Homens negros têm 3 vezes mais chances de morrer por arma de fogo do que não negros

Levantamento do Instituto Sou da Paz revela que vítimas representam 79% das 417 mil mortes praticadas com arma de fogo no país entre 2012 e 2022

Performance artística com atores na Marcha pelo Dia da Consciência Negra de 2023 | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

O assassinato do ativista Pedro Henrique Santos Cruz Sousa, de 31 anos, vai completar seis anos em dezembro. Ainda não teve um desfecho. O jovem negro foi baleado enquanto dormia na sua casa em Tucano, interior da Bahia, em 2018, e a suspeita é de que policiais sejam autores do crime. Assim como Pedro, homens negros têm três vezes mais chances de morrer por arma de fogo do que não negros — é o que demonstra um estudo do Instituto Sou da Paz sobre o impacto da violência armada nas vidas masculinas lançado esta quarta-feira (20/11), em que é lembrado o Dia da Consciência Negra.

Leia também: Uma pessoa negra é morta a cada quatro horas pela polícia, diz estudo

De 2012 a 2022, o Brasil contabilizou mais de 562,7 mil homicídios de homens, dos quais 417 mil foram cometidos com o uso de armas de fogo. Isso representou 37,9 mil homens em média mortos a tiros por ano, segundo a terceira edição da pesquisa Violência Armada e Racismo: o papel da arma de fogo na desigualdade racial. O trabalho foi feito a partir da análise de informações do Ministério da Saúde, por meio do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) — este último que trata das ocorrências não letais —, consolidados em 2022.

Das vítimas de homicídio, 79% foram identificadas como negras (pretas e pardas) e 19,8% como não-negras (engloba brancos, amarelos e indígenas). Isso não significa, porém, que esse público é o mais vitimado por conta de a população negra ser maioria no país. Quando se analisa a taxa, que é justamente o cálculo que considera os casos pela população, o estudo mostra que a questão racial fica evidente. Enquanto para homens não-negros a taxa é de 14,7 vítimas de arma de fogo por 100 mil homens, a de negros é três vezes maior: 44,9 por 100 mil.

‘Perfil que é sempre o mesmo’

Coordenadora de projetos do Sou da Paz, Cristina Neme pondera que o número de homicídios pode ser maior devido à baixa qualidade dos registros do sistema da saúde, uma vez que a partir de 2018 houve um aumento de notificações das “causas externas de mortalidade não determinadas”. Um estudo divulgado em junho deste ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) já tinha sinalizado essa questão ao estimar em 128.567 os homicídios ocultos entre 1996 e 2021 por causa dessa classificação no SIM. Os dados do ministério não são os mesmos da segurança pública, pois não consideram boletins de ocorrência e sim os atendimentos nas unidades de saúde.

Por outro lado, existem outros fatores, segundo a pesquisadora. A pandemia de Covid-19, que assolou o país entre 2020 e 2021 com o período de isolamento social, e “rearranjos da dinâmica de grupos criminosos”, que também podem ter contribuído para uma tendência de redução dos homicídios. “Ainda que tenha ocorrido uma redução [no número de homicídios], tem um perfil que é sempre o mesmo e que está mais vulnerável a sofrer os impactos da violência armada”, assinala ela.

“Entendo que há vulnerabilidade maior dos homens negros, especialmente dos adultos jovens negros, à violência urbana — que é a violência que acontece na rua, que pode ter um caráter de conflitos criminais, em que a arma de fogo é um fator preponderante entre os grupos que entram em conflito para dominar territórios, por exemplo. E a população negra fica mais submetida a isso, seja como moradora dessas comunidades, seja como suscetível ao envolvimento também desses jovens nessas dinâmicas que acabam tirando a vida das pessoas.”

A maioria dos homicídios por arma de fogo ocorreu em via pública (50%), ou seja, ruas e estradas. Em seguida, 11,2% foram em residência e 7,8% em habitação coletiva, áreas industriais e em construção, entre outros locais especificados. 26,3% não houve identificação do espaço.

A frequência da vitimização por arma de fogo está concentrada nas faixas etárias de 20 a 29 anos (43%) e de 30 a 59 anos (40%). Crianças e adolescentes, com idades de 10 a 19 anos, equivaleram a 14%. Quando comparados o local e a faixa etária, as crianças de 0 a 9 anos são mais vitimadas dentro de casa, enquanto jovens e adultos sofrem mais violência nas ruas.

Disputas territoriais

O estado da Bahia, onde Pedro Henrique vivia, é o segundo com a maior taxa de homicídios de homens negros por arma de fogo: 90,4 para cada 100 mil homens em 2022, atrás apenas do Amapá (97,1).

Cristina traz como contexto o surgimento e expansão da facção Bonde do Maluco (BDM) a partir de 2012, cujas disputas territoriais com outros grupos criminosos, especialmente na capital Salvador, com o auge entre 2013 e 2018, e associadas a um aumento de operações policiais resultaram em um aumento de mortes violentas, especialmente da juventude negra. “Passado esse momento de crise, é seguido por uma ‘paz armada’, que é uma ‘paz’ que vem depois dos rearranjos, que são frágeis”, explica.

Na outra extremidade, está São Paulo que, apesar de ter a menor taxa entre os estados, também tem negros como o principal alvo — ainda que não sejam a maioria da população (9,4 vítimas de arma de fogo a cada 100 mil homens ante a 6,3 de não negros). “São Paulo é a exceção à regra, mostra um processo diferente na medida em que não tem disputa de grupos criminosos”, analisa ela, em referência à hegemonia do Primeiro Comando da Capital (PCC).

A pesquisadora aponta a necessidade de políticas públicas que tenham um viés mais preventivo do que repressivo para que mais vidas não sejam ceifadas. E cita como boas iniciativas o programa Fica Vivo!, instituído em 2003 pelo governo de Minas Gerais, e Cada Vida Importa, criado em 2017 no Ceará — como exemplos de políticas intersetoriais, que envolvem ações de saúde e assistência social em conjunto com a sociedade civil.

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“O homicídio é complexo, tem vários fatores que levam a esse fenômeno, mas ele é muito localizado, não está espalhado igualmente em nossa sociedade”, afirma Cristina Neme. “É um fenômeno que fica invisível para parte da sociedade que, muitas vezes, é formadora de opinião e a política pública não sai do tradicional, do mais do mesmo, reforçando linhas apenas repressivas ou o famoso ‘enxugar gelo’, que só resolve pontualmente através de uma intervenção para agir sobre a emergência, mas depois não mantém o Estado funcionando para de fato provocar a retração desses indicadores de violência.”

Para a coordenadora do Sou da Paz, “tem que ser o Estado tomando o território não só com polícia, mas com política pública de caráter social”.

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