Morto pela Rota, catador de latinhas implorou pela própria vida, diz família

José Marques Nunes da Silva, 45 anos, foi morto na madrugada de sábado (3/2), em São Vicente, no litoral paulista. Ele é uma das nove vítimas da PM de SP na nova Operação Escudo

José Marques Nunes da Silva foi morto por policiais da Rota na casa em que vivia | Foto: Arquivo pessoal

A família de José Marques Nunes da Silva, 45 anos, foi avisada na madrugada de sábado (3/2) que o catador de latinhas gritava por socorro. Depois de alguns minutos, eles ouviram três tiros em sequência e correram para a casa onde José vivia no bairro Jóquei Club, em São Vicente, litoral paulista. A morte dele se soma a pelo menos outras oito ocorridas desde que foi deflagrada, mais uma vez, a Operação Escudo na região. Em 2023, com 40 dias de duração, ao menos 28 pessoas foram mortas em intervenção policial.

José tinha três filhas e foi a elas a quem se referiu pouco antes de ser alvejado, contam familiares à Ponte. “Os vizinhos ouviram ele dizer que amava as filhas e pedir ‘pelo amor de Deus, vocês vão matar um inocente’”, disse um familiar. 

Pouco antes de morrer, ele cumpriu um ritual que era comum. Entregou materiais para reciclagem e depois foi ver uma das filhas, que trabalha nas proximidades. Logo após, seguiu rumo à casa em que vivia só. Foi neste caminho que, segundo familiares, ele foi parado por policiais das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota), a tropa de elite da polícia de São Paulo.

Para a Folha de S. Paulo, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) informou que os agentes da Rota deram ordem de parada a um homem, que fugiu a pé e atirou contra os policiais. O revide acabou ferindo José, que teria sido socorrido. A versão é contestada pela família. “Isso não aconteceu porque nós só escutamos três tiros”, diz.

Segundo eles, o homem nunca teve contato com armas. “Por que tanta maldade? Ele teve que implorar pela própria vida. Por que não o levaram preso, se ele realmente devia? Ele não tinha arma nenhuma, droga nenhuma”, afirma um parente.

A SSP afirma que foram encontradas 439 porções de maconha, 113 pinos com cocaína, duas pedras de crack, um frasco de lança-perfume, um caderno de anotações e uma pistola 9 milímetros dentro da casa onde ele teria se escondido. José era usuário de drogas, mas não traficava, dizem os familiares. 

Após o alerta sobre os tiros, os familiares contam que não puderam socorrer José. Eles teriam sido ameaçados por policiais que impediram a entrada na casa. Com medo, a família só conseguiu ver o catador quando a morte já tinha sido confirmada em uma unidade de saúde. 

O laudo do Instituto Médico Legal (IML) ainda não ficou pronto, mas a família diz que recebeu a informação preliminar de que dois dos três disparos atingiram o coração e um dos pulmões. O local do terceiro tiro não foi confirmado.

Pelas fotos e vídeos enviados pela família à reportagem, se pode ver que a pequena casa onde ele vivia ficou com as marcas da violência. Uma toalha com manchas de sangue e uma poça do mesmo líquido com a pegada de uma bota deixam o local com cara de cena de crime. O espaço de parede de madeira abriga os poucos pertences que o catador tinha: uma televisão de tubo, um ventilador e alguns móveis.

“A casa dele era como se fosse abandonada. Não tinha nada lá para eles dizerem que ele traficava, que ele tinha dinheiro. Eles mentiram que acharam drogas lá, que encontraram arma com ele. Eles mentiram. Eles mataram um trabalhador, um pai de família”, afirma um parente.

A família conta que tentou registrar boletim de ocorrência pela morte no 1º Distrito Policial de São Vicente, mas não conseguiu efetivar a denúncia. Eles contam não ter entendido bem os motivos, contudo, foram avisados de que já havia um registro sobre o caso, relatando apenas a versão dos policiais. “Eles não deram uma cópia do BO para a gente, só falaram que se tivesse testemunha era para levar lá”, diz o familiar. 

Abalados com a morte, eles dizem temer pela própria vida, já que a Operação ainda segue ocorrendo. “Eles disseram que iam voltar, que durante quatro dias eles iriam voltar aqui de novo”, comenta o parente. 

Eles contam que, poucas horas após a morte de José, policiais foram até a casa de um dos familiares de José e tentaram abrir a janela, mas não conseguiram.

9 mortos na Operação Escudo

Ao menos nove pessoas foram mortas nas operações Escudo deflagradas neste ano pelo governo de Tarcísio Freitas (Republicanos). O caso mais recente foi divulgado nesta segunda-feira (5/2) pelo secretário da Segurança Pública, Guilherme Ferrite. No X (antigo Twitter), Derrite falou que um homem “apontado como responsável pelo tráfico no Morro São Bento” foi morto em confronto com a Rota. 

No domingo (4/2) o secretário já tinha confirmado mais três mortes em Santos, no litoral paulista. Derrite tem sido a fonte principal na divulgação do balanço macabro, já que a pasta que comanda ainda não emitiu nota oficial sobre as ações. 

Ao falar das mortes, o secretário tem usado com frequência a palavra neutralização. Isso ocorreu, por exemplo, quando policiais do 3º Batalhão de Choque mataram uma pessoa na Baixada Santista no sábado (3/2). Segundo a versão de Derrite, houve troca de tiros entre os agentes e um grupo. “Um deles, com passagens por roubo e furto, foi neutralizado e evoluiu para óbito. Seguiremos no combate ao crime”, escreveu no X.

Ao falar de mais dois mortos, desta vez por integrantes da Rota, ele também falou em neutralização. 

“Em operações de ontem para hoje, na Baixada Santista, tivemos mais dois confrontos envolvendo equipes de ROTA. Um dos policiais sofreu um disparo no braço. Graças a Deus, os ferimentos foram leves. Já os criminosos foram neutralizados pelas equipes de ROTA. Seguimos em operações”, disse na mesma rede social

Operação Escudo é o nome dado às ações deflagradas sempre que um policial morre (em serviço ou folga) em São Paulo. No ano passado, por 40 dias, mais de 300 policiais foram enviados para a Baixada Santista após a morte do soldado da Rota Patrick Bastos Reis, 30 anos. 

Patrick foi morto em serviço, baleado no Guarujá, litoral de São Paulo. A resposta de Derrite e Tarcísio foi um aval às cerca de 28 mortes por intervenção policial nos 40 dias de operação. A violência da ação foi denunciada por organizações de direitos humanos nacionais e internacionais. Em dezembro, dois policiais da Rota se tornaram réus pela morte de Rogerio de Andrade Jesus, 50 anos, durante a Escudo.

Especialistas ouvidos pela Ponte à época dos fatos enquadraram a ação como uma “operação vingança” sem resultados efetivos para a segurança pública.

Mesmo assim, Tarcísio e Derrite não retrocederam na estratégia. Em janeiro, em meio à comoção pelas mortes dos policiais Sabrina Freire Romão Franklin, 30 anos, e Paulo Marcelo da Silveira, 69, e de mais três casos de violência envolvendo policiais, novas operações foram deflagradas. Uma para cada região onde um PM foi vítima: em Santo André, na área metropolitana de Guarulhos, em Piracicaba e na zona sul da capital. 

A Baixada Santista, que ainda se recuperava da violência da operação anterior, também voltou a ter ações após a morte do policial militar Marcelo Augusto da Silva. Ele foi morto na Rodovia dos Imigrantes, em Cubatão, quando voltava para casa na madrugada do dia 26 de janeiro. Marcelo estava estudando no litoral na Operação Verão, quando policiais são deslocados para a região num reforço de patrulhamento. 

Segundo a Folha de São Paulo, dois dias após a morte de Marcelo, duas pessoas foram mortas em supostos confrontos com policiais militares no Guarujá. A versão dos policiais é que duas motos em alta velocidade foram flagradas durante um patrulhamento. Os condutores não teriam acatado a ordem de parada e trocaram tiros com os PMs.

Na sexta-feira (2/2), o policial militar da Rota Samuel Wesley Cosmo, 35 anos, foi baleado no rosto durante um patrulhamento em Santos. A morte dele foi confirmada no sábado (3/2) pelo governo Tarcísio. Essa morte desencadeou uma ênfase na Operação Escudo por Derrite. 

“Estou em Santos, onde iniciamos uma operação para localizar os criminosos que covardemente balearam o Sd Cosmo, policial de Rota, durante incursão em região sob influência do crime. Daremos todo o apoio à família e não pouparemos esforços para que esse crime não fique impune”, escreveu no X ainda sexta-feira (2). 

Um dia depois, uma pessoa foi morta pela polícia e outro policial da Rota foi ferido sem gravidade após uma troca de tiros em Santos. Ao Metrópoles, a SSP informou que os policiais disseram terem sido recebidos a tiros e por isso revidaram. O homem teria sido levado ao Hospital Vicentino, em São Vicente, onde a morte foi constatada.

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O Metrópoles também noticiou uma morte em São Vicente. Um homem que não tinha sido identificado foi abordado por policiais da Rota na Avenida Samambaiatuba, no bairro Jóquei Clube. 

Segundo os PMs, o homem correu e, ao mesmo tempo, atirou contra os policiais, que revidaram. Ele foi levado ao hospital e teve a morte confirmada lá. 

Outro lado 

A Ponte procurou a SSP-SP questionando sobre o caso de José e pedindo um balanço público com número de mortos e presos das Operações Escudo em andamento, se há prazo para desarticulação das mesmas e o número de policiais e batalhões deslocados para essas ações. Não houve retorno.

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