Comitiva formada por Ouvidoria das Polícias e entidades de direitos humanos visitou São Vicente e Cubatão e ouviu denúncias de vítimas da Operação Escudo/Verão na região
O pedido de silêncio diante da morte de mais um jovem negro pela polícia foi entoado pelos familiares de mortos de uma operação realizada pela Polícia Militar de São Paulo na Baixada Santista — chamada de Operação Escudo ou Verão — que já matou 39 pessoas ao longo do úlitmo mês.
Em protesto contra a violência policial, dezenas de mulheres marcharam na tarde deste domingo (3/3) em Cubatão, no litoral sul de SP, vestindo camisetas com os rostos de seus parentes assassinados.
“Silêncio, silêncio! O jovem negro está dormindo”, gritavam no ato, composto também por representantes de movimentos sociais e organizações de defesa dos direitos humanos, que levavam cartazes com as frases “paz e justiça” e “e quando é a polícia que mata?”.
A denúncia de que um extermínio está acontecendo na Baixada Santista foi unanimidade entre as familiares presentes. “Foi chacina, não há confronto quando um lado só atira e eu vou buscar por justiça”, disse Juliana Ramos, 34 anos, cuidadora de animais e irmã do auxiliar de serviços gerais Jefferson Ramos Miranda, morto aos 37 anos no Morro São Bento, em Santos, em 9 de fevereiro, juntamente com um amigo de infância, Leonel Andrade Santos, 36.
A mobilização fez parte da programação da visita de uma comitiva formada por representantes da Ouvidoria das Polícias e de órgãos e entidades de direitos humanos à Baixada Santista (região composta pelas cidades de Santos, Bertioga, Cubatão, Guarujá, Itanhaém, Mongaguá, Peruíbe, Praia Grande e São Vicente), ocorrida neste domingo. O grupo foi às cidades de São Vicente e Cubatão para ouvir relatos de familiares de vítimas e prestar atendimento aos moradores das cidades alvo da operação da PM. A visita teve início às 9h30 e acabou por volta das 17h30.
Ao todo, foram ouvidas oito pessoas que tiveram seus familiares mortos nas ações policiais. Duas das escutas se deram em São Vicente e as outras seis foram realizadas em Cubatão.
O ouvidor das Polícias, Cláudio Aparecido da Silva, afirmou que, para além da produção de mortes, a polícia também tem intimidado os moradores a não denunciarem as ações.
Um exemplo disso, de acordo com ele, foi a invasão cometida por PM de um enterro de uma vítima de São. “A gente recebeu imagens de policiais entrando no meio de um enterro amedrontando e aterrorizando as pessoas que estavam num enterro. É um vídeo em que os policiais invadem uma cerimônia de sepultamento de uma vítima, isso é uma prova de intimidação concreta e contundente.”
A atual operação da PM na Baixada Santista foi deslanchada após a morte do Marcelo Augusto da Silva, 38, em 26 de janeiro, e foi inicialmente chamada de Escudo pela Polícia Militar, mas depois o secretário Derrite voltou atrás e disse que as mortes pela PM eram parte da Operação Verão, que acontece rotineiramente todos os anos no litoral.
Instituídas pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e pelo secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, em reação às mortes de policiais, as Operações Escudo são consideradas ações organizada de vingança, criticadas por moradores de bairros pobres e por ativistas de direitos humanos pelas práticas de execuções, torturas e ameaças, que já foram denunciadas duas vezes na Organização das Nações Unidas (ONU) e também na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
À Ponte, o ouvidor disse que não possui os nomes de todas as vítimas e nem os locais e circunstâncias das mortes da atual operação na Baixada. Segundo ele, os dados são encaminhados pela Secretaria da Segurança Pública, mas não há documentação de todas as mortes. Ele afirmou ter conhecimento de 19 mortes, sendo 16 de civis e as outras três de policiais. Desses 19 mortos, 16 são pessoas negras.
O ouvidor ainda relatou não ter recebido nenhuma resolução a respeito de seu pedido para que houvesse um aumento no uso de câmeras corporais nos batalhões que atuam nas cidades da Baixada Santista. Segundo Cláudio, não há até o momento nenhum inquérito instaurado das vítimas que morreram nas operações deste ano.
Um novo relatório será produzido pela comissão e encaminhado ao Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), como foi feito na semana passada, a partir de uma visita anterior feita pela mesma comitiva.
Outro ponto destacado pelo ouvidor é a dificuldade de diálogo com o secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite. “Desde a Operação Escudo, em que a Ouvidoria teve um posicionamento duro e crítico sobre a operação, não há qualquer contato com a Secretaria de Segurança Pública em relação às operações. O próprio secretário mudou de telefone e o ouvidor não tem o telefone do secretário para você ter um exemplo”, disse.
Os boletins de ocorrência contém, em sua maioria, apenas a palavra dos policiais, disse o ouvidor, que complementou alegando que os relatos são todos iguais.
O relato padrão estilo copia-e-cola nos boletins se repete até mesmo nos casos em que as pessoas não morreram, como no de Juan Ribeiro de Araújo, 27 anos, servidor público e um dos sobreviventes. “O pai do Juan teve negado o direito de dar a versão dele dos fatos e ele acompanhou todos os fatos, desde o princípio da abordagem até o fim. Ele só foi ouvido porque essa mesma missão no domingo de Carnaval pegou ele, acompanhou até a delegacia e a versão dele foi colocada na ocorrência.”
Além disso, moradores do bairro Parque Bitaru, em São Vicente, relataram à Ponte que policiais militares invadiram o hospital onde o servidor público estava internado, após ser baleado duas vezes à queima-roupa por um PM, em 9 de fevereiro.
Nesse sentido, a representante da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, Luzia Paula Moraes Cantal, salientou que as violações passam também pelo apagamento de provas.
“Há um confronto grande entre narrativas de familiares e policiais. Detectamos o caso de um jovem morto dentro de casa e o imóvel foi lavado com água e sabão antes dos peritos chegarem. Isso demonstra violações de provas e dificuldade de saber o que na verdade ocorreu”, disse.
Cláudio Silva foi informado também sobre um suposto assassinato de um usuário de drogas na rodovia Imigrantes e de um jovem de 14 anos, residente do Bolsão Oito, em Cubatão, onde pode ter ocorrido o deslocamento do corpo.
O medo da polícia, segundo ele, está presente em todos os locais visitados. “Jovens têm medo de sair de suas casas, aliás, esse medo ocorre em todas as comunidades às quais visitamos. Trabalhadores reclamam de estarem tendo abordagens com reviramento de marmitas”, afirma o ouvidor.
Cotidiano de terror
Andar livremente pelas ruas do bairro Jóquei Club, em São Vicente. não é mais possível. O medo das ações policiais marcadas por execuções, ameaças, perseguições e até invasões de residências já é parte do cotidiano diário dos moradores do local desde o início deste ano, quando foi instaurada a chamada Operação Verão.
A reportagem esteve no local e conversou com moradores que preferiram não se identificar por medo de represálias.
Segundo eles, os policiais entram nas vielas do bairro, à noite, e já chegaram a apontar armas para a cabeça de crianças, queimar uma casa e quebrar eletrodomésticos.
Eles estimam que cerca de 15 pessoas já foram mortas somente neste ano. Também forjam crimes colocando drogas em mochilas de jovens e “arregaçam” moradores que estão na rua, além disso, foi dito à reportagem que os policiais xingam mulheres de “vagabundas” e ameaçam os moradores de morte frequentemente.
Samir Angelo, 35 anos, líder comunitário do Jóquei Club, conta que o bairro é composto por mais de 50 mil pessoas e que a rotina das pessoas mudou. “Não pode ir num bar, não pode fazer nada, pessoal te chama pra almoçar, você não vai com medo de que possa acontecer uma reação, algumas coisas que não foram previstas.”
O mesmo ocorre na Vila Lindóia, em Santos, como aponta Juliana Ramos. “A comunidade está oprimida, com medo, eles voltam de comboio, param os ônibus, até os ônibus escolares, ninguém mais é feliz”, relata.
Irmãs do auxiliar de serviços gerais Jefferson Ramos Miranda, morto aos 37 anos, no Morro São Bento, em Santos, Juliana e Carol Ramos denunciaram a execução do irmão, na noite de 9 de fevereiro. O caso foi revelado pela Ponte.
Segundo elas, Jefferson e o amigo Leonel Andrade Santos conversavam na comunidade, por volta das 21h, quando Jefferson foi baleado no tórax por policiais militares do 4º Batalhão de Choque, do Comando de Operações Especiais (COE).
Segundo o boletim de ocorrência, a dupla foi alvo de sete tiros disparados pelos PMs Valci José Gouveia de Jesus e Rahoney de Paula Vieira.
Segundo a polícia, os amigos estariam supostamente armados e teriam disparado contra os policiais. Além disso, segundo o documento policial, Jefferson e Leonel portavam drogas em uma sacola plástica.
Ainda de acordo com a versão dos policiais, Jefferson e Leonel foram socorridos até a Santa Casa de Santos, mas não resistiram.
Por outro lado, Juliana afirma que o irmão não era envolvido com o crime e que não foi socorrido pelos policiais imediatamente.
“Ele ficou agonizando no chão, eles deram coronhadas na cabeça dele, eles tiraram massa encefálica da cabeça do meu irmão e ele teve uma parada cardiorrespiratória às 22h20, sendo que o tiro que ele tomou foi às 21h.”
Beatriz da Silva Rosa, 29 anos, esposa de Leonel Andrade Santos, chorou ao lembrar da falta do marido e da situação dos três filhos do casal. “Eles estão passando no psicólogo e tudo só não está adiantando. O meu mais velho entende um pouco, mas os outros dois todo dia é uma luta para dormir, eles não querem comer direito, então está bem difícil porque eles querem o pai.”
O que diz o governo
Questionada, a assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo enviou a seguinte nota:
As forças de segurança do Estado de São Paulo são instituições legalistas que atuam no estrito cumprimento do seu dever constitucional. É importante esclarecer que nenhum relato citado pela reportagem foi formalizado junto às corregedorias das polícias, que estão à disposição para apurar toda e qualquer denúncia contra agentes públicos, reafirmando o compromisso com a legalidade, os direitos humanos e a transparência.
Os casos de Morte Decorrente de Intervenção Policial (MDIP) são consequência direta da reação violenta de criminosos à ação da polícia no combate ao crime organizado, que tem presença na Baixada Santista e já vitimou três policiais militares desde 26 de janeiro. A opção pelo confronto é sempre do suspeito, colocando em risco a vida do policial e da população.
Todas as ocorrências de mortes em confronto tiveram apreensão de armas usadas pelos criminosos para atacar os agentes de segurança. Os casos são rigorosamente investigados pela Polícia Civil e Militar, com acompanhamento do Ministério Público e Poder Judiciário.