Estrangeiro mentiu sobre seu nome e sua idade ao ser detido por furto e acabou levado a unidade para adolescentes, onde foi agredido, conforme denúncia levantada pela Defensoria Pública
A Vara da Infância e da Juventude de Sorocaba (SP) instaurou um procedimento para apurar o espancamento de um jovem chileno dentro de uma unidade da Fundação Casa instalada em Sorocaba, no interior de São Paulo. O despacho, assinado pelo juiz Mario Mendes de Moura Junior, após denúncias protocoladas pela Defensoria Pública, ainda aponta outras irregularidades cometidas por funcionários da instituição que abriga menores em conflito com a lei.
As agressões contra o estrangeiro, que contou em sua chegada ser venezuelano, chamar Rafael Dias Gonzales e ter 17 anos, mas que na verdade é chileno, se chama Eder Matias Aguilera Garrido e tem 26 anos, ou seja, não poderia estar na Fundação Casa, ocorreram no dia 15 de setembro, data em que estava programado um remanejamento de quarto dos adolescentes infratores apreendidos na Unidade Casa IV de Sorocaba.
Naquele dia, segundo denúncia obtida pela reportagem, além dos funcionários lotados na unidade, chegaram para dar apoio no remanejamento o diretor regional Oswaldo Caetano Junior e outros servidores de sua equipe. A reportagem apurou que, ao chegarem, isolaram o chileno na sala de TV enquanto providenciavam a acomodação dos outros cerca de 40 meninos apreendidos no local. O estrangeiro, que estava há apenas um dia na unidade, já estava isolado dos demais garotos justamente pela suspeita de ser maior de idade.
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Quando a equipe de Junior retornou a sala teria notado que o estrangeiro havia ligado a TV. Foi o que bastou para a sessão de tortura ter início. O chileno apresentou várias lesões, inclusive chegando a sangrar, de acordo com relato ouvido pela Ponte.
Segundo o documento assinado pelo juiz da Vara da Infância e da Juventude de Sorocaba, “há relatos da prática de agressões, tortura física e psíquica promovida e disseminada pelos funcionários da DRS [Divisão Regional Sudoeste Iaras] dentro da Casa Sorocaba IV, contra os internados, e episódio específico em relação ao adolescente Rafael Dias Gonzales, estrangeiro”.
Ainda segundo o procedimento aberto pelo Poder Judiciário, “Rafael teria sido torturado por Cleber Mesquita, Eduardo Mota e Marcio Fonseca Bicudo, a mando de Oswaldo Junior”. O último, diretor de divisão, ou seja, chefe dos demais.
O documento ainda pontua que, após as agressões, Junior teria orientado que um outro funcionário relatasse no livro que o jovem havia batido com a cabeça na parede durante a contenção. Ainda segundo denúncias, os funcionários citados propagariam uma conduta de intolerância, agressividade e desrespeito ao ser humano.
Dois meses na Fundação Casa
A Ponte apurou que a história de Eder Matias Aguilera Garrido na Fundação Casa teve início após um furto de celular dentro de um shopping em Sorocaba, cidade distante cerca de 90 quilômetros da capital paulista, no dia 13 de setembro. Ao ser detido, ele contou ser venezuelano e não possuir documentos, mas que se chamava Rafael Dias Gonzales, que teria nascido em 20 de setembro de 2002, e que estava prestes a fazer 18 anos. Falando muito pouco português, ele conseguiu ludibriar o Poder Judiciário e foi internado na Fundação Casa de Sorocaba, onde ficou por 12 dias, entre 14 e 26 de setembro.
Como funcionários da Fundação Casa de Sorocaba ficaram intrigados com um jovem que não apresentou documentos, mas tinha aparência de ser mais velho, decidiram procurar o Ministério Público e obter uma autorização para o que o jovem realizasse um exame de arcada dentária no IML (Instituto Médico Legal) da capital. Com o resultado, só assim chegaram a real identidade de quem estava apreendido na unidade para menores.
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Mesmo maior de idade, o homem ainda passou pela unidade de Bauru, onde permaneceu entre 26 de setembro e 31 de outubro, até ser transferido para a Fundação Casa Vila Maria, na zona norte da capital paulista. Na unidade paulista ele permaneceu até novembro. Segundo consta nos dados da SAP (Secretaria da Administração Penitenciária), o homem deu entrada em seu sistema em 12 de novembro, quando chegou ao Centro de Detenção Provisória III de Pinheiros, na zona oeste. Atualmente, Garrido, que nasceu em julho de 1994, está detido na Penitenciária de Itaí, unidade padrão para presos estrangeiros.
Para o advogado e membro do Grupo Tortura Nunca Mais, Ariel de Castro Alves, é necessário apuração rigorosa sobre as agressões, que são indiferentes se foram provocadas contra um maior ou menor de idade. “Não se justifica a prática de tortura. Se houve tortura dentro da Fundação Casa, mesmo de um adulto, isso só é uma sinalização de que existem funcionários que cometem torturas contra internos. Esses funcionários precisam ser afastados e punidos”.
Sobre o procedimento de se manter um maior de idade na Fundação Casa, Castro Alves entende que houve um erro de procedimento. “Existe a dificuldade de verificação, de fato, é possível que aconteça, mas acho que faltou no início uma triagem ser feita. Uma verificação mais adequada em conjunto entre a Polícia Civil e a Fundação Casa”. Segundo o advogado, a situação poderia ser mais grave caso Garrido tivesse cometido algum delito contra um menor, por exemplo. “Se ele comete algum crime lá dentro a direção da instituição responde também por qualquer crime que ele pratique contra os internos que estão lá”.
Outras denúncias
Além do caso envolvendo o espancamento de Eder Matias Aguilera Garrido, o juiz Mario Mendes de Moura Junior ainda abriu procedimento para que sejam averiguadas outras denúncias de práticas ilegais na Fundação Casa.
Entre elas está a denúncia da “existência de um grupo de WhatsApp particular, que promove a exposição dos adolescentes internados por meio de fotos, além de relatos de perseguição a servidores que não compactuam com as práticas denunciadas”.
Diante das denúncias, o magistrado oficiou a Fundação Casa a entregar as cópias das anotações da enfermagem e de ocorrência sobre Rafael Dias Gonzales, que na verdade se trata de Garrido. Além das anotações da enfermagem ocorridas nos dias 14, 16, 22 e 24 de setembro.
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O magistrado ainda requisitou dados sobre o grupo de WhatsApp e os números de celulares ali constantes.
“Existem denúncias de exposição de fotos de jovens em grupos de Whatsapp de funcionários. Esse funcionário regional precisa ser afastado e investigado. Esses casos evidenciam que a Fundação Casa não conseguiu erradicar a prática de tortura e irregularidades que são mencionadas contra a Divisão Regional que atua em Sorocaba”, pontuou Castro Alves.
Outro lado
Procurado, o Tribunal de Justiça informou que “procedimentos nas Varas da Infância tramitam em segredo de justiça”. A reportagem não conseguiu contato com o Ministério Público devido ponto facultativo pelo Dia da Justiça.
Em nota enviada à reportagem a Fundação Casa informa que “a Corregedoria Geral da Fundação CASA já investiga, em sindicância, o caso do atendimento a um adulto, que no dia da sua apreensão se identificou como adolescente de origem venezuelana à autoridade policial e, posteriormente, encaminhado a um centro socioeducativo de Sorocaba. Durante o processo judicial, verificou-se que se tratava de adulto, de origem chilena, devidamente encaminhado ao Centro de Detenção Provisória. A corregedoria também apura as denúncias de suposto maus-tratos contra o estrangeiro e de divulgação indevida de imagens do atendimento à adolescentes em grupos de Whatsapp. A Fundação CASA executa medida socioeducativa com base no respeito aos direitos humanos dos adolescentes, não compactuando com práticas de violência em seus centros de atendimento”.
Já a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, também em nota, informa que “a Polícia Civil esclarece que foram utilizados todos os recursos para a identificação do autor do crime. Em 13 de setembro, um jovem se apresentou como sendo um venezuelano, de 17 anos, ao Plantão da Zona Norte de Sorocaba, ao ser apreendido após tentar roubar um celular. Na ocasião, ele não portava documentos e o procedimento de legitimação, feito através de pesquisa das impressões digitais em confronto com o banco de dados do Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt (IIRGD), ficou prejudicado porque ele não portava documentos no Brasil. Desta forma, ele foi qualificado com os dados fornecidos e encaminhado à Fundação Casa. Posteriormente, verificou-se que o homem é um chileno, de 26 anos”.
A reportagem também pediu entrevistas com o diretor regional Oswaldo Junior e seus funcionários, mas não obteve retorno. A Defensoria Pública também não se pronunciou.