Tenente-coronel aposentado da PM-SP Adilson Paes de Souza defende uso da força policial para garantir isolamento, mas alerta para criminalização de negros e pobres
Apesar do isolamento social ser uma medida mundial de combate ao coronavírus, muitas pessoas estão descumprindo a quarentena. “Fique em casa se puder” tem sido o lema de muitas campanhas municipais e federais, assim como é o caso de São Paulo.
Em Araraquara, cidade a 275 km da capital paulista, há um decreto que impede acesso às praças públicas na quarentena. Mesmo assim, uma mulher descumpriu a determinação e acabou sendo detida. A Guarda Civil Municipal usou da força para deter a mulher, que resistia à prisão e agrediu uma das guardas.
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O que se debate é se o uso das forças policiais é a melhor forma de garantir o cumprimento do isolamento. Para Adilson Paes de Souza, tenente-coronel aposentado da PM paulista e mestre em Direitos Humanos, pontua que o momento pede rigidez no cumprimento dessas medidas restritivas porque estamos falando de um “inimigo letal” e, nesse sentido, estamos falando em preservação do bem maior, que é a vida.
“Eu não gosto do discurso de guerra que se usa contra a criminalidade, mas esse discurso da guerra contra o vírus eu acho muito adequado. [O coronavírus] é um inimigo que não dá trégua”, disse Adilson à Ponte.
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Contudo, o tenente-coronel aposentado da PM, que é autor do livro ‘O Guardião da Cidade – Reflexões sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares’, faz um alerta: “Perfil de mortos e perfil de presos pela polícia majoritariamente são negros, moradores de periferias e pobres. Eu não vejo motivo para ser diferente agora”.
Confira a entrevista:
Ponte – Como você avalia a ação da Guarda Civil Municipal em Araraquara, onde uma mulher foi detida em uma praça pública por não respeitar o isolamento social?
Adilson – Independente das medidas tomadas pelo prefeito de Araraquara, com certeza a Guarda Municipal seguiu as orientações dele de não utilizar espaços públicos. O fato de a mulher ter mordido uma guarda já é motivo mais do que suficiente de prisão, por lesão corporal e desobediência.
Ponte – Nesse caso, o uso da força policial é correto?
Adilson – A gente tem que pensar no conceito de ordem pública, que engloba os conceitos de segurança pública e de salubridade pública. Estamos vivendo uma pandemia mundial. Existem posições de autoridades do ramo da ciência e da medicina no sentido de que o único remédio eficaz para essa situação é o isolamento e distanciamento social. O administrador público, seja prefeito, governador ou presidente, que agir nessa direção está agindo dentro de uma medida que visa a salubridade pública, ou seja, o bem-estar, a saúde e a vida do cidadão. Está comprovado que quando mais gente nas ruas, maior é a propagação e maior será o colapso na rede de saúde, pública e privada. Nesse sentido, a Polícia Militar e a Guarda Municipal, ou eventualmente, se o presidente [Jair Bolsonaro] tiver uma noção de realidade e responsabilidade que o cargo traz, a Força Nacional de Segurança ou até mesmo as Força Armadas, tem todo o direito e poder para prender as pessoas. Eu entendo assim.
Ponte – A gente sabe a importância do isolamento. Mas será que a alternativa para garantir isso é o uso das forças de segurança? Não caberia multar as pessoas?
Adilson – Dentro do princípio de proporcionalidade, essas medidas de multar deveriam ser aplicadas pela Polícia Militar ou pela Guarda Municipal. Quem vai estar na rua com o poder suficiente de aplicar essas multas? As pessoas que estão afrontando o poder público e ficando na rua são pessoas violentas, agressivas. Eu fico imaginando um funcionário da Prefeitura ou do Estado que não tem o poder de polícia falando que vai autuar alguém. Ele vai ser agredido com certeza. As forças de segurança que serão responsáveis por isso.
Ponte – Qual seria a conduta ideal em uma situação como essa?
Adilson – Num primeiro momento, o caminho seria autuar e, se não tiver como localizar essa pessoa, o caminho é a detenção. Em cidades pequenas, poderiam escolher um estabelecimento para concentrar essas pessoas e em cidades grandes algumas delegacias para conduzir esses casos. Até mesmo traçar uma medida em coordenação com o Ministério Público, porque, no caso, as pessoas poderiam ser presas por desacato e também pelo crime de desobediência, porque deverá ter uma determinação ou um decreto do administrador do Estado no sentido de que não ocupem as ruas. Nesse sentido, quem descumprir está praticando o crime de desobediência, que é uma infração penal com menor potencial ofensivo. A pessoa seria levada para o distrito policial, seria lavrado o termo circunstancial e aí que entraria a parceria com o MP para que eles recebessem de imediato o termo e oferecesse a oportunidade de converter em eventual pena de liberdade e multa. E aí o juiz recebe a medida e aplica a pena. Tudo muito rápido. Não tem outra medida. Essas pessoas, que acham que não é nada, que podem ir para a rua, estão colocando em risco não só elas, mas um número sem fim de outras pessoas que estão cumprindo o isolamento porque sabem que essa é a única alternativa para preservar a saúde e a vida.
Ponte – E quem sai acaba colocando em risco quem não pode parar de trabalhar…
Adilson – Eles já estão em risco. Assim como os médicos e profissionais de saúde, os guardas municipais, os bombeiros, os agentes de trânsito, os policiais militares e os policiais civis estão nas ruas o tempo inteiro. Desde já eles precisam de máscaras, de luvas, de álcool em gel e até um avental que pudesse proteger a maior parte do corpo. Também deveriam ter produtos para desinfetar os bancos das viaturas. Tudo com muita cautela. Eu avalio que, nessas circunstâncias, os policiais nem devem agir em duas pessoas, devem agir em grupos de três policiais para garantir a segurança deles.
Ponte – Esses equipamentos estão chegando nas corporações?
Adilson – Eu já ouvi que sim e que não. De dentro da Polícia Militar, a conversa é de que a corporação está preocupada, sim, que existem normativas para que no mínimo sinal de contaminação o policial seja afastado. Inclusive tem medidas que estimulam que quem tem férias para tirar, tire agora. É chegado o momento de uma medida mais restritiva e olha que eu defendo plenamente a liberdade de ir e vir, mas, agora, ninguém tem o direito de colocar a vida das pessoas em riscos.
Ponte – É uma situação bem inédita essa que vivemos atualmente…
Adilson – Nós estamos em uma pandemia e uma situação de calamidade pública, de emergência. O bem comum agora é pela vida da população e pelo sistema de saúde. É um ato de idiotice extrema quem está descumprindo isso. E é um fanatismo também, já que elas são estimuladas irresponsavelmente pelo senhor presidente da República. Já é motivo mais do que suficiente para ele ser processado e julgado pelos vários crimes contra a saúde pública. Já era para ele não estar mais no poder, ele deveria ter sofrido impeachment. Até então o presidente era irresponsável e incompetente, agora ele está sendo assassino. Essa é a verdade. O presidente e seus assessores estão mentindo em dados oficiais, divulgando notícias falsas e estão levando a população a um estado de risco total contra a vida e a saúde. Eles são assassinos em potencial. As pessoas que seguem esses conselhos errados não estão nem aí para a vida alheia, então devem ser presas sim.
Ponte – Agora pensando na polícia enquanto corporação. O governo federal tem um posicionamento, mas o governo estadual tem outro. Como está a conversa lá dentro? Há policiais contra o isolamento?
Adilson – O que eu já ouvi de dentro da polícia é que, quando o governador João Doria instituiu a quarentena, surgiram nas redes, nos grupos dos policiais, mensagens no sentido contrário e depreciativas em relação ao governador, com notícias falsas sobre essa quarentena. Um bom número de policiais são bolsonaristas, seguem esse discurso do Bolsonaro de que tem que matar, de que o policial tem que ter mais liberdade para trabalhar, que quem matar deve ser condecorado e não afastado e por aí vai. Esse discurso fez com que muitos policiais votassem nele e dessem suporte a ele e muitos deputados que seguiram esse mesmo caminho. O Bolsonaro goza de um número grande dentro da polícia e, nesse sentido, a fala do governador é repudiada. Tenho certeza de que farão de tudo para sabotar essa ordem.
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Por mais que o comando da corporação esteja alinhado ao governador, a gente sabe muito bem que existe uma subcultura na Polícia Militar que é muito mais forte do que qualquer norma oficial. São regras extraoficiais totalmente alheias ao discurso oficial que é um saber compartilhado pelo grupo e que são mais fortes do que as oficiais. E são essas que acabam predominando no dia a dia. É o mesmo que acontece com a letalidade policial. Por mais que o comando e o Governo do Estado crie normas para controlar e punir quem pratica atos de extermínio de pessoas, no dia a dia isso continua solto, porque a subcultura privilegia o extermínio e é muito mais forte do que qualquer determinação oficial. É um mundo paralelo que se torna oficial. Nesse sentido, a gente pode ter uma subcultura que vai privilegiar as insanidades que o Bolsonaro prega.
Ponte – Pensando nessa letalidade e no abuso de poder, que são recorrentes nas forças policiais, quais as chances de ocorrerem casos de abuso policial nesse processo de contenção do isolamento social, principalmente contra pessoas negras e periféricas?
Adilson – Esses já são alvo da ação policial de longa data. Perfil de mortos e perfil de presos pela polícia majoritariamente são negros, moradores de periferias e pobres. Eu não vejo motivo para ser diferente agora, baseado nas estatísticas e nos estudos que apontam que esse é o público alvo da ação policial. Historicamente é constituído assim.
Ponte – E qual seria o certo e o errado para a ação da polícia contra a pandemia?
Adilson – A polícia é erroneamente interpretada apenas como um órgão que existe dentro de uma estrutura organizacional do Estado. Apenas mais um órgão. Polícia é muito mais do que isso. O Estado existe, ou deveria existir, para proporcionar o bem comum. No caso da pandemia, o bem comum se resume em pessoas fora dos espaços públicos para tentar conter a propagação do vírus, como temos visto ao redor do mundo. Nesse sentido, o correto da polícia é seguir as determinações do Governo do Estado, porque o governador é o comandante das polícias, os policiais devem obediência as suas determinações. Muito mais do que uma simples obediência do governador deve ser a ciência de que eles [policiais] atuam em defesa da vida. Nesse caso, defender a vida é cumprir a determinação de que as pessoas não podem ocupar o espaço público. Se essa determinação vier, lógico. Isso é mais uma maneira de preservar vidas.
Ponte – E, se tudo der certo, vamos conseguir conter esse vírus?
Adilson – Eu torço, porque, se isso não acontecer, virá uma catástrofe. O que eu acho muito grave é que tem muitas pessoas que não têm nada a ver com essa postura, que são totalmente contrárias a esses comportamentos de menosprezar o poder letal do vírus, que poderão ser afetadas, como você e eu. Se essas pessoas adotassem essa postura e somente elas sofressem as consequências do ato que elas praticaram é ação e reação. Mas o ato delas vai afetar um grande número de pessoas que são contrárias a essa insanidade. Eu sou a favor de que, nesse momento, a gente tenha uma Garantia de Lei e Ordem para preservar a saúde pública, evitar que as pessoas saiam às ruas. Eu não gosto do discurso de guerra que se usa contra a criminalidade, mas esse discurso da guerra contra o vírus eu acho muito adequado. Ele é um inimigo letal, não dá trégua. Isso se nós tivéssemos um presidente consciente das responsabilidades do seu cargo e agisse pelo interesse pública, o que não é o caso. Nós temos dois problemas: o vírus e o presidente. Não sei qual é o mais grave, porque um alimenta o outro. O governador deve, em nome da salubridade pública e da vida das pessoas, decretar essa medida. Não é hora de pensar em custos eleitorais ou em popularidade, é hora de salvar vidas.
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