Guardas simulam ataque com cão em evento para crianças dentro de escola pública em SP

Canil da GCM usou guarda negro para representar “suspeito” em evento que, segundo gestão Ricardo Nunes (MDB), apresentou “uma interação saudável com as crianças”; para especialista, ação prejudica combate ao racismo

Ao fundo, pelo microfone, uma guarda civil avisa às crianças sentadas na quadra que “da primeira vez vocês viram que ele [o cão] não pegou com força, agora a pessoa abordada vai reagir”. Em seguida, um pastor alemão conduzido por dois guardas brancos corre em direção ao guarda negro, que usa uma espécie de braçadeira para proteger o braço, e começa a latir. Um guarda branco simula se aproximar e revistar o colega, que se movimenta como se fosse escapar, e o cão morde a braçadeira e não solta.

“Agora, ele está reagindo”, avisa a guarda. Ao mesmo tempo, o guarda negro faz movimentos para simular tentativas de se desvencilhar do cachorro, chegando a levantá-lo e a rodar enquanto a mandíbula está fixada na braçadeira. As crianças gritam de surpresa e algumas batem palmas. Depois, o pastor alemão tira a braçadeira e é aplaudido.

Essa situação, gravada por uma professora, aconteceu durante uma apresentação do Canil da Guarda Civil Metropolitana (GCM) para as turmas da manhã, que são de primeiro a quinto ano, e da tarde, do sexto ao nono ano, da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Professor Franklin Augusto de Moura Campos, no bairro da Vila Gustavo, na zona norte da cidade de São Paulo, no dia 4 de setembro. Os alunos têm idades que variam de seis a 14 anos. A Ponte borrou a filmagem para preservar as identidades das crianças.

No período da tarde, além dessa simulação, funcionários ouvidos pela reportagem disseram que bombas de som foram empregadas na apresentação, o que não aconteceu para os estudantes da turma da manhã. “No começo, os cachorros brincavam com bolinha e depois a GCM simulou como se estivesse fazendo uma abordagem e colocaram como suspeito o guarda negro. Soltaram uma bomba e simularam o ataque. Eles fizeram duas vezes o ataque. Teve professor que achou lindo, aplaudiu, mas eu achei um show de horror”, afirma um deles, que pediu para não ser identificado por receio de represálias.

“Eu estava lá dentro, ouvi os barulhos das bombas e saí para ver o que estava acontecendo”, conta outro. “E alguns alunos começaram a chorar porque tem aluno com deficiência, por exemplo, tem aluno autista, tem aluno com síndrome de Down. E um dos guardas estava com uma arma que parecia metralhadora, não sei o que era. E aí os alunos falaram assim para mim ‘ele vai matar meus amigos?’. Assim, foi surreal, porque eu acho que num ambiente escolar não tem que ter arma, nem de brinquedo, sabe? E aí, para piorar a coisa, eles estavam simulando uma abordagem policial com cães. O suspeito era um GCM negro, o que eu já achei tipo um disparate porque, se o racismo é estrutural, você só reforça o racismo colocando numa apresentação uma pessoa negra como suspeita.”

Os funcionários disseram, ainda, que um dos cães quase atacou um adolescente negro do nono ano. “Enquanto o guarda estava desfilando com o cachorro, o cachorro começou a latir para esse aluno. Teve um professor que vibrou e falou assim ‘nossa, vocês viram que o cachorro foi em cima do menino?’. Eu não achei isso legal porque ele é aluno que dá problema, sim, mas escola é um ambiente de acolhimento”, declarou. Eles afirmam que houve reclamações levadas à direção da EMEF sobre o evento.

Essa apresentação do canil da GCM faz parte do programa Ação Comunitária Criança Sob a Nossa Guarda, que foi criado por um inspetor em 2003 com o objetivo de promover atividades artísticas, culturais e esportivas, como jogos, teatro de bonecos, gincanas e conscientização de questões relacionadas à cidadania e aos direitos humanos, conduzidas pelos guardas. Segundo o próprio idealizador, o objetivo é de aproximar a corporação à comunidade escolar e principalmente às crianças e aos adolescentes.

“O projeto tem a intenção de aproximar a guarda das crianças e toda a comunidade com um intuito de romper o estigma de que a polícia ou a guarda civil seja apenas repressora. Queremos que nos vejam como amigos”, disse Carlos Roberto de Souza em uma homenagem na Câmara Municipal de São Paulo, em 2015.

Nos vídeos gravados por uma professora da turma da manhã, a performance teve interação com as crianças, os cães jogavam bola, passavam por obstáculos e brincavam de buscar objetos escondidos. Não tivemos acesso a gravações de apresentações para a turma da tarde. Para os funcionários ouvidos pela Ponte, o problema da atividade foi justamente uso de bombas de som e simulação de abordagem com ataque ao único guarda negro que interpretava um “suspeito”. “Foi uma apresentação bizarra, sobretudo esse ano que a gente teve que lidar com a questão da violência nas escolas”, lamentou.

Uma pesquisa feita pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), lançada neste ano, apontou que crianças e adolescentes negros têm duas vezes mais chances de serem abordados pela polícia. Os pesquisadores acompanharam o processo de crescimento e de relação com as forças de segurança pública de 800 crianças, que tinham 11 anos em 2016, até completarem os 15 anos, em 2019, que estavam matriculados em escolas públicas e privadas da cidade de São Paulo.

Segundo os funcionários, a única ação tomada na escola no período de ameaças de ataques contra estabelecimentos escolares foi uma palestra da Polícia Militar orientando pais e responsáveis a verificarem as mochilas dos estudantes. Também disseram que não há presença de psicólogos no local e que há pelo menos um mês há guardas municipais que ficam dentro da escola e que foram chamados depois que aconteceu uma briga na porta da unidade e algumas ocorrências de furtos.

“Todo mundo que tem um senso crítico pedagógico vai achar isso absurdo”, afirma Fernando Cássio, que é professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, após analisar o vídeo da simulação de abordagem e os relatos dos funcionários da escola. “De que adianta fazer política de educação antirracista, fazer um monte de projeto de educação antirracista, e aí faz uma ação dessa na escola? Você coloca tudo a perder”, critica.

“A gente não está propriamente falando de militarização escolar, mas de um evento em que a GCM foi lá levar o canil, que é uma coisa, em princípio, bacana, que as crianças vão gostar de ver os cachorros e de ver o treinamento dos cachorros. Acho que isso até poderia ter um contorno interessante como atividade, mas é feito de uma forma totalmente arbitrária, sem perceber nenhum problema. Sem perceber que tudo é currículo, até aquilo que não diz. Até aquilo que aparentemente não faz parte da demonstração, como a escolha de fazer o papel do ladrão. Tudo isso é currículo e essa é uma demonstração evidente de que não faz sentido levar polícia para a escola”, avalia.

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Para ele, o processo de militarização que a GCM está passando, como a questão da compra de fuzis para Inspetoria Regional de Ações Especiais (Iope), que é a tropa da elite da corporação e engloba a inspetoria do canil, inviabiliza essa aproximação comunitária. “Não existe nos governos uma concepção de política de segurança pública comunitária. É um pessoal que tem a mesma cabeça de uma polícia militarizada e, portanto, faz as mesmas coisas. Eu acho que deveria ter um outro tipo de concepção de segurança pública para construir um outro tipo de interação com a educação escolar”, analisa o professor.

Cerca de 40 minutos depois que a reportagem enviou questionamentos à Prefeitura, na segunda-feira (11/9), a página na EMEF nas redes sociais divulgou fotos dos guardas com os cães interagindo e brincando com as crianças com a seguinte legenda: “GCM Canil. Tivemos o prazer de receber em nossa unidade a equipe da GCM que trabalha diretamente com os cães. Foram realizadas várias apresentações contemplando todos os nossos estudantes. Em breve termos no YouTube um vídeo com TODAS as fotos e trechos da apresentação. Obrigado.”

O que diz a prefeitura

A reportagem questionou as assessorias das secretarias municipais de Educação e Segurança Urbana sobre a apresentação, a simulação de abordagem, a presença de guardas dentro da EMEF e ações tomadas pela gestão após as ameaças de ataques contra escolas. A prefeitura sob a gestão Ricardo Nunes (MDB) encaminhou a seguinte resposta:

A Prefeitura de São Paulo informa que as Secretarias Municipais de Segurança Urbana (SMSU) e Educação (SME) possuem parceria para ações de monitoramento do entorno das unidades escolares e a GCM, por meio do programa “Criança sob nossa Guarda” realiza atividades educativas voltadas às crianças e adolescentes. Neste ano, foram realizadas mais de 100 apresentações do Canil e nunca houve qualquer ocorrência durante as performances.

A direção da EMEF Franklin de Moura Campos não registrou intercorrências durante a apresentação do Canil da GCM na unidade. Segundo a gestão, se tratou de uma interação saudável que despertou o interesse das crianças. Sem registro de reclamações por parte dos alunos, professores, pais e responsáveis.

Em todas as apresentações socioeducativas, são realizadas visitas precursoras com a finalidade de alinhar com os responsáveis todas as questões relativas à apresentação a ser executada, bem como as restrições dos estudantes, a autorização do uso de imagens para a divulgação e os equipamentos que podem ou não ser utilizados de acordo com o público presente.

Conforme propõe o Currículo da Cidade, a unidade tem realizado atividades diversas com os alunos tais como apresentações culturais e passeios. Tudo visando abrir as possibilidades de compreensão do mundo e valorização do entorno e vivências externas.

Em relação ao ocorrido no horário de saída da escola, a unidade conta com Comissão de Mediação de Conflitos que tem como objetivo atuar na prevenção e resolução de conflitos que envolvam alunos na comunidade escolar, além de realização de ações de conscientização, diálogo, combate à violência e incentivo à Cultura de Paz. Os estudantes também possuem o auxílio do Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem (NAAPA), composto por psicopedagogos e psicólogos, visando à garantia dos direitos e proteção.

Com relação ao guarda que estava interpretando o suspeito, a SMSU esclarece que os agentes que atuam nesta condição de figurantes são rigorosamente capacitados com técnicas operacionais que o habilitam para exercer tal função dentro das normas de segurança. A Corporação não compactua com todo e qualquer tipo de discriminação em relação a seus agentes.

Sobre o Canil

A Inspetoria do Canil da Guarda Civil Metropolitana foi criada pelo Decreto Municipal 39.636, de 21 de julho de 2000, e seu trabalho é voltado para o policiamento preventivo e comunitário. Atualmente, a Inspetoria conta com cães de raças variadas, dentre elas pastor-belga-malinois, pastor-alemão, pastor-holandês, pastor-belga groenendael, labrador retriever, border collie, braco alemão e sem raça definida (SRD).

Na Inspetoria, os cães são separados em três grupos: patrulhamento e detecção, que atuam em ações da GCM, bem como de busca e salvamento, em conjunto com a Defesa Civil e outros órgãos de segurança pública; atividades assistidas por animais, com apresentação em escolas e interações entre os animais e a comunidade; e intervenções assistidas por animais em ambiente hospitalar, nas quais a prática da cinoterapia está inserida.As sessões de cinoterapia auxiliam nos tratamentos médicos a pacientes de geriatria e oncologia do Hospital do Servidor Público Municipal, na Vergueiro, Zona Central de São Paulo. As atividades visam contribuir para uma recuperação mais rápida dos pacientes e seguem critérios e agendamentos definidos pelas equipes médicas do HSPM.

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