Homem negro foi torturado pela PM de Bauru diante das filhas de 2 e 4 anos, dizem familiares

    Vídeo registrou os apelos da família aos agentes do 13º Baep. Mecânico de 26 anos teria recebido chutes e socos até vomitar e urinar no bairro Ferradura Mirim, em Bauru, no interior paulista. “Achei que iam matar ele”, diz tia da vítima

    “Torturaram ele. Demoraram quase uma hora. Algemaram, puxaram os braços para cima e outro policial vinha e socava. Ele ficava assim: ‘Ai, pelo amor de Deus’. Eu não aguentei ver aquilo”, descreve a auxiliar de produção Hildivânia Kain Nascimento, de 49 anos, tia materna e mãe de consideração do mecânico Lucas Rafael Correia, 26, sobre a sessão de tortura a que teria sido submetido por policiais militares dia 16 de fevereiro no bairro Ferradura Mirim, em Bauru, no interior paulista. 

    Era por volta das 18h quando uma viatura do 13º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (13º Baep) entrou em alta velocidade na rua onde mora a família, na periferia da cidade. O que se seguiu à chegada dos policiais foi uma noite de pavor e desespero, como relatam familiares do rapaz, que é negro e teria sido abordado diante da companheira grávida e duas filhas pequenas. 

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    A tia conta que Lucas foi abordado enquanto andava de moto na companhia de um adolescente de 13 anos. A dupla foi separada e, sob a justificativa de que entrariam na casa para procurar documentos, os policiais arrastaram a vítima para a frente de sua própria residência. As primeiras agressões teriam ocorrido ali, embaixo da sombra de uma árvore que ocultava a cena de outros moradores da rua. 

    Hildivânia estava a algumas casas de distância e foi ao local acompanhar a abordagem, que teria sido descrita pelos policiais aos familiares como “de rotina”. Ela descreve que, neste momento, eram quatro homens “todos suados, parecia que estavam drogados”. No entanto, outras três viaturas chegaram à rua enquanto a ocorrência se desenrolava. No total, teriam sido 16 os agentes envolvidos nas agressões.

    “Por que eles não mostraram a droga pra gente? O tempo todo eu estive lá”, questiona a tia da vítima, a auxiliar de produção Hildivânia Kain Nascimento | Foto: Guilherme Matos/Ponte Jornalismo

    Família nega versão da PM

    A prima de Lucas conta que uma policial feminina afirmou que havia encontrado uma porção bruta de crack na moto da vítima. A informação é contestada pela família. “Quando ele saiu daqui [para a delegacia] não tinha nada com ele, nem mostraram nada. Quando chegaram na delegacia apresentaram, pedra, pó, dinheiro e uma cavadeira. Mas saindo daqui não tinha nada. Na moto dele não tinha nem banco. Como ia ter droga escondida lá?”, contesta a prima, que preferiu não se identificar.

    “Por que eles não mostraram a droga pra gente? O tempo todo eu estive lá”, complementa Hildivânia. Ela explica, ainda, que o objetivo da tortura era obrigar Lucas a entregar alguém do bairro envolvido com o tráfico ou com armas. “Todo enquadro aqui eles querem armas. Ou você dá ou vai preso”, informa a prima. Ela garante que a vítima não tinha nenhum objeto do tipo e nem era envolvida com traficantes.

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    Quando os policiais decidiram entrar na casa, a prima de Lucas acompanhou os agentes temendo que o jovem fosse morto e acusado de ter entrado em confronto armado. Os policiais teriam tentado impedir a entrada dos familiares, mas não conseguiram. Lá dentro, a violência teria aumentado. Hildivânia conta que os policiais “entortavam” a coluna de Lucas, puxando os braços algemados para trás e para baixo da cabeça e a vítima recebia chutes e socos. “Nessa hora eu achei que iam matar ele”, diz a tia. Os socos e chutes foram tão fortes, que Lucas chegou a vomitar e urinar com as pancadas. 

    Alheios às súplicas

    A tortura teria ocorrido na frente de duas filhas da vítima, de 2 e 4 anos. Hildivânia afirma que elas choravam e gritavam, enquanto os policiais continuavam as agressões, alheios às súplicas. “Até hoje eu estou com os gritos deles na cabeça”, emociona-se. 

    Natália Rodrigues, companheira de Lucas que está grávida, também teria sido agredida pelos agentes em dois momentos. O primeiro teria sido quando um policial tentou tirar, pegando forte pelo braço, uma bolsinha de documentos da mão da filha de 4 anos do casal. A mãe interveio e acabou sendo empurrada em cima do sofá da sala. Na segunda vez, a gestante entrou entre os policiais e Lucas, que estava no chão e recebia chutes de diversos agentes. Ao tentar impedir, ela teria sido, mais uma vez, empurrada.

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    A sessão de tortura só terminou, segundo os familiares, quando uma das testemunhas pegou o celular e começou a gravar as agressões [veja vídeo acima]. Os policiais, então, levaram Lucas para a delegacia. Ele foi preso por tráfico de drogas e está no Centro de Detenção Provisória de Bauru. A família tem um advogado, que acompanha o caso.

    PM afirma ter apreendido drogas

    No Instagram, o perfil @13baeppmesp divulgou imagens e um texto sobre uma suposta apreensão de drogas com Lucas. Na postagem, o Baep afirma que foram encontrados R$ 373 e 12 pedras de crack com o mecânico, após “busca pessoal”. A Polícia também declara que foi encontrada uma pochete na moto contendo 112 pedras pequenas e uma bruta de crack.

    “Questionado, o menor informou que recebia R$ 100 para acompanhar o condutor no transporte das drogas, escondidas em uma área de mata”, descreve a nota, a respeito do adolescente que estaria na moto com Lucas. “Caso fossem abordados, ele deveria assumir a posse das substâncias ilícitas. Com base nas informações do menor, equipes do 13° Baep, incluindo, cães farejadores, realizaram diligências na área de mata indicada e encontraram uma sacola plástica amarela contendo 639 eppendorfs de cocaína.”

    A família contesta a presença dos cães farejadores e afirma que Lucas estava em posse de apenas R$ 70, originados da venda de cobre em um ferro-velho. A prima de Lucas também alega que acompanhou as viaturas, assim que estas deixaram a rua e não viu, em momento algum, a área de mata descrita na postagem.

    A casa onde Lucas morava com a mulher e as duas filhas agora está vazia: família afirma temer retaliação | Foto: Guilherme Matos/Ponte Jornalismo

    Intimidação

    O menor de idade, que foi ficou detido, acabou liberado há alguns dias. Quando retornou ao bairro, conversou com a família e relatou ter sido ameaçado pelo Baep. Hildivânia diz que os policiais ameaçaram o jovem, dizendo que matariam a ele e seus pais, caso não atestasse que as drogas pertenciam a Lucas. A família afirma ainda que agentes do Baep têm tentado intimidá-los — visitando a rua e olhando fixamente para dentro da residência. E que, ainda na delegacia, policiais teriam dito que voltariam ao bairro para obrigar os moradores a apagar os vídeos da ocorrência. 

    Hildivânia registrou um boletim de ocorrência (BO) por abuso de autoridade no dia 19 de fevereiro. No documento, ela relata que “ainda que na noite de ontem (18 de fevereiro) duas viaturas policiais do BAEP passaram defronte sua residência olhando fixamente para o interior de sua casa. Por essa razão teme pela sua segurança e de sua filha, uma vez que durante o registro da ocorrência nas dependências do plantão policial os policiais militares mandaram que os vídeos fossem apagados e que poderiam ‘fazer uma visitinha’”.

    Ainda no BO, ela relata ter sido agredida na mesma ocasião pela policial feminina que estava no local e que ficou ferida no pescoço e no braço. A companheira de Lucas mudou de endereço para escapar das intimidações. A antiga casa, cenário da tortura, agora está vazia.

    OAB Bauru acompanha caso

    O caso chegou à Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), subseção Bauru, presidida pelo advogado Jorge Moura, pelas mãos do Vozes das Periferias — movimento social formado por mães, pais e familiares de vítimas da violência policial, criado após os assassinatos de Guilherme Alves Marques de Oliveira e Luís Silvestre da Silva Neto pelo Baep em Bauru.

    De acordo com Jorge Moura, a OAB tem acompanhado e orientado familiares para evitar que casos como este sejam arquivados e, dessa forma, legitimados pelo Estado. Na última sexta-feira (7/3), a polícia informou o presidente de que um processo interno foi instaurado e encaminhado para a corregedoria.

    “Neste caso específico, após a família buscar a comissão, oficiamos via OAB o delegado e encaminhamos dois colegas para acompanhar e registrar a ocorrência”, afirmou Moura à reportagem.

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    Para ele, ainda é cedo para prever quais serão as punições para os envolvidos. “Vai depender de como esse inquérito vai ser concluído. Se for encaminhado para uma lesão corporal, as penas são leves. Se, eventualmente, encaminhar para tortura, a punição é mais pesada. O que me chama atenção é a acusação de que houveram provas forjadas. Neste caso temos o acúmulo do crime de fraude processual. Isso tudo pode agravar”, explica ele.

    O advogado afirma, ainda, que houve um aumento da violência policial desde que Tarcísio de Freitas (Republicanos) assumiu o Governo do Estado. “O governador implementa através de [Guilherme] Derrite [Secretário da Segurança Pública de São Paulo] uma política de violência. Ele utiliza a Polícia Militar para promover a violência e, na nossa avaliação, mais ainda contra a população preta e periférica. Os números mostram um crescimento de mortes por intervenção policial na gestão Tarcísio”, diz Jorge Moura.

    Em Bauru, dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP) revelam que, em 2022, antes de Tarcísio, foram duas as mortes decorrentes de intervenção policial. Em 2023, o número saltou para 8. No ano passado, foram 14 mortes — um crescimento de 600% entre 2022 e 2024.

    Para coibir a violência, o presidente promete “acompanhar e denunciar todas as violações que os agentes do Estado cometem”. “O país tem um conjunto de normas que não pode ser descumprida porque o agente entende que ele é uma autoridade. Nosso papel vai ser colocar freio para poder equilibrar as forças e garantir que o cidadão tenha os seus direitos fundamentais respeitados”, finaliza o presidente. 

    O que dizem as autoridades

    A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) foi procurada pela Ponte para prestar esclarecimentos sobre o caso, mas não se manifestou até o momento. O espaço segue aberto.

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