Homem negro de 38 anos foi morto e teve o corpo arrastado na região do Morro do Mocotó em março de 2023, durante operação nunca divulgada pela Polícia Militar
Dentro da periferia, existe uma outra periferia. “Ninguém quer, é muito barato. Lá em cima tem rato, tem cobra. As kitnets não são tão boas. É mato, é escuro, é barro… Então, a maioria das pessoas não quer morar lá”, diz uma moradora do Maciço do Morro da Cruz.
O conjunto de favelas da região central de Florianópolis é reduto histórico da população negra da cidade e tem uma de suas pontas no bairro José Mendes. Ali, com vista para a Baía Sul, um emaranhado de comunidades sobe a encosta do Maciço, com divisões geográficas que só são conhecidas por completo por quem vive lá. Às vezes, nem mesmo por eles. É o caso do Mesão, local ao qual se referia a moradora citada no começo desta reportagem.
À sua frente, Mata Atlântica. À direita, desce a comunidade da Buraca, que recebe esse nome por ter se criado numa fenda da encosta. À esquerda, atrás da mata, está a comunidade da Mariquinha. Atrás, ficam o Morro da Queimada, o de mais fácil acesso entre todos, e o centenário Morro do Mocotó – que, por relevância histórica e desconhecimento do asfalto, é comumente usado de maneira generalizada para definir toda a região.
Certa vez, no antes vazio ponto final de todas essas comunidades, alguém resolveu fazer uma casa. Construiu o alicerce mas, no meio do processo, desistiu. A estrutura de concreto que sobrou da obra se assemelha a uma enorme mesa e nomeou o lugar, que seguiu inabitado por anos.
O tempo passou e a regra se cumpriu: toda favela cresce conforme a necessidade de sua população. Na falta de espaço mais barato, o Mesão começou a ser lentamente ocupado. Embora todas as comunidades do Maciço tenham em comum a carência no acesso a diversos direitos fundamentais, o Mesão é um dos locais de pior infraestrutura da área. O único poste que ilumina a rua de terra que dá acesso ao local, por exemplo, só foi instalado após a ocorrência dos fatos que serão narrados por esta reportagem e sem qualquer ajuda do Poder Público.
Apesar de ser ausente, o Estado conhece bem aquele local. A morte de Antônio é uma prova disso.
Conjunto de kitnets do Mesão, 23 de março de 2023. Eram pouco mais de 23 horas e Antônio, homem negro de 38 anos, se preparava para ir ao aniversário da mãe, fora da comunidade onde vivia. Levaria consigo um presente embrulhado e uma sacola de carne para contribuir com o churrasco, que já acontecia desde a tarde. Aquele seria o primeiro aniversário que Mãozinha, como Antônio era conhecido, passaria com a mãe desde que deixou a Penitenciária de São Pedro de Alcântara, na região metropolitana de Florianópolis, onde ficou durante os sete aniversários anteriores.
Antônio jamais chegaria ao destino no qual sua família o esperava – o motivo estava num matagal a poucos metros do conjunto de kitnets para onde ele havia se mudado há pouco mais de um mês. Até então, ninguém sabia, mas ali estavam escondidos ao menos quatro policiais militares. Seriam eles os responsáveis por transformar a festa em velório.
Como os policiais chegaram até ali, ninguém sabe ao certo. Há quem diga que estavam numa viatura que subiu o morro cerca de duas horas antes. O carro em questão chegou pelas Casinhas (conjunto habitacional no topo do Maciço que marca a divisa entre as comunidades do Mocotó e da Queimada) – o local fica a uma rua de terra mal iluminada de distância das kitnets. A segunda hipótese é a de que os policiais teriam subido a pé pela Buraca, comunidade na extremidade oposta do morro, que também termina no Mesão.
Como eles saíram de lá, a comunidade inteira sabe: arrastando o corpo de Mãozinha por uma corda, após executá-lo. Até este momento, somente a polícia e a comunidade sabiam disso. O que contaremos a seguir não havia sido revelado pela Polícia Militar de Santa Catarina.
A execução
O Mesão amanheceu abençoado em 23 de março. Mãozinha não era religioso, mas em sua trilha sonora naquela manhã só se ouviam louvores evangélicos. Parecia prever que algo de ruim estava para acontecer.
Passou a maior parte da tarde fora de casa. À noite, quando voltava, passou pela venda que fica na estrada de acesso ao Mesão. As pessoas que por último interagiram com Mãozinha em vida dizem que ele estava “tranquilo” ao sair, a caminho de casa, por volta das 23 horas.
Tomou um banho e iria à festa, mas, ao trocar de roupa, não demorou muito até que avistasse os policiais se aproximando. Correu para a varanda e saltou para a região de mata que fica atrás de sua casa na tentativa de fugir. Ali, foi emboscado.
Rendido no chão, Mãozinha provavelmente se lembrou de Lágrima, homem morto pela polícia exatamente um mês antes a poucos metros dali. Gritou por ajuda, mas foi em vão. Ainda teve um último suspiro de vida, quando os policiais, repentinamente, o soltaram. Correr barranco abaixo era a chance de sobreviver, mas, poucos segundos depois, vieram os estalos.
Ao menos dois policiais dispararam contra Mãozinha, que caiu em meio a pedras e plantas que compõem a íngreme encosta do morro. Morreu de imediato. Foi atingido por três tiros: um com orifício de entrada no ombro; outros dois na região da coxa. As munições calibre 556 encontradas em seu corpo não deixam dúvidas quanto ao emprego de fuzis na operação – estes, estão presentes em cada guarnição da PM que sobe os morros de Florianópolis. Além dos três disparos que mataram a vítima, outros tiros de mesmo som foram ouvidos por testemunhas naquela noite.
O corpo de Mãozinha ficou por cerca de uma hora no mato, até a chegada da Polícia Civil. Neste intervalo, mais militares já haviam se juntado à cena do crime. Como é de praxe em operações com vítimas fatais em Florianópolis, ninguém foi autorizado a se aproximar da área.
O resgate do corpo foi feito pelos policiais – militares e civis – usando uma corda. A comunidade contesta o método: “Abriram ele no tiro. E aí amarraram uma corda no pescoço dele, arrastaram o corpo dele. Isso ele já morto”, relata um morador. A corda enrolada no pescoço da vítima não foi utilizada apenas para o resgate do corpo na área íngreme de difícil acesso. Mãozinha foi arrastado desta forma por todo percurso até o rabecão que o levou embora do morro. De acordo com a PM, o procedimento de resgate de corpos é de responsabilidade da Polícia Científica.
Em contato com a reportagem, o tenente coronel André Rodrigo Serafin, que assumiu o Batalhão responsável pela ação seis dias antes da execução, afirmou que os policiais que foram ao Mesão naquela noite faziam um “patrulhamento de rotina”. De acordo com ele, essa incursão do 4º Batalhão (4BPM) não tinha um objetivo específico, sendo parte do patrulhamento ostensivo da região.
O 4BPM afirma que agiu em legítima defesa – excludente de ilicitude – e que foi encontrada uma pistola Glock de capacidade estendida junto ao corpo. A PM, no entanto, não menciona se houve tiros disparados pela vítima. Não foram apreendidas munições de pistola deflagradas. Este tipo de arma tem a traseira fechada e não costuma deixar resíduos nas mãos. A PM ainda alega que havia maconha e cocaína em posse de Mãozinha, sem especificar as quantidades supostamente apreendidas.
A origem da pistola é questionada por fontes ouvidas pela reportagem, que afirmam que a arma em questão não pertenceria à vítima e que os disparos que ouviram naquela noite tinham todos um mesmo som, sendo feitos em sequência – com exceção de um único tiro, que teria sido disparado somente após as rajadas de fuzil.
Outro ponto de divergência é a presença dos policiais dentro da casa de Mãozinha na noite do crime. A polícia afirma que todos os fatos narrados teriam acontecido em via pública, contrastando com os relatos de que haveriam entrado na residência da vítima. Não havia mandado de prisão contra Mãozinha ou mandado de busca e apreensão para sua residência. Após a morte, outras residências da redondeza também teriam sido invadidas por policiais, segundo testemunhas.
De acordo com o 4BPM, a ocorrência foi registrada por câmera corporal e “disponibilizada para a autoridade policial do Inquérito Policial e do Inquérito Policial Militar, procedimentos estes que são remetidos ao Ministério Público e submetidos a apreciação judicial”.
Na manhã seguinte, o Mocotó acordou cercado. Segundo testemunhas, cerca de dez viaturas da PM estavam na rua Silva Jardim, aos pés do morro.
“Tinha drone, moleque. Tinha uns quatro drone sobrevoando. Quando chegou os carro, já chegou os drone. O bagulho foi sinistro”, lembra um morador.
O temor por um conflito de maior proporção alterou a rotina dos trabalhadores da comunidade e fez com que a ACAM (Associação de Amigos da Casa da Criança e do Adolescente do Morro do Mocotó), principal projeto social do morro, não abrisse suas portas naquele dia. Mais de uma centena de crianças são atendidas diariamente pela organização, que já foi vítima da política de guerra às drogas empregada na comunidade diversas outras vezes.
Negando a presença de drones, a PM afirma que as viaturas na Silva Jardim tinham como objetivo “monitorar e controlar uma possível manifestação popular” motivada pela morte de Mãozinha.
O silêncio
É comum a Polícia Militar de Santa Catarina divulgar, em poucas horas ou dias, operações policiais que resultam em apreensões ou mortes. Foi assim quando morreu o adolescente Nathanael, no mesmo Morro do Mocotó, em setembro de 2021. Ou na morte de Vitor Hugo, cometida pelo mesmo 4BPM que executou Mãozinha, no Morro da Costeira, um mês depois de Nathanael.
Para além de uma obrigação legal, afinal tais operações são financiadas com dinheiro público, divulgar os resultados de suas ações o quanto antes é uma forma da polícia ditar o ritmo do que será falado sobre estas histórias. Nathanael, por exemplo, teve sua morte anunciada cerca de duas horas depois pelos principais veículos de imprensa da capital catarinense, com imagens e informações divulgadas pela própria PM.
Naquele caso, a rápida divulgação fez parte da estratégia de comunicação da polícia, que omitiu dois tiros disparados pelas costas do adolescente. Estes dois disparos foram feitos quando o jovem já se encontrava baleado e no chão. Apesar de distorcidas, a operação e a morte foram comunicadas à sociedade na época.
Uma série de apreensões realizadas em todo o Estado durante o primeiro semestre de 2023 seguiram o mesmo caminho. Três apreensões de drogas e/ou armas no Mocotó, por exemplo, ganharam publicidade entre os meses de março e maio. Todas elas sem fatalidades e divulgadas nas redes sociais da própria PM até dois dias depois de sua realização.
No caso de Mãozinha, isso não aconteceu. Mais de três meses após o ocorrido, não há uma linha sequer sobre a operação no site ou nas redes sociais da PMSC e do 4º Batalhão. Tampouco houve qualquer tipo de menção ao caso na mídia até hoje. A execução de Mãozinha foi completamente invisibilizada pela corporação e, consequentemente, pela grande imprensa.
A omissão na publicidade de mortes causadas por ela própria não está, nem de longe, relacionada à falta de comunicação da corporação durante o período. Somando-se os perfis da PMSC e do 4BPM no Instagram, foram feitas mais de 470 publicações desde a morte de Mãozinha, média superior a quatro por dia. Dentre os fatos que aparentemente são mais dignos de anúncio sob a perspectiva da Polícia Militar estão dancinhas do Leão da Proerd, o mascote do programa infantil antidrogas da PM; parabenizações a outras corporações de Segurança Pública, como a PM do Amazonas e o Exército Brasileiro; e fotografias de policiais ostentando fuzis em diversas comunidades de Santa Catarina, incluindo o próprio Morro do Mocotó. Há, ainda, mais de 40 fotografias de crianças e quase uma dezena de publicações com protagonismo canino.
De acordo com o 4BPM, a morte de Mãozinha não ganhou publicidade para que as investigações do caso não fossem prejudicadas – não informando se estas investigações já teriam sido ou não concluídas, ou o porquê de outros casos passados terem ganhado publicidade com rapidez consideravelmente maior. A assessoria da PM afirma ser impossível fazer a divulgação de todas as ocorrências da corporação. Segundo Marcelo Passamai, responsável pela comunicação da PMSC, a corporação teria “critérios de divulgação”, os quais não foram especificados à reportagem.
O homem para além do vulgo
Antônio não era Mãozinha à toa. “Ele era deficiente. Ele tinha uma mão pequena”, lembra um amigo. Nascido no Morro da Mariquinha, se mudou para a comunidade vizinha, o Mocotó, ainda muito jovem. Era considerado cria do Moca e cresceu soltando pipa pelas ladeiras do morro.
Dedicado à escola na infância, recebeu as primeiras negativas de emprego ainda na adolescência. “Por causa da mão dele era mais difícil”, lembra uma pessoa que conviveu com ele. Para uma outra atividade, que começava a se expandir em maior escala no Maciço do Morro da Cruz a partir do crescimento de facções do crime organizado, no começo dos anos 2000, a deficiência do então adolescente não era um empecilho tão grande.
Entre idas e vindas que fazem parte da trajetória de quase todo jovem de periferia que se envolve com o tráfico, Mãozinha foi ganhando influência dentro da estrutura da facção atuante nas comunidades do Mocotó e da Mariquinha. Foi preso pela primeira vez com pouco mais de 20 anos. Passou dois anos na cadeia.
Seria preso mais um vez em 2015, desta vez para ficar sete anos atrás das grades. Segundo testemunhas, a leitura e o trabalho fizeram parte da rotina de Antônio na prisão. Eram seus refúgios num local para onde ele preferia ser morto a voltar. Recentemente, havia feito o ENEM. Tinha o plano de sair daquela vida, estudar e abrir um negócio formal.
No entanto, para colocar o plano em prática, ele precisava de dinheiro. A quantia recebida pelo trabalho na Penitenciária de São Pedro de Alcântara foi suficiente só para o começo. Assim que ganhou liberdade, em novembro de 2022, Mãozinha passou um tempo fora do Mocotó e trabalhou com carteira assinada. A rotina trancado em uma sala de telemarketing e as lembranças recentes dos anos de cadeia o levaram à depressão e o novo emprego não durou muito.
Pouco depois, retornou ao morro onde cresceu. No Mocotó, voltou à antiga atividade. Afirmava a pessoas próximas que queria sair do tráfico, mas que eram poucas as oportunidades para ele em outros lugares. Nas últimas semanas de vida, ainda aguardava o retorno de um amigo que estava viajando e havia lhe oferecido uma vaga de emprego no ramo alimentício. Uma nova chance de recomeço. Não deu tempo, o 4º Batalhão chegou antes.