguiu mais gravar após essa cena e tentou impedir a ação do guarda. “Eu falei que ia matar o pai do meu filho”. Maik foi colocado nesse camburão da viatura e a estudante perguntou qual distrito policial ele seria levado e foi até o local. Segundo ela, na viatura, os guardas ainda teriam ameaçado incriminá-lo.

No boletim de ocorrência, os guardas municipais Nelson Ribeiro e Antonio Carlos da Silva relataram que foram acionados por uma recepcionista do hospital sobre “um homem [que] estava exaltado e reclamando da demora do atendimento e que também havia dado um soco na porta de acesso à internação”. Afirmam que se dirigiram a Maik e “solicitaram que ele permanecesse tranquilo e que não voltasse a fazer distúrbios no hospital, caso contrário iriam ter que conduzí-lo até a delegacia”.

A dupla afirma que, nesse instante, Maik “desobedeceu a ordem dos guardas”, dizendo para levá-lo até a delegacia. O GM Nelson aponta que tentou conversar novamente com ele, momento em que Maik teria partido para cima dele, que foi “contido pela equipe, fazendo uso de força moderada e algemas, haja vista a resistência do autor, tanto que acabou por danificar o relógio do GM Nelson”.

O caso foi registrado no 1º DP de Americana como desobediência e resistência pelo delegado Robson Gonçalves de Oliveira e encaminhado ao Jecrim (Juizado Especial Criminal), que é voltado para infrações de menor potencial ofensivo. Maik foi liberado depois.

Segundo Larissa, a família está se organizando para uma representação por crime de racismo e serão ouvidos na Corregedoria da Guarda Municipal na próxima semana. “Primeiro pelas moças da recepção terem chamado a polícia para ele, alegando que tiveram medo do que ele poderia fazer, sendo que, se fosse uma pessoa branca, elas teriam conversado com ele ou tomado outra atitude antes de chamar a polícia”, critica. “E depois, pela abordagem dos policiais, que chegaram de forma arbitrária, usaram de excesso de violência, o ameaçaram. E, em determinado momento em que ele está dando as informações para o escrivão [na delegacia], perguntaram até que série ele fez e ele responde que é engenheiro mecânico formado e professor de matemática, a abordagem deles muda completamente: o tom de voz, a algema que o Maik pedia o tempo todo para tirar porque estava prendendo o pulso dele e estava até roxo o pulso, logo em seguida afrouxaram a algema”.

Larissa afirma que o filho está bem e que procurou atendimento psicológico para Maik, já que ele e a família estão traumatizados.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo deputado Emidio de Souza (PT), que também divulgou as imagens gravadas por Larissa, disse que enviou ofício à Prefeitura de Americana cobrando investigação do caso. “O abuso da violência contra um cidadão negro evidencia a chaga do racismo estrutural e mostra a necessidade de lutarmos contra isso. Agentes de segurança devem proteger o cidadão e não atacá-los”, disse em nota enviada à reportagem.

O que diz a prefeitura

Questionada a respeito do vídeo, da abordagem e do chamado feito pelo hospital (que é uma autarquia), a assessoria encaminhou a seguinte nota:

A Gama [Guarda Municipal de Americana] informa que na noite da última segunda-feira (7) recebeu uma solicitação via controle para comparecer à recepção do Hospital Municipal Waldemar Tebaldi, onde o acompanhante de um paciente se encontrava alterado dando cotoveladas na porta do atendimento médico.

Chegando ao local, a equipe tentou contato com o homem de 35 anos no intuito de acalmá-lo, porém o mesmo se encontrava exaltado não dando ouvidos à equipe.

Diante do fato, o mesmo foi informado que seria conduzido ao plantão de polícia civil para que fossem narrados os fatos à autoridade de plantão, momento em que o homem ofereceu resistência, sendo necessário o uso de força e algemas para a proteção de sua própria integridade física e também de terceiros para sua condução. O caso foi apresentado na central de Polícia Judiciária, onde a autoridade determinou a elaboração de um TCO [Termo Circunstanciado de Ocorrência] com encaminhamento ao JECRIM.

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Os guardas municipais de Americana, além do curso de formação, passam anualmente por um Estágio de Qualificação Profissional-EQP com mínimo 80 horas aulas teóricas e práticas fundamentais para a manutenção do porte de armas.

A partir de agora, será instaurado uma sindicância na Corregedoria para apurar os fatos.

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