Foram ao menos cinco casos em que supostos proprietários da região dispararam para o alto, além de proferir ofensas aos moradores e queimar casas no local. Lideranças realizaram ação neste domingo (19) contra ameaças
Há cerca de oito meses, Yva Rete, de 23 anos, indígena do povo Guarani, iniciou seu sonho de se estabelecer na aldeia Kuaray Oua, localizada dentro da Terra Indígena (TI) Tenondé Porã, na região de Parelheiros, no extremo sul de São Paulo. Neste domingo (19/12), Yva, participou de uma ação no local e plantou uma muda de bananeira em sua aldeia como símbolo de resistência e também de dias melhores onde ela, sua filha pequena e seus parentes vêm enfrentando uma série de intimidações de invasores desde meados de agosto deste ano.
De lá para cá, a situação se agravou e além das ameaças verbais feitas por um grupo de não indígenas que alegam ter a propriedade do território, ocorreram também cerca de cinco ações à mão armada em novembro deste ano. Sentada em um pedaço de tronco sob a garoa da fria tarde de domingo, ela lembrava dos recentes acontecimentos hostis enfrentados pelos indígenas, um dos últimos no dia 13 de dezembro, quando os mesmos indivíduos fizeram ao menos seis disparos de arma de fogo para o alto dentro do território.
Corajosa e orgulhosa de suas raízes, Yva faz parte de uma das cinco famílias indígenas moradoras da aldeia Kuaray Oua e diz não temer os ataques no território. “Desde agosto eles circulam por aqui, mas não faziam nada, agora a maioria teve medo, eu não, falo para a minha família que é melhor a gente ficar por aqui, porque somos Guarani, não somos fracos. A gente tem que lutar porque essa terra aqui é nossa”, disse a jovem que, apesar da voz baixa, mostrava também certeza de seus direitos.
O grupo composto de aproximadamente cinco homens ainda incendiou e destruiu duas casas, retirou madeiras com veículos no local e subtraiu outros pertences dos moradores da comunidade Kuaray Oua, entre novembro e dezembro deste ano. “O meu tio estava com muito medo, vieram falando que a terra era deles, que não era demarcada e mandaram sairmos daqui porque iam derrubar as nossas casas, todas as vezes estavam armados, sempre aparecem no final de semana”, conta.
No fim do ano não foi diferente e no sábado (18/12) um grupo de não indígenas, acompanhado por policiais militares (PMs) do estado de São Paulo, mapeou a área da aldeia e fotografou utilizando drones, sem autorização dos indígenas, e voltou a ameaçá-los, como lembra aflita a indígena e liderança da aldeia, Jera Gabriel, 29 anos. “Falaram que eles tinham uma ordem judicial para expulsar a gente daqui. No dia 13 desse mês foi pior, cheguei perto e falaram até que eram da Polícia Militar (PM) e que tinham ordem para atirar na gente se não tirássemos as casa, que iriam nos matar, mandaram uma amiga que vinha de bicicleta voltar a força para a aldeia dela e atiraram de novo para cima. Se uma bala perdida pegar qualquer um daqui todos vão se machucar”, lamenta.
Aos 28 anos Tiago Honório dos Santos Karai faz parte da coordenação da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), organização indígena que congrega coletivos do povo Guarani das regiões Sul e Sudeste do Brasil e é uma das lideranças da TI Tenondé Porã. Ele lembra que estava levando algumas cestas básicas para a aldeia Krukutu neste sábado, chegando lá recebeu a notícia de que haviam não indígenas gravando a aldeia Kuaray Oua com drones junto aos policiais, ao saber dos fatos se aproximou do local. “Eles disseram que iam nos matar, que iriam voltar e expulsar as pessoas à força. Quando eles estavam retornando eu estava presente e eles falaram: ‘Vamos ver se vocês vão permanecer nessa área’, a polícia estava atrás e deve ter escutado.”
As investidas violentas narradas pelas mulheres indígenas e por Tiago motivaram o povo da etnia Guarani que ali reside junto às organizações sociais e demais apoiadores a se unirem na manhã deste domingo (19/12), na TI Tenondé Porã. O ato, que contou com cerca de 60 pessoas, começou por volta das 10h da manhã na aldeia Kalipety com apresentações de ações de recuperação de áreas degradadas com agrofloresta promovidas na Terra Indígena. Por volta das 15h todos os presentes se deslocaram de carro até a aldeia Kuaray Oua, fazendo uma carreata com “buzinaço” em frente a sede do “Sítio Colinas Verdes” localizado no caminho entre as duas aldeias.
Em seguida, mudas de plantas frutíferas foram plantadas na aldeia Kuaray Oua como forma de fortalecimento do território dos indígenas. O evento contou também com a exposição de artesanato da comunidade e degustação da culinária indígena e foi finalizada por volta das 17h.
Intimidade violada
A escolta dos policiais militares até a aldeia, durante a manhã de sábado (18/12) se caracteriza como uma grave violação a intimidade dos indígenas, é o que pensa Luísa Cytrynowicz, assessora jurídica da CGY. Ela ainda ressalta que os policiais presenciaram as cenas de ameaças e não tomaram nenhuma providência. “Durante todo o período em que eles fizeram esses registros e intimidaram os indígenas a PM estava presente, quando questionados pela assessoria dos indígenas, informaram que estavam cumprindo uma ordem judicial, mas não informaram que ordem seria essa.”
Em um vídeo encaminhado para a reportagem é possível ver a identificação de um dos policiais militares, que se identifica como 3º sargento da PM Leandro.
Quando acessada, a ordem judicial da juíza Márcia Blanes do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) nada falava sobre qualquer diligência em campo e não autorizava ou pedia aos policiais que acompanhassem os indivíduos até a aldeia, como revela Luísa. “Os policiais acompanharam os responsáveis pela ameaça à aldeia indígena, impedindo os indígenas que reclamassem da presença deles ali por estarem violando a sua privacidade. Eles estiveram lá alegando o cumprimento de uma ordem judicial que não existe”, criticou.
A decisão da magistrada faz parte de uma ação de pedido de reintegração de posse movida em 2 de dezembro deste ano pelo empresário Cícero Ferreira dos Santos, que se diz dono do terreno que incide sobre a aldeia indígena. Nela os advogados Alan Minutentag e Murilo Paschoal de Souza apontam que em novembro de 2021 Cícero comprou o imóvel rural “Sítio Colinas Verdes” de José Jorge Peralta, e que em outubro de 2021 identificou na suposta área “invasores desconhecidos”.
Ainda no documento os advogados não mencionam que há indígenas residindo no local e nem que a área é uma Terra Indígena demarcada. No entanto, anexam no processo um Boletim de Ocorrência assinado pelo delegado Alberto Alves Moreira em 26 de novembro de 2021. Nele, José Jorge Peralta afirma que a área foi “invadida” por indígenas e se diz dono do terreno. No documento são anexadas fotografias de casas dos indígenas construídas com alguns pedaços de madeira e lonas.
Para além disso, nos autos acessados pela Ponte, Blanes solicita ao autor da ação um croqui de toda a área apontando onde houve a invasão, e a magistrada questiona se há de fato indígenas no local e pede esclarecimentos ao autor da ação, chamando a atenção para o fato de que a Justiça Estadual é incompetente para apreciar questões envolvendo indígenas.
Na visão de Tiago, os invasores tentam criminalizar os indígenas. “Nós tivemos acesso ao documento e eles destacavam que tinham ‘invasores não identificados’ que estão desmatando a área e que eles querem preservar a natureza e a nascente. Eles querem criminalizar a gente, essa área que está ocupada hoje era muito degradada de vegetação e está dentro da APA [Área de Preservação Ambiental], ao mesmo tempo nós temos as legislações que garantem o nosso uso do território com autonomia principalmente para moradia e alimentação.”
Ele ainda contesta a comercialização de terrenos dentro da TI Tenondé Porã. “O que de fato aconteceu foi uma venda de má fé, uma compra ilegal, o antigo proprietário sabia da demarcação, a partir do momento que a Terra Indígena é reconhecida ela não pode ser vendida. Quando uma área indígena é declarada, essa compra se torna nula, a gente tenta explicar e conversar, mas estamos lutando pelo nosso direito, na legalidade.”
Ao contrário do que argumenta Cícero em sua ação para reintegração de posse, segundo levantamento da própria CGY, apenas em 2019 foram plantadas mais de 300 mudas de espécies como pitanga, cambuci, araucária e palmito juçara, entre outras, no entorno de apenas uma das aldeias Guarani na região de São Paulo. As ações que envolvem a recuperação de áreas degradadas com mudas da própria Mata Atlântica também abrangem a autonomia alimentar dos indígenas Guarani, ao todo são mais de 50 variedades de batata doce, 16 de milho, 14 de mandioca, 10 de feijão, 11 de abóbora, entre outros cultivares na TI Tenondé Porã, onde também há alternativas de proteção de nascentes e rios, como o Rio Capivari.
Território demarcado
A TI Tenondé Porã teve os seus estudos de identificação e delimitação de território concluídos e aprovados pela presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2012. Em 2016 foi publicada a Portaria Declaratória do Ministério da Justiça nº 548, instrumento que declara o território da comunidade indígena Tenondé Porã como de ocupação tradicional do povo Guarani e portanto como destinado ao usufruto exclusivo da comunidade indígena. Na área demarcada de 15.969 hectares vivem aproximadamente 2 mil pessoas.
Ainda no âmbito dos estudos de identificação, no Relatório de Identificação da Terra Indígena Tenondé Porã, José Jorge Peralta foi verificado como dono do terreno. Apesar da demarcação e do reconhecimento pelo próprio governo federal, a fase de desintrusão que faz parte do processo demarcatório da TI Tenondé Porã ainda não ocorreu. Nesta etapa, eventuais ocupantes não indígenas são retirados da terra com respaldo legal.
Segundo Luisa, Cícero tem se apresentado como novo dono do “Sítio Colinas Verdes” desde agosto deste ano. Ele alega ter comprado um terreno na região que está sobreposto à TI. “A partir daí ele, juntamente a um grupo tem ameaçado a comunidade, boa parte das vezes armados. No dia 13 de dezembro, eles efetuaram inúmeros disparos de arma de fogo para o alto.”
Luisa explica que os invasores destruíram materiais para a construção de casas que os indígenas possuíam. “Despedaçaram sacos de areia e de pedra, quebraram telhas, destruíram inclusive uma casa de uma família indígena que estava vivendo nessa aldeia, essa família que não teve mais como residir lá, uma vez que a sua casa foi destruída por essas pessoas que tem comparecido à aldeia para ameaçá-los.”
Diante de tantas ocorrências, um boletim de ocorrência foi lavrado na 25ª delegacia de Polícia de Parelheiros ainda em 26 de novembro. No documento assinado pelo delegado Fabio Akira Tokuda, um indígena Guarani que preferiu não se identificar por medo de represálias afirma que no dia 24 de novembro foi abordado em sua aldeia por dois indivíduos em um carro, sendo que um deles portava uma arma, ameaçando-o um dos homens disse que era para ele deixar a sua casa até a tarde e caso não saísse eles voltariam.
Na sequência deste BO, todas as outras ocorrências foram encaminhadas ao Ministério Público Federal (MPF) que está com um procedimento aberto acompanhando a questão desde o dia 26 de novembro. O MPF encaminhou todos os documentos à Polícia Federal, que abriu um inquérito policial, em 13 de dezembro, para investigar a questão, uma vez que os direitos indígenas permanecem sob a proteção de órgãos federais. A investigação, segundo a advogada, está em curso na PF, que esteve na aldeia ao longo da semana passada e está dando andamento às investigações.
Em ofícios da CGY encaminhados ao MPF e obtidos pela reportagem, outros casos de violência e ameaças contra os indígenas da região são narrados. Um deles aconteceu em 25 de novembro quando uma das lideranças indígenas, que preferiu não se identificar por conta das ameaças foi abordada por três homens que se identificavam como supostos proprietários do terreno, no episódio os homens exigiam a saída imediata da comunidade de lá, a liderança entretanto enfatizou que a TI é demarcada. Conforme explica um ofício encaminhado ao MPF em 26 de novembro, o eventual processo de compra do território é fraudulento, uma vez que o comércio de territórios indígenas é proibido.
Como expõe o artigo 9º da Instrução Normativa 002/2012 da Funai, que regulamenta uma das etapas do procedimento demarcatório do Decreto 11.775/1996, “após a publicação da portaria declaratória da Terra Indígena, a Diretoria de Proteção Territorial procederá à vistoria das ocupações e das benfeitorias erigidas, lavrando um laudo, para cada ocupação (…)”. A partir disso, caso haja boa fé da ocupação, o detentor das benfeitorias deverá ser indenizado pela Funai.
No caso da TI Tenondé Porã o levantamento detalhado das benfeitorias de boa-fé não foi finalizado e os pagamentos das indenizações portanto também não foram concluídos. Ainda assim, mais especificamente na aldeia Kuaray Oua que vem sofrendo os ataques mencionados acima, não há qualquer benfeitoria e nem ao menos indícios de posse de não indígenas no local, segundo o ofício elaborado pela CGY.
Pedido de paz e ações do poder público
Diante do cenário crítico em que se encontram os indígenas Guarani, Tiago pediu à sociedade civil e ao poder público que sejam tomadas ações a fim de fortalecer as terras indígenas do município de São Paulo. “É o momento do próprio município reconhecer essas áreas como patrimônio da cidade, que valorizem essas áreas verdes, por que aqui é onde tem o último rio limpo de São Paulo, o Rio Capivari, é preciso que o poder público tome providências.”
Assim como Tiago, a esperança de Jera Gabriel é de seguir a retomada de seu território já demarcado, mas de forma pacifica. “Essa retomada [do território] para a gente é muito importante porque tentam acabar com a nossa cultura e eu não quero que isso aconteça com a gente, quero continuar fazendo as plantações, essa retomada é pela paz. O mais importante para a gente é preservar a natureza, porque sem a natureza a gente não vive, ninguém vive. Pela nossa saúde, pela vida de todo mundo, até dos invasores, porque eles têm famílias que precisam da natureza para sobreviver.”
O que dizem os órgãos responsáveis
A reportagem questionou o MPF, a PF e a Funai sobre como os órgãos têm atuado neste caso para garantir a proteção e o direito dos indígenas da Terra Indígena (TI) Tenondé Porã, também foi perguntado por que a comercialização de terrenos dentro da TI segue ocorrendo apesar da demarcação do território já reconhecida e se os respectivos órgãos tiveram conhecimento da abordagem realizada neste sábado (18) pela PM e supostos proprietários do terreno.
Para a Funai a Ponte indagou ainda por que o processo de desintrusão ainda não foi concluído na área, assim como o levantamento detalhado das benfeitorias de boa-fé e as indenizações, mas até o momento não houve reposta. O MPF informou, por meio de nota, que “o caso está sendo acompanhado pelo Ministério Público Federal, que solicitou a atuação da Polícia Federal com prioridade e urgência. Por enquanto não recebemos mais informações sobre a situação”.
Já a assessoria da Polícia Federal disse que “instaurou inquérito policial para apurar eventual materialidade e autoria dos fatos” e que a investigação está em andamento.
Outro lado
A Ponte tentou entrar em contato com os senhores Cícero Ferreira e José Jorge Peralta por meio dos telefones disponibilizados nos autos e e-mail do advogado de Cícero, até o momento não houve contato. Além disso, a reportagem esteve no local em que há uma sede do Sítio Colinas Verdes e não foi atendida por ninguém.
Ao se deslocar ao 50º Batalhão de Polícia Militar de São Paulo em Parelheiros nenhuma questão sobre a ocorrência do último sábado (18/12) foi respondida. Procurada, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) do estado de SP, não respondeu qual o motivo da presença do 3º sargento da PM Leandro e dos policiais na área e nem quem autorizou a entrada dos mesmos na área. A pasta também não informou se os policiais presenciaram as ameaças contra os indígenas.
Reportagem atualizada às 17h36, de 20/12/2021, após recebimento de resposta da PF.