Hugo, acusado injustamente por roubo: ‘por ser pobre, a polícia acha que a gente não tem direitos’

Após quase dois meses, jovem foi solto para responder processo em liberdade; ele e a amiga estão sendo acusados de roubo quando saíram para beber e foram abordados pela PM e depois reconhecidos de forma irregular em Diadema (SP)

Hugo ao lado da família em Diadema | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Dentro da casa do operador de máquina Hugo Gomes Silva, 24, o tempo estava totalmente diferente da garoa fina, da neblina e do frio de Diadema, no ABC Paulista. Cozinha cheia de parentes, sorrisos largos e a mesa recheada de churrasco: “Estamos comemorando o ano novo que a gente não teve”, explicava, em êxtase, a auxiliar de logística Simone Gomes, 38, tia de Hugo.

Quando nos recebeu, Hugo estava há cinco dias fora das grades do Centro de Detenção Provisória (CDP) de Diadema, após o pedido de liberdade provisória feito pelo advogado Ewerton Carvalho ter sido concedido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, na quarta-feira passada (22/2). “Eu fiquei surpreso porque eu não tinha recebido nenhuma notícia”, conta o jovem. O alvará de soltura tinha saído ainda na quarta-feira, mas chegou ao CDP no dia seguinte e Hugo foi liberado só no final da tarde de quinta-feira (23/2), abraçado ao advogado, à tia e a à amiga Debora Santana dos Santos, 25, com quem é acusado de ter participado de um roubo em dezembro de 2022, que lutam para provar a inocência.

Dali, um dos primeiros passos que teve foi buscar seu antigo emprego. “Eles me aceitaram de volta, conversei tudo direitinho para poder voltar a trabalhar porque é um emprego bom, perto de casa, e eu nunca precisei disso [roubar]”, conta, aliviado. “Eu já trabalhei em gráfica e esse emprego eu tô desde os 18 anos, montando peça de máquina.”

Hugo conta que nasceu na capital paulista, mas a família já morou em São Bernardo do Campo até se mudar para Diadema. Órfão de pai e mãe, é a tia e a avó que tem como suas maiores referências. “Enquanto ele esteve preso, todos os dias eu dormia na cama dele”, afirma a avó Ana Lúcia, 64, a quem chama de mãe. “A gente sempre via na TV uns casos absurdos de crimes, de violência, e quando você vê que é inocente que está indo para prisão, como você pede prisão perpétua, pena de morte e essas coisas?”, completa Simone, que estava se preparando para mais uma jornada de trabalho.

Hugo ficou quase dois meses presos e luta para provar inocência em roubo | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Durante os quase dois meses encarcerado, o rapaz revela que se apegou a fé. “Querendo ou não, a gente fica revoltado com a situação. A gente pensa ‘o que eu tô fazendo aqui? Por que eu tô aqui? Por que Deus quis me colocar aqui?’ Mas eu comecei a conversar com Ele e aquilo começa a te trazer uma calma, que eu preciso ir para o caminho certo, não posso criar ódio no coração pela situação”, conta.

Dentro da unidade prisional, ele lembra que passou por momentos difíceis, como a falta de acesso a remédio após ter contraído uma virose durante o regime de observação (RO), quando a pessoa presa fica de 15 a 30 dias sem visitação ao entrar na unidade prisional, em que aponta ter dividido a cela com outras 23 pessoas. “A gente chama de 20 dias de castigo porque você não tem nenhuma assistência médica e só dão assistência médica quando você está quase morrendo, se não você fica por sua conta mesmo”, lamenta.

“Eu fiquei uma semana de virose, uma semana pedindo [para ir para] pronto-socorro, porém, toda a vez eles [carcereiros] alegavam que não tinha enfermeira, só soro. Eu peguei virose por causa da água porque não tinha limpeza, vinha suja, tanto que a gente pedia para as pessoas das celas de cima um pouquinho de Cândida [água sanitária] para colocar uma gotinha na nossa água para tirar a sujeira”, denuncia.

Ele aponta que, para quem está dentro do sistema penitenciário, é difícil pensar numa perspectiva de ressocialização. “É muito descaso e muito maltrato. Teve um dia que eles [policiais penais] entraram para revistar a cela, mandam a gente agachar, tirar a roupa, torcer o chinelo. E se você erra, eles batem. Eu não apanhei, mas já ouvi relatos e já presenciei. Um rapaz que estava na minha frente apanhou porque não pediu licença para o policial. E ele não entendia também porque era primário”, conta.

A violência policial não foi vista apenas dentro das grades pelo operador de máquina. “De levar preso, essa foi a primeira vez, mas de ameaçar levar já aconteceu. De xingar primeiro e depois perguntar o seu nome. De te jogar na parede e mandar levantar a mão ao invés de perguntar seu nome ou olhar seu bolso e ver que tem uma carteira de trabalho. Com roupa de trabalho eu já fui abordado. Já olharam minha mochila, fizeram eu jogar as coisas tudo no chão pensando que tinha droga ou algo do tipo”, afirma.

Hugo tem tatuada na pescoço a frase “Só Deus pode me julgar” | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Hugo também ressalta que os policiais o discriminam por ter tatuagens. No dia em que saiu com Debora para ir beber em uma praça e dois foram abordados, ele tinha acabado de registrar a frase “Só Deus pode me julgar” no pescoço. “Eles veem nossas tatuagens e acusam a gente de algo que a gente não é. Não é porque eu tenho uma tatuagem que vai chamar a atenção dele que eu sou um bandido. Eu trabalho, nunca precisei [roubar] e nunca tirei nada de ninguém”, ressalta.

O jovem conta que quando foi esperar Debora numa das praças que haviam combinado para beber, ele viu um grupo de pessoas correndo e depois apareceu uma viatura no local. “Eu fiquei [ali] porque eu não estava fazendo nada de errado, só estava sentado esperando minha amiga”, lembra. Ele afirma que foi abordado, que os policiais questionaram o que ele estava fazendo na praça e que um deles passou a mexer no seu aparelho celular. “Ele pediu para eu desbloquear, eu deixei porque eu não tinha nada de errado”, prossegue. Contudo, policiais não podem vasculhar celular sem ordem judicial.

“Aí ele pediu para eu aguardar. Fiquei aguardando. Veio um outro policial perguntado mais agressivamente quem eram os meninos pulando do carro e correndo e eu disse que não sabia porque realmente não vi ninguém”, relata. “Daí ele falou assim ‘vamos trocar um papo’ e ele fez o sinalzinho de querer alguma coisa”, diz Hugo fazendo sinal com os dedos como se fosse dinheiro. “Nisso, eu falei ‘não tenho nada”. Em seguida, Debora foi abordada, segundo ele, e os dois foram fotografados pelos policiais. E que ali ainda permaneceram por muito tempo até serem levados para a delegacia.

“Eu lembro dele desesperado na delegacia falando ‘tia, armaram para mim'”, afirma Simone.

Hugo e Debora estão sendo acusados de roubar os pertences e o carro de uma mulher que estava com o filho de 15 anos em Diadema, em 27 de dezembro do ano passado. Os dois foram abordados em uma praça onde havia um outro veículo furtado nas proximidades — dentro desse veículo estava o celular dessa mulher que foi roubada. Já o carro dela foi encontrado em outro endereço.

Os jovens denunciam que foram submetidos a reconhecimento irregular, onde Hugo foi apontado como um dos ladrões pela vítima por estar usando um boné vermelho. Já Debora foi reconhecida sozinha, sem a presença de outras mulheres que tivessem características semelhantes.

No auto de reconhecimento em que a vítima do roubo realizou, o delegado João Claudio Pereira Paes confirma com todas as letras que Debora foi colocada sozinha “por não haver outras mulheres no local e horário para se fazer a comparação” e que foi reconhecida. Também não há detalhes de que características a vítima descreveu. No boletim de ocorrência, ela diz que a suspeita tinha apenas “cabelos grandes”, característica parecida com uma peruca que foi apreendida pela Polícia Civil. Contudo, Debora tem cabelos curtos e crespos.

“Por você ser pobre, acham que você não tem valor, não tem direito”, diz Hugo | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Em relação a Hugo, o delegado descreve que, no local para o reconhecimento “se encontravam várias pessoas”, mas não especifica quem nem quantas seriam elas e nem as características físicas. No BO, é informado apenas pela vítima que três homens e uma mulher a roubaram, sendo que um dos homens usava boné vermelho. Foi por usar boné vermelho que Hugo acabou apontado como um dos assaltantes e preso.

Contudo, a jovem, os familiares e a defesa deles reuniram uma série de imagens de câmeras de segurança e mensagens que os dois trocaram para demonstrar a cronologia do trajeto deles. Outro problema é que o boletim de ocorrência não informa o horário exato do roubo para comparar com o período em que a dupla estava se dirigindo à praça.

Pelos relatos de Debora e Hugo, pelas informações no inquérito e análise de advogadas criminalistas ouvidas pela reportagem, o reconhecimento aconteceu de maneira irregular, ferindo o artigo 226 do Código de Processo Penal, que prevê que a vítima deve descrever as características, depois são selecionadas pessoas que tenham semelhanças com as descrições, que são colocadas juntas, e é feito o reconhecimento. Reconhecer por foto antes de descrever, apresentar apenas um retrato ou uma única pessoa para a vítima são formas que acabam enviesando e contaminando o procedimento, como a Ponte já denunciou em diversos casos e entrevistas com especialistas que pesquisam o assunto.

Por causa desses tipos de indução e falhas no procedimento, o CNJ publicou resolução, em dezembro de 2022, que estabelece diretrizes para os reconhecimentos fotográfico e presencial de pessoas a fim de evitar prisões e condenações de inocentes. A medida entra em vigor em março.

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Para Hugo, a injustiça que defende estar sofrendo tem nome. “Por você ser pobre, acham que você não tem valor, não tem direito. Se você é pobre e um policial diz que vai entrar na sua casa, ele vai entrar. Em um condomínio, ele não vai entrar. A gente não tem valor e não tem direitos para a polícia”, lamenta.

Ele sonha, além de provar sua inocência, de seguir caminhando nos estudos. “Eu quero fazer meu curso de Logística, para poder trabalhar futuramente, ter meu negócio e poder ajudar o próximo, ler meus livros e estudar”, afirma ao mostrar o livro A Arte da Guerra, de Sun Tzu, que ainda estava com a página marcada de quando começou a ler antes de ser detido e que pretende terminar.

O que diz a polícia

A reportagem questionou a Secretaria da Segurança Pública a respeito da denúncia de Hugo e aguarda resposta.

O que diz a Secretaria de Administração Penitenciária

A Ponte encaminhou os relatos do jovem sobre o tratamento dado aos presos no CDP de Diadema. A pasta negou as irregularidades na seguinte nota:

A Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) informa que os relatos não correspondem a conduta nos presídios do Estado.

A SAP possui equipe de saúde para atendimento aos presos, além de realizar encaminhamentos ao Sistema Único de Saúde quando o caso requer. Hugo Gomes da Silva foi atendido pela equipe de saúde do CDP sempre que solicitado, passando por atendimento duas vezes em um período de 20 dias, enquanto estava em regime de observação.

O egresso teve sua integridade física preservada durante todo o seu período na unidade. Ele recebeu visitas de sua irmã, advogado particular e defensor público no tempo em que passou custodiado e não há registro de denúncias de sua parte. É importante salientar que em nenhum momento há relato de maus tratos por parte de outros presos da unidade, inclusive o CDP recebe visitas mensais da Juíza Corregedora, que conversa individualmente com os detentos, não havendo qualquer apontamento da autoridade sobre abusos na unidade. A pasta também informa que a limpeza dos reservatórios e caixas d’agua é realizada com a periodicidade de seis meses conforme exigência da Anvisa, o que garante água limpa a todos os presos do local.

Reportagem atualizada às 14h, de 7/3/2023, para incluir resposta da SAP.

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