Inquérito do Ministério Público paulista se adianta em relação a versão federal do órgão; pequisa realizada com dinheiro da Volkswagen traz detalhes da colaboração do jornal, descritos por vítimas e algozes
Sessenta anos após o golpe de 1964, o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) investiga o apoio material dado pelo Grupo Folha aos agentes da ditadura militar instaurada a partir da deposição do então presidente João Goulart. Um inquérito está em andamento com base no relatório de uma ampla pesquisa que reitera a denúncia de que carros da empresa de comunicação, destinados à distribuição dos exemplares do jornal Folha de S. Paulo, foram usados pela polícia em emboscadas para prender ativistas de oposição ao regime.
O material que está nas mãos do MP-SP foi apresentado no segundo semestre de 2023 em um seminário na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), quando também foram reproduzidas gravações de alguns depoimentos. O trabalho foi coordenado por Ana Paula Goulart, professora da Escola de Comunicação da UFRJ, referência em estudos envolvendo mídia e memória social. A equipe envolvida foi composta por pesquisadores de diferentes universidades. Uma de suas conclusões é de que os veículos de distribuição do jornal foram usados em diferentes ações da Operação Bandeirante (Oban), instituída pelo regime militar em 1969 com o objetivo de desarticular grupos engajados na oposição à ditadura.
Ana Paula defende que o Grupo Folha seja implicado como um dos responsáveis pelas violações aos direitos humanos durante o período, pois haveria evidente nexo causal entre o empréstimo dos carros e os desdobramentos das ações que resultaram em prisões, torturas, assassinatos e desaparecimentos. Ela avalia que muitas empresas jornalísticas apoiaram editorialmente a ditadura e esse alinhamento eventualmente lhes beneficiou economicamente. Mas no caso da Folha, as relações iriam além da afinidade ideológica.
“Até onde sabemos, é a única empresa jornalística que contribuiu materialmente com o aparato repressivo da ditadura militar. E isso é muito importante”, diz ela. Diversos militantes que atuaram na luta contra a ditadura sempre afirmaram não terem dúvidas do empréstimo dos carros da Folha de S. Paulo. Essas denúncias são mencionadas no livro Cães de guarda: jornalistas e censores, publicado em 2004 como resultado da pesquisa de doutorado de Beatriz Kushnir na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
As investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída pelo governo brasileiro em 2011 para apurar as graves violações de direitos humanos durante o regime militar, chancelaram esses relatos. Com base em testemunhos e documentos, seu relatório final indicou “o uso de caminhonetes da Folha para o cerco e a captura de opositores do regime”.
Procurada pela reportagem, o Grupo Folha afirmou, através de sua ombudsman Alexandra Moraes, que tudo o que foi apurado internamente sobre os temas tratados pela pesquisa constam em uma publicação veiculada no site da Folha de S. Paulo em junho do ano passado. Na ocasião, o jornal compartilhou trechos de um memorial escrito pelo jornalista Oscar Pilagallo. Produzido a partir de uma demanda interna em 2005, ele não foi divulgado ao público na época. Segundo o Grupo Folha, boa parte das informações foi usada pelo jornalista posteriormente no livro História da Imprensa Paulista, de 2011.
No memorial, Pilagallo reconhece que “o mais provável é que os carros da Folha tenham efetivamente sido usados pela repressão”, mas afirma que não há informações suficientes para responder quem teria autorizado o empréstimo dos veículos, colocando em dúvida o envolvimento dos dois proprietários da empresa. Segundo ele, o caso não foi de conhecimento de Octavio Frias de Oliveira, falecido em 2007, e não se tem conhecimento de documentos que permitam atribuir qualquer responsabilidade a Carlos Caldeira, que morreu em 1993.
O tema também já foi abordado anteriormente em outras ocasiões pelo Grupo Folha. Nessas manifestações, a empresa coloca dúvidas sobre a história, sem negá-la enfaticamente: sustenta que, se ocorreu, foi de forma episódica e sem anuência da sua cúpula. Em 2011, um caderno especial publicado por ocasião dos 90 anos da Folha de São Paulo registra que “a direção sempre negou ter conhecimento do uso de seus carros para tais fins”.
Há ainda um depoimento onde Otávio Frias Filho, que assumiu em 1984 a direção de jornalismo da empresa do pai, admitiu que veículos de distribuição da Folha foram mesmo empregados em ações de repressão comandadas pelo Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), órgão subordinado ao Exército. Ele não deixa de defender, no entanto, que o empréstimo ocorrera sem consentimento de Octavio Frias de Oliveira e de Carlos Caldeira.
“Depois de conversar com o meu pai até com gente que teve ligações com a guerrilha naquela época, eu diria que sim: os caminhões de transporte da Folha foram usados por equipes do DOI-Codi para fazer campana e até prender guerrilheiros, ou supostos guerrilheiros. Mas tenho a convicção de que isso foi feito à revelia do meu pai e até do Caldeira. Eu digo até do Caldeira, porque ele era a pessoa que tinha mais afinidade com esse setor do regime militar”, disse em entrevista para o livro A Trajetória de Octavio Frias de Oliveira, biografia escrita por Engel Paschoal e publicada em 2007.
Os envolvidos na nova pesquisa, no entanto, não creem nesse desconhecimento dos donos do jornal e destacam o depoimento colhido de Marival Chaves do Canto, ex-sargento e agente do DOI-Codi. Para ele, seria impossível que os donos do jornal não estivessem a par dos empréstimos. A gravação com o testemunho de Marival foi apresentada no seminário ocorrido na UFRJ.
“Era um contato feito dentro da direção. Essa direção escalava um carro para tal lugar, tal hora, para estar ali naquele local. Ali, entrava-se em contato com pessoas, dirigentes da operação, posicionava o carro no local mais adequado e, a partir daí, o processo se desenvolvia. Para que não houvesse testemunha, o motorista era dispensado: deixa a chave aqui, deixa o carro aqui e você vai dar uma volta por aí e só aparece aqui tal hora. Exatamente para que não houvesse conhecimento”, diz ele.
A pesquisa nasceu como um desdobramento da investigação do Ministério Público Federal (MPF) sobre a cumplicidade da Volkswagen na perseguição de seus trabalhadores durante o regime militar. Em 2020, a montadora concordou em assinar um acordo de reparação de danos. Foram previstas ações que somam R$ 36,3 milhões, dos quais R$ 4,5 milhões se destinaram ao financiamento de novas pesquisas para apurar o envolvimento de outras empresas em violações do período.
A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) ficou responsável por coordenar os estudos e abriu uma série de editais. A chamada para investigar a Folha de S. Paulo, única empresa de mídia entre as estudadas, selecionou o grupo liderado por Ana Paula Goulart. Além de mergulhar em acervos já existentes em busca de documentos que abordam o assunto, eles entrevistaram mais de 40 pessoas.
Um dos grandes méritos dos pesquisadores foi conseguir reunir materiais de diferentes origens e coletar depoimentos de diversas fontes que apontam em uma mesma direção. Marival não é o único ex-agente da repressão que discorre sobre o assunto. Há outros depoimentos que corroboram com uma mesma versão, havendo menções de que carros da imprensa não chamavam a atenção e de que eles também eram usados para instalação de grampos.
O empréstimo dos veículos seria um fato de conhecimento de todos na redação, segundo afirmou o jornalista Jorge Okubaro. Ele foi subsecretário de redação da Folha da Tarde, publicação da empresa mais enfática na defesa do regime. “Sabíamos, à época, que a Folha fazia isso”, registra o testemunho que ele gravou para os pesquisadores.
Vítimas
Entre as vítimas, um dos depoimentos colhidos pelos pesquisadores foi de Adriano Diogo, preso e torturado junto com sua companheira por agentes da repressão em março de 1973. Ele contou que, antes de ser abordado, um veículo do jornal ficou estacionado em um borracheiro próximo à sua casa por alguns dias. A situação lhe chamou a atenção porque ele morava no bairro da Mooca, distante da redação da Folha de S. Paulo. “A tal borracharia não era nenhuma empresa que fazia suspensão, freio, roda, balanceamento. Era uma humilde borracharia, uma bobagem que só fazia remendo de pneu”, acrescentou.
Ele conta que as preocupações acabaram se justificando. “Daquele carro da Folha de S. Paulo que estava no borracheiro saíram os militares que entraram no apartamento e nos prenderam”, afirmou, acrescentando que o episódio foi testemunhado por vários moradores do bairro. “Todo mundo viu a cena, parou o quarteirão inteirinho. Eles interditaram, puseram barreiras, puseram armas.”
Relatos semelhantes aparecem em relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. Há menção ao uso de um carro baú da Folha de S. Paulo por militares que teriam organizado uma emboscada que resultou nas mortes de três militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN), uma das organizações de esquerda envolvidas na luta armada contra o regime.
A percepção de que o Grupo Folha estava colaborando com a repressão gerou reação. Em setembro de 1971, dois carros da empresa jornalística foram incendiados pela ALN. No mês seguinte, um terceiro foi queimado. Em resposta, o jornal publicou um editorial atacando o “banditismo” e o “terrorismo” e defendeu que o país tinha “um governo sério, responsável, respeitável e com indiscutível apoio popular”. Após os episódios, a família Frias passou a adotar medidas mais rígidas de segurança, contando inclusive com proteção fornecida pelas forças de repressão: dois agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) ficaram encarregados da escolta.
“Não há versão dissonante, não há contradição. E não estamos falando somente das vítimas. Estamos falando de pessoas que estavam do outro lado afirmando literalmente as mesmas coisas que as vítimas. E entrevistamos também testemunhas que viram essas coisas acontecendo”, observa Flora Daemon, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) que também integrou a pesquisa.
Ela destaca que o suporte material à repressão integra um contexto mais amplo, que inclui o apoio editorial e o fortalecimento da empresa, que seria de interesse dos militares. A pesquisa buscou fazer essa conexão e investigou também outras questões como o conteúdo jornalístico das publicações do Grupo Folha e os negócios que levaram ao crescimento econômico, além da contratação de policiais como jornalistas e da violação de direitos trabalhistas. Flora chama atenção para as particularidades da relação íntima entre a empresa o regime. “O Estadão apoiava a ditadura, o Globo apoiava, os grandes jornais eram apoiadores, mas ninguém deu apoio material à repressão como a Folha de S. Paulo”, enfatiza.
Inquéritos
O MPF esperava a conclusão da pesquisa para dar andamento a um inquérito civil aberto em 2022 para apurar responsabilidades da Folha de S. Paulo por violações de direitos humanos no período da ditadura militar. O relatório já foi encaminhado pela Unifesp. O MPF confirma o recebimento mas informa que aguarda o envio de todo o material na íntegra “para efetuar a análise e definir os próximos passos”.
Paralelamente, o MPF compartilhou as informações com o MP-SP, que decidiu instaurar inquérito civil próprio no final de janeiro. A decisão foi assinada pelo promotor Reynaldo Mapelli Júnior e pelo analista jurídico Lucas Martins Bergamini. Eles pontuaram que a pesquisa descreveu a atuação da Folha de S. Paulo “de modo minucioso”, apontando o apoio ao regime militar, a legitimação do regime, a obtenção de benefícios econômicos, a contratação de militares e policiais na ativa, o apoio material ao aparato repressivo, a violação de leis trabalhistas e os danos aos trabalhadores presos e perseguidos.
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O promotor e o analista jurídico defendem ainda “a necessidade de se investigar os fatos de modo a elucidar a verdade, preservar a memória, propiciar reparações e reformar procedimentos da Folha de S. Paulo”. A abertura do inquérito vai ao encontro das expectativas dos pesquisadores.
“A gente não quer acabar com a Folha de S. Paulo. A gente quer que ela assuma sua responsabilidade. A Folha de S. Paulo não fez o dever de casa quando se autoanalisou. Ela conta a sua história de maneira muito estratégica, ofuscando momentos históricos. Poderia aproveitar uma investigação como essa e dizer: ‘Sim, nós fizemos. Lamentamos e nos desculpamos. E para que não se repita, nós vamos colaborar como pudermos. Para que a história nunca mais tenha um jornal da expressão da Folha de S. Paulo colaborando com uma ditadura'”, diz Flora.