Imigrante venezuelano teve casa invadida pela PM e está preso há dois meses por arma encontrada com amigo

José Carlos Guape Gutierrez foi agredido por PMs da Rota durante abordagem no centro de São Paulo em maio. Policiais invadiram sua residência e também hostilizaram sua companheira com xingamentos transfóbicos

José Carlos está preso desde maio deste ano após ser forjado por PMs da Rota, segundo testemunhas | Foto: Arquivo Pessoal

O imigrante venezuelano, ajudante de pedreiro e vendedor José Carlos Guape Gutierrez comemorava seu aniversário de 21 anos junto a alguns amigos e com sua namorada Valery Gomez, 32 anos, mulher trans, vendedora e também venezuelana em sua residência no dia 24 de maio deste ano. Quando ele e seu colega Daniel* foram a um mercado buscar alguns itens para a comemoração que já começara, aproximadamente às 17h30, foram parados em patrulhamento de policiais da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) na Rua Vergueiro, no centro de São Paulo. 

A ocorrência que seria feita para conferir a documentação dos dois colegas terminou com José Carlos preso e agredido fisicamente e sua parceira agredida verbalmente e ameaçada pelos policiais. Valery teve que mudar de casa depois do ocorrido para se proteger de ataques transfóbicos que vem recebendo de perfis anônimos nas redes sociais. 

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Na ocasião, segundo o boletim de ocorrência assinado pelo delegado Fábio Hayayuki Matsuo do 78º DP (Jardins),  durante a abordagem na rua, José e Daniel estariam caminhando juntos “em atitude suspeita demonstrando nervosismo”. Os policiais militares André Felipe Quintino Danielli e Helio Fernando Moreira pararam e revistaram ambos, mas nada de ilícito foi encontrado. O documento não detalha quais seriam as atitudes suspeitas. 

Mesmo assim, segundo o BO, Daniel teria confessado aleatoriamente que José Carlos tinha um revólver na sua casa e que queria vendê-lo. Ainda segundo o documento policial, José Carlos teria afirmado que realmente tinha um revólver em sua residência. 

Na sequência, os policiais e os dois conhecidos foram então até uma casa na Rua Treze de Maio, no centro da capital paulista. No local, de acordo com o BO, “os militares localizaram embaixo do rack um revólver Rossi, calibre .32, municiado com seis cartuchos íntegros, e com a numeração suprimida”. Depois disso, José e Daniel foram encaminhados à delegacia.

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Os policiais ainda declaram no documento que Daniel encontrou José Carlos e que o venezuelano tinha o interesse em vender a arma ao conhecido. No interrogatório, José Carlos permaneceu em silêncio e não indicou advogado. O delegado prendeu José em flagrante e o indiciou pelo crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, incluido no art. 16 da Lei 10826/2003, com pena prevista de 3 a 6 anos de prisão e multa.

No dia seguinte a Promotora de Justiça do Ministério Público de SP (MPSP) Cynthia Pardo Andrade Amaral se manifestou favorável à conversão da prisão em flagrante de José Carlos em prisão preventiva. No mesmo dia, a advogada Jéssica Moraes Lopes Pedroso requisitou a liberdade provisória de José, uma vez que ele possui residência fixa, é réu primário, não cometeu crime com violência ou grave ameaça e não oferece risco à investigação. 

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Também no dia 25 de maio, a juíza Gabriela Marques Silva Bertoli do Tribunal de Justiça de SP (TJSP) converteu a prisão de José em preventiva. O vendedor então terminou preso no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Pinheiros lll. Em 28 de maio, a promotora Kátia Peixoto Villani Pinheiro Rodrigues denunciou José Carlos por pelo crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito.

Policiais mentem, agridem e trocam armas, dizem testemunhas

Ao contrário do que apontam os policiais no BO, Valery, companheira de José, e Daniel, que esteve com José Carlos durante a abordagem policial, dizem que em nenhum momento José Carlos assumiu ter uma arma em casa. Daniel detalhou em entrevista à Ponte como foi a abordagem policial. 

Segundo ele, os dois rapazes foram agredidos por cinco policiais militares no meio da rua com tapas no peito e foram forçados a desbloquear os telefones celulares para os PMs. De acordo com Daniel nesse momento eles foram algemados e colocados dentro da viatura, após um dos policiais ver uma conversa entre Daniel e um outro rapaz chamado Gabriel na qual havia uma foto de uma arma, com isso eles foram forçados a ir a casa de José. “Foram cinco policiais, eles nos bateram com tapas no peito, quando chegamos na casa dele três PMs entraram e dois ficaram com a gente na viatura, na abordagem eles disseram que iam nos forjar com drogas se a gente não desbloqueasse os celulares. Na delegacia eu não falei nada, só me deram um papel dobrado e mandaram eu assinar, nem deixaram eu ler.”

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Valery afirma que quando os policiais invadiram sua casa eles logo começaram a revistar o pequeno local. Segundo ela uma arma foi encontrada com um amigo do casal que havia viajado de Chapecó (SC) a São Paulo. “A polícia entrou em casa sem mandado sem nada, começou a revistar as minhas coisas e não acharam nada, revistaram a mala do meu namorado não acharam nada, aí o Gabriel ficou com medo e declarou que viajou com a arma, que o José Carlos não sabia de nada. Ele falou para a polícia, a gente não entende porque a polícia não levou o dono da arma”.

No momento da invasão, a vendedora venezuelana mostrou seus documentos à polícia, que logo começou a proferir agressões transfóbicas a ela. “Dei meu documento que tem meu nome social, a polícia começou a falar que esse não era meu nome, que eu nasci homem, que iam me bater, começaram a me ameaçar para eu não fazer nada, para eu não sair do quarto”, conta ela em tom desesperado, lembrando dos momentos em que seu companheiro ficou dentro da viatura enquanto ela era ameaçada. 

“Quando eu pensei que a polícia ia embora, eles estavam olhando para outras kitinets, eu tentei sair, a polícia pegou a arma e me ameaçou. No dia seguinte começaram a me mandar ameaças pelo meu Facebook”, desabafa a vendedora venezuelana.

Desde então Valery perdeu suas fontes de renda após a prisão de José, com quem vendia chinelos. Ela tem recebido em suas redes sociais fotos de corpos dilacerados com legendas dizendo que o mesmo vai acontecer a ela. O casal está junto há mais de um ano, desde que Valery chegou ao Brasil buscando trabalho para ajudar a família, mesmo motivo que levou José a sair da Venezuela em 2019. 

José e Valery são imigrantes venezuelanos e se conheceram no Brasil em 2020 | Foto: Valery Gomez

Sem o companheiro, Valery conta que se sente sozinha e muito abalada psicologicamente, pois teve que morar de favor com outras pessoas por medo das ameaças. “No mesmo dia que meu namorado foi preso ele pediu para o colega dele me avisar para eu pegar as minhas coisas e as dele e ir embora de onde nós morávamos, eu fui embora, fiquei com medo. Eu não tenho ninguém de confiança, só tenho ele que me ajudava, já fiquei doente e sozinha, sem ninguém para me ajudar.”

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Até hoje ela tenta compreender porque seu namorado está preso, se o dono da arma confessou o crime. “É muito horrível saber que ele está preso injustamente, porque se já tem testemunhas, provas e o verdadeiro dono da arma assumiu, não compreendo porque ele foi preso e porque ainda está”, lamenta.

Justiça nega pedidos da Defensoria

Apesar de todas as incoerências narradas, as dificuldades para provar a inocência e libertar José Carlos que agora foi transferido para a penitenciária de Itaí, no interior de SP, continuam. Além disso, José não teve nenhuma audiência para ser ouvido até hoje. 

Em 10 de junho a defensora Mariana Borgheresi Duarte solicitou um pedido de revogação da prisão preventiva afirmando que não há prova nos autos de que a liberdade de José “coloque em risco a ordem pública ou a ordem econômica, como ainda, não há que falar em conveniência da instrução criminal: não está ele ameaçando testemunhas, adulterando provas, ou coisa parecida. Qualquer conclusão em contrário, sem o devido fundamento, é clara inversão da presunção de inocência.” O pedido foi negado pelo juiz José Paulo Camargo Magano do TJSP. 

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Utilizando-se do mesmo argumento e sem entrar no mérito do caso, a defensora pediu a revogação da prisão preventiva na segunda instância, em 21 de junho. O pedido foi negado pelos desembargadores do TJSP Farto Salles, Eduardo Abdalla e Ricardo Tucunduva. Segundo os magistrados, “não há comprovação de que o réu tenha qualquer ocupação lícita capaz de mantê-lo no distrito da culpa”.

A Ponte tentou contato com a defensora Mariana Borgheresi Duarte, mas o pedido de entrevista foi negado. Segundo a Defensoria Pública de SP e a própria defensora, por “estratégia processual, a Defensoria Pública de SP irá se manifestar sobre as provas apenas no processo, no momento oportuno.” Em razão da nova negativa na segunda instância, a defensora impetrou um habeas corpus no STJ (Supremo Tribunal de Justiça) em 4 de julho, que também teve o pedido de liminar negado pelo ministro Humberto Martins dois dias depois. Outros dois ministros ainda devem analisar e julgar o caso.

A pedido da Ponte, o advogado criminalista Gabriel de Oliveira Silva, que defendeu junto a outros advogados a refugiada togolesa Falilatou Estelle Sarouna, também presa injustamente, analisou o processo e destacou que há informações suspeitas no inquérito policial. 

Em primeiro lugar, ele diz que parece inverossímil que a pessoa seja abordada na rua e, após isso, conduza os policiais à sua própria casa e permita a entrada dos agentes sabendo que existe algo ilícito em sua residência. “E mesmo que assim o fosse, não há nos autos qualquer autorização escrita ou gravada em áudio ou vídeo para o ingresso dos policiais na residência de José Carlos”. 

Ele lembra que o STJ decidiu em março deste ano que é necessário que haja consentimento registrado para ingresso de policiais na residência do suspeito, sob pena de ilicitude da prova. “Mesmo que o STJ tenha dado o prazo de um ano para que as polícias se adaptem ao novo procedimento, no caso de José Carlos, era perfeitamente possível que os agentes colhessem autorização escrita ou mesmo gravada por áudio, o que não ocorreu”. 

Ajude a Ponte!

Para o advogado, a prisão de José Carlos revela uma cultura de excesso na Justiça brasileira. “Infelizmente existe uma cultura de excesso de prisões preventivas no Poder Judiciário, mesmo que os elementos trazidos ao conhecimento do juiz sejam frágeis. A situação da pandemia piora a situação, já que o Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu a realização de audiências de custódia, na qual o preso em flagrante teria a oportunidade de esclarecer o que houve durante sua prisão, a fim de que o magistrado verifique sua ilegalidade”. 

Em casos de migrantes é preciso observar, ainda, a situação de vulnerabilidade dessas pessoas, diz Gabriel. “A manutenção dessas pessoas presas preventivamente, principalmente em casos que não envolvam violência ou grave ameaça, como do José Carlos, acaba por revelar um punitivismo exacerbado. Lembrando que, nessa fase processual, não há, ainda, convencimento sobre os fatos ou a culpa do acusado. Portanto, a prisão deveria ser exceção e não regra”, conclui.

Diante das negativas da Justiça, o Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC) divulgou um abaixo assinado para pressionar as autoridades.

Outro lado

A reportagem questionou a promotora de Justiça Kátia Peixoto Villani Pinheiro Rodrigues do Ministério Público de SP, que não quis se manifestar. O delegado da Polícia Civil Fábio Hayayuki Matsuo e os policiais militares André Felipe Quintino Danielli e Helio Fernando Moreira da 78º Delegacia de Polícia do Jardins também foram questionados sobre a denúncia e as acusações contra José. 

A Ponte ainda perguntou à SSP se é permitido que os policiais entrem na casa de suspeitos sem mandado e sem consentimento registrado, como determinou o STJ em março deste ano. Até o momento nenhuma das questões foram respondidas. 

Procurado, o Tribunal de Justiça de SP não respondeu às questões. O STJ também não informou quando o julgamento do caso será finalizado.

*Nome trocado a pedido do entrevistado por questões de segurança

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