Ofensas e ameaças fazem parte do ciclo de violência contra a mulher, que pode terminar em morte; feminicídios crescem 41% nos dois primeiros meses de isolamento em SP
Grande São Paulo, 29 de maio, sexta-feira. Em um condomínio rico do bairro de Alphaville, a Polícia Militar recebe um chamado de violência doméstica. O empresário Ivan Storel, 49 anos, visivelmente alterado, humilha e tenta enxotar os PMs, mas acaba detido. Na delegacia, a mulher disse que o marido estava agressivo e a chamou de “idiota, vagabunda e puta”, além de fazer ameaças, e, por isso, ela ligou para o 190. Apesar de ter registrado o boletim de ocorrência, a vítima acabou decidindo não dar continuidade à denúncia.
A violência contra a mulher do caso acabou ofuscada pelo fato de o empresário ter ofendido os policiais. O vídeo caiu na internet e viralizou: “Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta”, gritou o suspeito para a autoridade policial, evidenciando o desrespeito e o caráter machista na frase usada para tentar demonstrar superioridade. Storel gravou um vídeo pedindo desculpas ao PM e dizendo que está passando por tratamento psiquiátrico.
Presidente Prudente, interior do estado, 23 de março, segunda-feira, início do isolamento social por causa do coronavírus. Uma mulher apanha do irmão e, por temer perder a vida, chama a polícia. O PM, também homem, chega até a casa e agride a vítima. O motivo teria sido um incômodo ao ser questionado pela jovem, fragilizada e nervosa após as agressões sofridas, se o policial levaria o irmão até a delegacia para registrar o B.O..
Embora tenham acontecido a uma distância de quase 600 km, as duas situações guardam em comum o cenário da violência doméstica contra a mulher, que se agravou na pandemia por causa do isolamento, mas nem todos os números demonstram isso.
Os casos de feminicídio no estado de São Paulo aumentaram 29% no primeiro quadrimestre de 2020. O registro de violência doméstica, no geral, no entanto, diminuiu. É o que apontam os dados da Secretaria da Segurança Pública do estado. Em março de 2019, por exemplo, aconteceram 13 feminicídios. Em março deste ano, quando o isolamento social teve início, 20 assassinatos de mulheres foram registrados em todo o estado. Em abril, houve aumento também: foram 21 mortes em 2020, frente aos 16 casos no ano passado.
Segundo o levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as ligações para a Polícia Militar (190) para denunciar violência contra a mulher aumentaram 44,9% em março. No entanto, como demonstra a primeira história que abre a reportagem, nem toda chamada gera um boletim de ocorrência ou mesmo uma representação judicial contra o agressor. Muitas vítimas abrem mão de seguir adiante com a denúncia por diversos fatores. Dependência emocional e financeira são dois deles.
As lesões corporais, ameaças e estupros diminuíram, tanto quando analisamos o quadrimestre, como nos dois primeiros meses de isolamento. Em março e abril deste ano, os registros de ameaça caíram 33% na comparação com o mesmo bimestre de 2019; 408 mulheres foram estupradas, uma redução de 25%, e os casos de lesão corporal reduziram 22%. O crime de calúnia, injúria e difamação teve a maior queda: foram 470 denúncias em abril deste ano, contra 1.113 no mesmo mês do ano passado, uma redução de 58%.
Ou seja, a diminuição dos registros de boletins de ocorrência, base das estatísticas da Secretaria de Segurança Pública, não significa que as mulheres estejam apanhando menos. É o que afirma a delegada Jamila Jorge Ferrari, coordenadora estadual das Delegacias de Defesa da Mulher em SP.
“Oficialmente, houve uma diminuição nos registros de ocorrência de violência doméstica, o que motivou a criação de um canal online. Isso garante que a mulher se preserve, seja preservar a saúde [ao não precisar sair de casa], seja porque esse agressor não permite ou ela tem medo. Ela pode registrar na delegacia eletrônica”, aponta Jamila.
Com os registros online, a Polícia Civil tem conseguido mais detalhes sobre as violências domésticas durante a quarentena. “Muitas delas, até pela facilidade da ferramenta, têm dado muitas informações importantes para gente sobre esse agressor, sobre realmente o que aconteceu. Isso tem ajudado bastante para que a gente consiga pedir as medidas protetivas”, completa a delegada.
Um estudo divulgado logo no início da quarentena, o “Raio X da violência doméstica durante o isolamento: um retrato de São Paulo” (confira íntegra aqui), elaborado pelo Núcleo de Gênero, do Ministério Público de São Paulo, e pelo Centro de Apoio Operacional Criminal, já dava o diagnóstico do que estava por vir.
O grupo analisou os dados de medidas protetivas (as determinações judiciais de afastamento do agressor) e de prisões em flagrantes por descumprimento dessas medidas durante o primeiro mês de pandemia: em fevereiro foram registradas 1.934 medidas protetivas, um mês depois, já na quarentena, o número saltou para 2.500, um aumento de 29%. As prisões em flagrante aumentaram 51%: de 177 em fevereiro para 268 em março.
A coordenadora do núcleo e professora de processo penal da PUC-SP, promotora Valéria Scarance, aponta que há quatro fatores que agravam a violência: isolamento social, consumo de álcool ou drogas ilícitas, comportamento controlador e desemprego.
“Em regra, os autores de violência contra a mulher são primários, de bons antecedentes, de residência fixa. Então, no mundo, instrumentos científicos foram criados para verificar se há perigo para a mulher, já que aquela avaliação tradicional não serve para a violência contra a mulher”, explica a promotora.
“É importante que a mulher não se afaste das suas bases de segurança nesse momento, que ela mantenha por telefone, por mensagem, por vídeo com a família, com as amigas, como pessoal do trabalho”, aponta.
Scarance sugere também que a mulher trate o isolamento como transitório. “Estamos vivendo um momento de estresse, mas é uma fase, isso não é para sempre. Então ela deve, sim, planejar o seu futuro depois do isolamento”, continua a promotora.
“Nem toda violência deixa marcas visíveis”
Violência contra a mulher não é apenas violência física. Na lei Maria da Penha, há 5 tipos de violência: física, moral, psicológica, sexual e patrimonial. Esse ponto é fundamental para a aplicação das medidas protetivas.
“A lei fala em violência, não em crime, porque nem todas as violências configuram crime. Nem toda violência física deixa marcas, há agressões que não deixam marcas”, explica a juíza Teresa Cristina Cabral Santana, integrante da Comesp (Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário).
Um dos motivos para a queda no número de registros pode ser a falta de informação sobre o funcionamento virtual dos serviços de denúncia. Em todas as instâncias, é possível fazer a denúncia online, seja via Polícia Civil, Defensoria Pública, Ministério Público ou Tribunal de Justiça.
“O isolamento social é um isolamento físico, que impede que a gente tenha contato físico com as pessoas, mas isso não quer dizer que não estamos juntas enquanto rede, que não estamos olhando para essa mulher, que não estamos nos preocupando com essa mulher”, aponta Teresa Cristina.
A magistrada reforça que a prevenção é o melhor caminho. “Se a violência já aconteceu, evitar que outras violências aconteçam. Se essa violência eventualmente não foi severa, que ela não venha efetivamente a acontecer. Sempre que acontece uma violência, a mulher tem direito à medida protetiva de urgência”, explica.
Apesar da preocupação com a violência doméstica, a promotora Valéria Scarance reforça que a violência contra a mulher acontece em todos os locais e esferas.
“A violência contra a mulher pode ocorrer em casa, nas ruas, no trabalho e em diversos locais públicos ou privados. Uma a cada 3 mulheres sofre alguma forma de violência e normalmente essa violência está relacionada ao gênero, ao fato de a vítima ser mulher”, lembra.
Acolhimento: um dos antídotos da violência contra a mulher
Se denunciar uma agressão não é fácil, não denunciar por não ter para onde ir é mais difícil. Pensando nisso, o governo federal criou a Casa da Mulher Brasileira em novembro de 2019. O espaço, localizado no Cambuci, região central da cidade de São Paulo, reúne os principais aparelhos de ajuda e apoio para vítimas de violência contra a mulher.
O primeiro passo, quando uma mulher chega ao espaço, é passar no setor psicossocial para o primeiro atendimento. Depois, ela pode ir para a Delegacia de Defesa da Mulher para registrar a ocorrência. Na sequência, ela pode passar na Defensoria Pública e no Ministério Público. Tudo no mesmo lugar e funcionando 24h por dia.
Para quem não tem para onde ir, a Casa serve de abrigo temporário. A estadia no lugar depende muito do caso, mas pelo menos uma noite é garantida. A Casa está aberta para todas as mulheres, independentemente da nacionalidade ou regionalidade. Mais de 3 mil mulheres já passaram pelo local.
A promotora Juliana Gentil Tocunduva, responsável pelo setor do Ministério Público na Casa da Mulher Brasileira, explica o que motivou a criação do espaço. “Reunir os serviços facilita muito, para que ela [a mulher vítima] entenda a situação de violência que ela vive”, afirma.
“Também fortalece para ela realmente romper o silêncio e buscar os seus direitos. Além de eliminar da vida da vítima a rota crítica de procurar diversos serviços, enfrentar filas e agendamentos”, detalha.
Com a pandemia do coronavírus, os atendimento diminuíram. “Tomar a decisão de sair de casa, procurar a delegacia ou a Casa da Mulher Brasileira, tomar providências contra o agressor faz ela pensar duas vezes. Ela vai colocar na balança o que vale mais a pena: sair e adoecer ou eu permanecer por um tempo até cessar essa quarentena?”, questiona Tocunduva.
Outro serviço de acolhimento é o aplicativo Penhas, que se propõe acolher, informar, orientar e até preparar a vítima de violência para uma ação efetiva. “Às vezes, a mulher não confia na polícia. Ou não confiam ou não querem denunciar. O que as mulheres querem, na maioria das vezes, é não iniciar um processo que pode gerar o encarceramento desse companheiro ou desse filho. Elas querem que a violência cesse. Elas precisam de ferramentas para que possam romper esse ciclo de violência. Muitas vezes quando a mulher não tem marca no corpo, ela é desacreditada. A palavra da mulher não tem valor. Infelizmente”, explica a jornalista Marília Taufic, co-idealizadora e coordenadora do PenhaS, em entrevista concedida à Ponte por causa do Dia Internacional da Mulher.
O app é uma realização do Instituto AzMina e o nome, claro, é uma homenagem à lei Maria da Penha, um marco fundamental na luta pelo direito da mulher, especialmente o constitucional direito de viver. De acordo com Marília, houve aumento de 43% de cadastros desde que o isolamento foi imposto. Embora a ferramenta não se restrinja apenas ao estado de SP, ela dá dimensão do provável silenciamento refletido nas estatísticas oficiais.
O aplicativo, financiado pela ONG Mama Cash, tem diversas funcionalidades e até mesmo um mapa nacional de “pontos de apoio”, que inclui delegacias, para que a vítima denuncie a violência. Logo que você baixa o app, é preciso criar um perfil e, então, aparecem as telas de apresentação.
Marília destaca que não necessariamente apenas vítimas de violência doméstica fazem uso do aplicativo. Pelo contrário. Justamente por ser um dispositivo de informação e de rede de apoio, qualquer pessoa pode baixar. Há um quiz para mulheres que podem estar em dúvida se estão vivendo um relacionamento abusivo, criado com consultoria do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Há também algo bem interessante que é a “rede de guardiões”: você seleciona até cinco pessoas de sua inteira confiança para que sejam avisadas a partir de um “botão de pânico” caso você esteja passando por uma situação de violência. E, por fim, há o gravador para que você, mulher em situação de violência, possa produzir provas contra o agressor.
Estupros de vulneráveis: um ponto de alerta
Com o isolamento social, um dos pontos mais preocupantes, afirma a delegada Jamila Jorge Ferrari, é a diminuição dos registros de estupro de vulnerável (crimes sexuais em que a vítima tem até 14 anos). Em março e abril do ano passado, 1.405 estupros de vulnerável foram registrados; no mesmo período deste ano, já com a pandemia, foram 1.089, uma redução de 22%. Isso, no entanto, não significa que essa violência sexual não esteja acontecendo, mas, sim, que ela possivelmente não esteja sendo denunciada.
É em casa que esses crimes, majoritariamente, acontecem. O agressor, destaca a delegada, normalmente é o pai, padrasto ou um parente próximo, como um tio.
“Geralmente é uma pessoa de confiança, então essa criança fica meses e até anos sofrendo esse tipo de violência sem contar para ninguém. O que a gente precisa, nesse caso, é conscientizar essas mulheres de que quando essas crianças contam algo assim ela não está brincando. Se ela contou, muito provavelmente isso já aconteceu antes e ela não conseguiu falar”, explica a delegada.
As medidas protetivas também servem para proteger crianças de violência doméstica, explica a juíza Teresa Cristina Cabral Santana. “Com essa situação de pandemia, a criança permanecendo sob o mesmo teto da pessoa que pratica os abusos, é importante que essa medida seja concedida. Há uma possibilidade grande que isso esteja acontecendo com mais frequência”, analisa.
“Em briga de marido e mulher a gente mete a colher, sim”
O chamado “ciclo de violência contra a mulher” tem ficado cada vez mais evidenciado na pandemia, com vítimas e agressores convivendo muito mais tempo no mesmo espaço.
O ciclo se divide em três fases, segundo cartilha do Instituto Maria da Penha. A primeira é a chamada “aumento da tensão”, quando o agressor se mostra irritado por qualquer coisa, tem acessos de raiva, humilha a mulher e faz ameaças. A mulher tenta acalmar o agressor, fica aflita e até se sente culpada, como se fosse responsável pela agressividade dele. A fase 2 é quando o descontrole chega ao limite e se materializa no ato de violência. Nessa fase, muitas mulheres se sentem impossibilitadas de reagir.
A fase 3 é também chamada de “lua de mel” e se caracteriza pelo aparente arrependimento do agressor, que se torna amável para conseguir a reconciliação. Aquela história de que “ele vai mudar”. Nesse momento, a relação de dependência entre agressor e vítima se estreita e, não demora muito, para que tudo recomece.
Mais cedo ou mais tarde, o ciclo se encerra na última e irrevogável etapa da violência contra a mulher: a morte.
Por isso, afirma a juíza Teresa Cristina Cabral Santana, intervenções são importantes e podem impedir que feminicídios aconteçam. “Precisamos compreender, de uma vez por todas, que em briga de marido e mulher a gente tem que meter a colher”.
Em uma situação de pandemia, em que muitas pessoas passam mais tempo em casa, ouvir sinais de violência doméstica pode ser mais frequente. “Violência faz barulho, normalmente a violência física vem agregada com a violência patrimonial, então objetos da casa são quebrados, são gritos, são pedidos de socorro”, argumenta Teresa Cristina.
Em um caso de violência doméstica, a mulher não é a única vítima. É o que explica a promotora Valéria Scarance: “Não existe essa de ‘mau marido e bom pai’. O homem que agride ou destrata a mãe é um péssimo pai, pois expõe seus filhos a um sofrimento e ensina um padrão de desrespeito. Quando uma mulher é agredida, a família toda deve ser atendida e cuidada”.
Pensando nas fragilidade e dificuldades de denunciar crimes de violência contra a mulher, o Tribunal de Justiça de São Paulo criou um projeto para receber relatos, da vítima ou de quem ouvir ou desconfiar de uma situação de vulnerabilidade. Chamado de “Carta de mulheres“, o projeto já reuniu mais de 250 denúncias.
O sigilo é garantido e a equipe atende demandas de todo o estado de São Paulo. É preciso fornecer o endereço no formulário apenas para que a resposta possa indicar os locais corretos caso a pessoa decida buscar ajuda. O projeto foi inspirado em ação semelhante da Justiça peruana que tem o mesmo nome, Carta de Mujeres, e na convicção de que romper o silêncio é o primeiro passo para se livrar da violência.
Análise da dados: Maria Elisa Muntaner
Infografia: Antônio Junião
Amazônia Real, Agência Eco Nordeste, #Colabora, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo
Parceria entre cinco mídias independentes monitora os casos de violência doméstica e feminicídio no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus