Levantamento da Iniciativa Negra mostra que “concentração de privilégios e de acesso às políticas públicas e a riqueza produzida pela cidade se concentra nos bairros brancos da orla atlântica”
Na capital da Bahia, oito em cada dez habitantes se declara negro de acordo com Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua feita pelo IBGE. Mesmo assim, há duas Salvador (BA). Uma para os brancos, onde acesso a políticas públicas como esporte e cultura é mais fácil e o índice de crimes letais é menor. A outra cidade é de pretos onde o Estado só chega por meio das suas forças de segurança e onde o número de crimes letais é alarmante.
O estudo Mesmo Que Você Me Negue Sou Parte de Você – racialidade, territorialidade e (r)existência em Salvador, realizado pela Iniciativa Negra Por Uma Nova Políticas de Drogas, mostra, por exemplo, que, entre em junho de 2019 e fevereiro de 2021, os bairros da Barra, Graça e Vitória, que são habitados em sua maioria por pessoas brancas, teve 27 registros de uso ou porte de drogas e nenhum de crimes violentos letais intencionais (CVLI).
Por outro lado, nos bairros da região de Periperi, conhecido como Subúrbio Rodoviário, há menos registro de crimes relacionados à drogas do que ações violentas. No mesmo período houve 209 ocorrências de CVLIs e 79 de uso ou porte de substâncias entorpecentes.
“A gente conseguiu fazer um comparativo de áreas da cidade, onde partes que são mais embraquecidas e que têm altos índices de apreensão de substâncias ilícitas, mas não há crimes violentos naquela área. Isso demonstra que não é a relação com as drogas e o seu comércio que provoca os episódios de violência, mas sim a opção do Estado pela guerra nos territórios negros onde há o varejo dessas substâncias e proteger o uso nos bairros brancos”, relata Dudu Ribeiro, co-fundador da Iniciativa Negra.
Os dados do estudo foram levantados a partir de notícias que foram veiculadas na internet, assim como números obtidos via Lei de Acesso à Informação. Foi possível perceber que “a cobertura midiática privilegiou noticiar ações de patrulhamento policial, sendo 801 ações de policiamento e 212 de operações policiais. Apesar da atenção direcionada pelos veículos de mídia a esse tipo de atuação policial, pouco foi abordado sobre os efeitos letais dessas incursões nos territórios selecionados para suportar o peso da violência do Estado”, aponta a pesquisa.
O bairro com o maior registro de eventos violentos é São Cristóvão, periferia da capital baiana na divisa com o município de Lauro de Freitas. Segundo o censo do IBGE, o local é o sexto bairro com a maior população negra da capital baiana com 84,42% dos seus 45.505 habitantes se declarando preto ou pardo.
“Existe essa distância territorial, mas que não significa que é uma distância geográfica. Existem bairros populares próximos a bairros nobres. A guerra chega aos bairros negros, mas não pula os muros dos condomínios. De fato, em Salvador, ainda que a maior parte da população seja negra, existe uma concentração de privilégios e de acesso às políticas públicas e a riqueza produzida pela cidade se concentra nos bairros brancos da orla atlântica”, explica Ribeiro.
A diferença de tratamento da polícia entre bairros de maioria negra em comparação aos de onde vivem os brancos é mostrado pela pesquisa como um caso claro de racismo institucional, por mais que o poder público não toque no assunto. São poucas as reportagens monitoradas durante o estudo que mostram crimes de racismo, injúria racial e intolerância religiosa. Esses casos sequer são disponibilizados pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia, afirmam os pesquisadores. Segundo o aplicativo Mapa do Racismo, criado pelo Ministério Público da Bahia, em 2020 o órgão recebeu 57 denúncias de racismo, 25 de injúria racial e 53 de intolerância religiosa.
“O nosso desafio é justamente fazer pensar como esse racismo está nos outros fenômenos da violência mesmo quando não pronunciada. Essa pesquisa contribui para alargar a compreensão sobre o racismo na cidade de Salvador, sobretudo observando os efeitos da guerra às drogas, como a distribuição de políticas públicas e a sua relação com a distribuição de violência como política de estado”, analisa Dudu Ribeiro.