Jovens com deficiência executados, ameaças, invasão de hospital: as novas denúncias sobre a Operação Escudo

‘As crianças não podem ver policial que já começam a tremer’: moradores da Baixada Santista relatam rotina de terror com novas fases da operação, que já deixou 20 mortos em dez dias; comitiva colheu relatos de violações

José Marques Nunes da Silva, Hilderbrando Simão Neto e Jefferson Ramos Miranda, três das 20 pessoas mortas pela polícia na Baixada Santista em fevereiro | Fotos: arquivo pessoal/reprodução/redes sociais

“Não importa se é trabalhador ou não, nós estamos morrendo.” A constatação é da liderança comunitária Fran L’eraistre, 50 anos, moradora de São Vicente (SP), na Baixada Santista. A cidade é uma das que mais têm sido afetadas pela mais recente edição da Operação Escudo, que já fez 20 mortos desde o último dia 3.

Segundo especialistas, as Operações Escudo funcionam como ações organizadas de vingança da Polícia Militar instituídas pelo governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) para atuar em determinadas regiões após a morte de policiais. No ano passado, diversas organizações de direitos humanos já haviam denunciado as práticas de execuções e tortura pela Escudo, inclusive no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).

Na Baixada, a atual edição da Operação Escudo foi intensificada após as mortes do soldado Marcelo Augusto da Silva, 28, do 38º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M), em Cubatão, no dia 26 de janeiro, e do soldado Samuel Wesley Cosmo, 35, das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), força especial da PM, em 2 de fevereiro, na cidade de Santos.

“É a primeira vez que vejo tantos inocentes morrendo. O policial também é uma vida, mas o que eles estão fazendo aqui é para vingar a vida de um policial. E as nossas vidas? Quem está por nós?”, prossegue Fran L’eraistre, que afirma nunca ter visto tanta violência nos 30 anos em que vive na comunidade México 70.

A líder comunitária afirma que a PM está invadindo casas e realizando abordagens violentas na favela. “Não tem dia nem hora para acontecer. Eles não querem saber quem está dentro. Então, um chute que eles dão na porta dessas casas quebra a porta, quebra tudo, porque é palafita. Teve uma família, que eu atendi, que o policial entrou na casa da pessoa, começou a revirar a casa toda e pediu pra mulher: ‘fala pra essa criança calar a boca, senão eu vou te matar aqui na frente dela’. As crianças não podem ver policial que já começam a tremer e a chorar. É revoltante”, afirma.

Ainda em São Vicente, moradores do bairro Parque Bitaru denunciam que policiais militares estão fazendo “visitas” e tirando fotos dentro do hospital onde está internado o servidor público Juan Ribeiro de Araújo, 27, que, mesmo desarmado, foi baleado duas vezes a queima-roupa por um PM na última sexta-feira (9/2). A família autorizou a reportagem a publicar a foto de Juan, que teria sido tirada por policiais dentro do Hospital Vicentino.

Juan está intubado após ter sido baleado duas vezes por PM na sexta-feira (9/1) | Foto: arquivo pessoal

A ida de policiais a unidades de saúde onde estão internados feridos pela própria PM também foi uma prática denunciada em relatório preliminar do Conselho Nacional de Direitos Humanos sobre a Operação Escudo realizada entre julho e agosto de 2023, após do assassinado do soldado Patrick Reis, também da Rota, no Guarujá. Durante os 40 dias dessa fase da operação, a PM matou ao menos 28 pessoas e também praticou torturas e execuções, segundo moradores.

Segundo o advogado Rui Elizeu, que representa a família de Juan, a “visita” dos policiais militares aconteceu na madrugada de sábado, sem autorização. “Eles foram na ilegalidade. Eles não têm atribuição de investigar algo que já aconteceu. Foram lá e tiraram foto dele intubado e essa foto começou a rodar nos grupos de polícia com a frase ‘não morreu ainda’, inclusive expondo mais ainda a imagem e a dor do Juan e da família. Isso já está sendo comunicado ao Ministério Público junto com as demais evidências que temos para essa investigação”, declarou. “Isso é uma barbárie tremenda, não tem outro nome”, afirma.

Em São Vicente, ocorreram ainda as mortes do catador de latinhas José Marques Nunes da Silva, 45, em 3 de fevereiro, no bairro Jóquei Clube, e de Hilderbrando Simão Neto, 24, e Davi Gonçalves Dias, 20, dentro de casa de Hilderbrando, no bairro Parque São Vicente, em 8 de fevereiro, todos por policiais da Rota, como a Ponte revelou.

A família contou que José implorou para não ser morto quando foi abordado a caminho de casa depois do trabalho. Já Hilderbrando tinha deficiência visual, estava com Davi e outros parentes fazendo café em casa quando os policiais invadiram o local, mandaram parte das pessoas presentes saírem, menos o jovem e seu amigo, de acordo com testemunhas. Um vídeo registrou o momento em que parentes, do lado de fora, gritavam de desespero ao ouvirem som de tiros.

Nos três casos, a polícia alega que as vítimas estariam armadas e que atiraram, tentaram atirar ou fizeram “menção de atirar” contra os policiais.

Em Santos, no Morro São Bento, familiares denunciam que Jefferson Ramos Miranda, 37, e Leonel Andrade Santos, 36, foram executados na noite de sexta-feira (9/1), e contestam a versão da polícia de que houve troca de tiros. A polícia diz que os dois estavam armados, portavam uma mochila e dispararam quando viram os agentes, segundo o jornal A Tribuna. Um vídeo divulgado pelas redes sociais mostra moradores e parentes transtornados próximo a uma ambulância do Corpo de Bombeiros em que policiais militares do Comandos e Operações Especiais (COE) impedem a aproximação. Uma mulher grita desesperada “mataram meu filho!”.

Em um relato da mãe de Jefferson, obtido pela Ponte, ela conta que o filho havia saído de casa para comprar uma pizza junto com Leonel, que teria deficiência física e utilizava muletas para se locomover. “Ele passou primeiro na casa de uma menina que ele conversava e ela mesma fala que [Jefferson teria dito que], em 20 minutos, só ia buscar uma pizza e voltava. Foi quando ele subiu com o rapaz de muleta [Leonel]. Quando eu cheguei, eles [policiais] já disseram que meu filho estava morto. Não me deixaram ver o meu filho, me empurraram, disseram ‘não coloca a mão em mim’. Eu chorei, ajoelhei e não fizeram nada”, afirma a mãe no relato.

Familiar usa camiseta com foto de Jefferson Ramos Miranda estampada. A Ponte preservou os rostos dela e dos moradores a pedido da fonte | Foto: arquivo pessoal

Uma parente de Leonel disse que não teria como ele fazer disparos sendo uma pessoa com deficiência. “Eu tenho laudos, ele recebia o BPC”, disse. BPC é o Benefício de Prestação Continuada, que é o valor de um salário mínimo pago pelo governo federal a pessoas com deficiência que não têm condições de se sustentarem sozinhas. A Ponte verificou no Portal da Transparência que Leonel recebeu o benefício de março de 2022 a dezembro de 2023.

Outro caso questionado por familiares é a morte de Rodnei da Silva Sousa, 28, no Morro São Bento, em 4 de fevereiro. Ao G1, um parente disse que ele não estava armado e foi atraído para uma emboscada ao ir para um falso encontro com uma mulher que ele conheceu pelas redes sociais. No trajeto, ele teria sofrido a abordagem da Rota quando se deslocava por um carro de aplicativo. Os policiais disseram que atiraram porque Rodnei teria apontado uma arma contra eles ainda no veículo.

Comitiva visita Baixada Santista

Denúnias como estas foram colhidas por uma comitiva liderada pela Ouvidoria das Polícias, que no domingo (11) visitou comunidades de São Vicente e de Santos. Participaram da visita integrantes do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), o deputado estadual Eduardo Suplicy (PT), a vereadora Debora Camilo (PSOL), de Santos, e representantes de organizações da sociedade civil, como Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Instituto Sou da Paz, Human Rights Watch, Comissão Arns, Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP) do Campo Limpo e Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, além de ativistas independentes.

Na ocasião, as vans foram paradas por policiais da Rota na comunidade Sambaiatuba, em São Vicente, durante a tarde. Segundo Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP, havia ativistas fazendo filmagens enquanto alguns moradores subiam no veículo para acompanhar as visitas. Neste momento, policiais da Rota pararam uma viatura ao lado. Um dos ativistas passou a filmar os policiais, que questionaram: “Por que você tá me filmando? Você tem passagem?”.

“Ali a situação ficou tensa porque os policiais estavam com armas longas, apontando para fora da viatura, e as famílias que iam com a gente entraram em pânico”, conta Samira. “Eles foram bem repressivos”, disse o ativista Darlan Mendes, que estava na comitiva e tentou fazer filmagens.

Depois, quando o ouvidor das Polícias, Claudio Silva, e a ouvidora nacional de Direitos Humanos, Luzia Cantal, retornaram, pois estavam em um veículo mais à frente, a situação se apaziguou.

De acordo com o ouvidor, um dos policiais o reconheceu. “[Ele disse] ‘Vocês sabem que vocês estão em uma comunidade que frequentemente tem troca de tiros com a polícia?’. Eu falei: ‘Eu sei que a gente está em uma comunidade que tem um histórico violento'”, disse. O PM ainda questionou se houve aviso de que a comitiva estaria na comunidade, e o ouvidor respondeu que sim, fazendo ponderações sobre a segurança do local. “A gente passou por essa situação. Inicialmente, esse comandante estava num tom mais duro, mais truculento, mas, à medida que a gente foi dialogando, esse diálogo ficou mais qualificado”.

De acordo com os integrantes da comitiva, a visita foi de urgência devido ao receio de que a situação de violência se agravasse durante o Carnaval, momento em que o foco tanto do poder público como da imprensa tem sido nas festividades do feriado. “São muitas comunidades atingidas pela operação, muitas comunidades que estão totalmente assustadas. O sentimento que a gente tem é que não tem mais Estado de Direito nesses lugares. Chegando nos lugares a gente percebe muita pobreza, muito descaso do Estado, muita falta de estrutura para esses lugares. Mas, efetivamente, quando o Estado chega, o que ele oferta é isso”, afirmou Claudio Silva.

A ideia é que as denúncias sejam sistematizadas em um relatório a ser enviado às autoridades e que deve ser publicizado nos próximos dias. A comitiva ainda vai avaliar se fará outras visitas à Baixada Santista.

Na comitiva, não havia nenhum representante do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), que tem o papel constitucional de fazer o controle externo das polícias. No ano passado, o procurador-geral de justiça Mario Sarrubbo designou os dois promotores do Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp) para investigar as 28 mortes da Escudo na Baixada, mas de forma excepcional, pois o grupo tem atribuição apenas na capital paulista.

Com as novas operações policiais e o aumento do número de mortes, ainda não houve manifestação do MPSP. Sarrubbo aceitou o convite do ministro da Justiça Ricardo Lewandowski para comandar a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp). Segundo a CNN, o procurador-geral deve assumir a pasta em março enquanto gere a sucessão interna do comando do Ministério Público paulista, já que o mandato dele vai até abril.

Em 7 de fevereiro, o secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite transferiu o gabinete da pasta para Santos, no mesmo dia do assassinato do cabo José Silveira Santos, do 2° Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep), durante o serviço.

Derrite também ofereceu uma recompensa de R$ 50 mil para quem informasse o paradeiro de Kaique Coutinho do Nascimento, suspeito da morte do soldado Samuel Wesley Cosmo, e voltou a criticar o programa de câmeras nas fardas, dizendo que “não serve para nada”, pois não impediu que os policiais fossem mortos. Contudo, a identificação do suspeito de matar Cosmo só foi possível graças à filmagem da câmara corporal do PM assassinado.

PM da Rota indiciado por homicídio participou de ação que deixou três mortos em Santos

Um dos policiais que matou dois jovens e deixou um ferido com 28 tiros em janeiro de 2023 na capital paulista se envolveu em outra ação que matou três homens negros não identificados, em Santos, no dia 3 de fevereiro, durante a Operação Escudo.

De acordo com o boletim de ocorrência, cinco equipes da Rota teriam sido deslocadas para a região da Vila dos Criadores, sendo que uma delas foi para a Vila dos Pescadores e outra para a Avenida dos Bandeirantes a fim de criar um cerco a criminosos que fossem para as vilas. O documento descreve que houve um encontro das guarnições policiais com criminosos que, por sua vez, fizeram disparos contra a polícia e “três das equipes que participaram do cerco vieram a repelir a injusta agressão perpetrada pelos criminosos”. Não é informado quais dos policiais fizeram disparos.

Segundo o boletim, parte dos suspeitos conseguiu fugir, mas três foram baleados e morreram em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da zona noroeste. Com um dos suspeitos, a polícia afirma ter apreendido uma quantidade não especificada de maconha, cocaína e crack.

O delegado Otavio Augusto C. R. Carvalho, do 5º DP de Santos, que registrou a ocorrência, escreveu que não houve perícia no local “em razão do tumulto causado nas imediações e com o eventual risco de novo confronto no local”. Ele não pediu as imagens das câmeras nas fardas dos policiais.

Entre os oito PMs mencionados no B.O., cinco tiveram as armas apreendidas: Jacson Gabriel Loboda, Bruno Santos Costa, Wilson Garcia Gomes, José Carlos Paulino da Costa e Guilherme Gomes Falcão Takenaka.

Guilherme Gomes atualmente é investigado pela suspeita de homicídio doloso (com intenção de matar), por ter participado de uma ação com 28 tiros que deixou dois mortos e um ferido, em 12 de janeiro do ano passado. A Ponte revelou, em outubro, as imagens das câmeras das fardas dos policiais que não deixam evidente como a ação aconteceu e que os policiais não seguiram procedimentos previstos para abordagem em veículo. A perícia de uma câmera de segurança aponta que o sargento Vinicius Sena pode ter plantado uma arma na vítima sobrevivente.

Ainda em outubro, o delegado Bruno Ricardo Cyrilo P. M. Cogan, do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil, indiciou o sargento Guilherme Gones Falcão Takenaka, o soldado Juliano Contessotti Paulino, o sargento Vinicius de Sena e o cabo Carlos Eduardo Santino pelas mortes de Gabriel Barbosa da Silva e Fabiano Alexandre Melo e por tentativa de homicídio contra o sobrevivente.

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O delegado ainda pediu a quebra de sigilo dos telefones das vítimas, que foi acatada pelo Tribunal de Justiça, pois a versão da polícia é de que recebeu denúncia anônima de que o trio participaria de um roubo a residência. O resultado dessa análise ainda não consta no inquérito.

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública e a Polícia Militar sobre o andamento das investigações das mortes de civis e de policiais, as denúncias de violações relatadas, a abordagem da Rota à comitiva em São Vicente, a ausência de identificação de pessoas nos boletins de ocorrência de mortos por policiais da Rota, a falta de pedido de imagens de câmeras nas fardas, e as ações da Operação Escudo. Até a publicação, não houve resposta.

Também buscamos a assessoria do Ministério Público de São Paulo a respeito das mortes e denúncias de violações, e se o Gaesp será designado novamente para a atuar na Baixada Santista. A Ponte também perguntou por que o Ministério Público não se manifestou até o momento sobre as mortes da nova fase da Operação Escudo. Ninguém respondeu.

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