Jovem negro é condenado por roubo com base em reconhecimento irregular

    Kenedy Nascimento, de 28 anos, foi preso sob acusação de roubar motocicleta em junho, em São Paulo. PMs teriam entrado em sua residência sem autorização e vítima teria reconhecido o rapaz por “olhos e nariz”

    O motoboy Kenedy Nascimento ao lado da mãe Angela Cristina | Foto: arquivo pessoal

    “Meu filho está sofrendo uma injustiça!”. O apelo desesperado da comerciante Angela Cristina Andrade da Silva, de 45 anos, se dá diante de uma condenação de mais de 9 anos de prisão contra o motoboy Kenedy Andrade Nascimento, 28.

    Detido no dia 6 de junho perto de casa na região do Jaguará, zona oeste de São Paulo, a única prova contra ele é um reconhecimento feito de forma irregular. De acordo com a família, o jovem negro tinha ido para a casa da namorada de manhã e depois foi cortar o cabelo numa barbearia em Osasco, na Grande São Paulo. No caminho de volta para a residência, acabou sendo perseguido por policiais militares já que estava de moto sem usar capacete — uma infração de trânsito.

    Imagens de uma câmera de segurança que alcançam a entrada da casa de Kenedy mostram o jovem entrando de moto e, poucos minutos depois, aparecem dois PMs da Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicletas (Rocam) atrás, que entram no local sem nenhum tipo de autorização prévia. Algum tempo depois chegam viaturas chamadas para o apoio e também o pai do jovem.

    Essa informação é relevante pois, no 33º DP (Pirituba), os policiais Edicley Oliveira Santos e Daniel Gonçalves Pereira Junior relataram que a equipe entrou na residência pela garagem após autorização do pai de Kenedy.

    Os PMs disseram que estavam atrás de um suspeito que havia roubado uma moto entre a avenida Mutinga com a rodovia Anhanguera naquele dia e decidiram perseguir Kenedy porque ele estava sem capacete. Com ele, nada de ilícito foi encontrado.

    Câmera de segurança de vizinho mostra Kenedy chegando de moto em sua casa | Foto: reprodução

    Reconhecimento não seguiu diretrizes do artigo 226

    Kenedy disse que os PMs que o levaram à delegacia não eram os mesmos que o abordaram e que não houve autorização para entrar na sua casa, já que, antes de seu pai chegar, apenas ele estava no local.

    Dentro da residência, os policiais apreenderam uma arma de fogo de numeração raspada e porções de maconha que totalizaram 56 gramas. Kenedy confirmou que a arma, apesar de ilegal, pertencia a ele para “segurança pessoal” bem como a droga.

    Ele foi levado à delegacia onde foi reconhecido pela vítima do roubo de moto que o apontou “com absoluta certeza” como o assaltante. A vítima relatou que por volta das 11 horas da manhã, dois indivíduos numa moto o abordaram, sendo que um deles “possivelmente” estaria armado pois fez menção ao colocar a mão na cintura, e “mediante grave ameaça” roubaram sua motocicleta.

    Após o crime, a vítima conseguiu bloquear o veículo por meio de um aplicativo. Segundo a polícia, a moto teria sido encontrada a 400 metros da casa de Kenedy, mas sem precisão de endereço.

    O reconhecimento foi irregular uma vez que não seguiu as diretrizes do artigo 226 do Código de Processo Penal nem as da própria Polícia Civil ou as do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Não foi documentada qualquer informação que descrevesse previamente as características físicas dos dois suspeitos para que depois fossem apresentadas fotos ou pessoas com perfis semelhantes.

    Além disso, Kenedy foi colocado junto apenas com outro rapaz, sendo que os dois não são parecidos, seja por estatura, estilo de cabelo ou vestimenta. Não há nenhuma justificativa na investigação sobre qual elemento fez a vítima associar Kenedy a um dos criminosos.

    Foto que mostra Kenedy (cabelo roxo) ao lado de outro rapaz no momento em que foram colocados para serem reconhecidos pela vítima. A Ponte omitiu a identidade do outro jovem | Foto: reprodução/Polícia Civil

    ‘Roubo majorado’

    No mesmo dia, o jovem foi indiciado pela delegada Milena Sapienza por roubo majorado (com emprego de violência), porte ilegal de arma e porte de drogas sem buscar mais nenhuma prova além do reconhecimento e da palavra dos policiais. O promotor Anderson Chinen Ruiz denunciou Kenedy pelos mesmos crimes.

    Durante a audiência de custódia, o juiz Tobias Guimarães Ferreira converteu a prisão em preventiva (por tempo indeterminado) ao entender que “os delitos de posse ilegal de arma de fogo e porte de drogas para consumo são de natureza permanente, fazendo com que a situação de flagrância se protraia no tempo. Ademais, há relato de que o pai do custodiado franqueou a entrada dos policiais na residência”. Também argumentou que Kenedy tinha passagem criminal por tráfico de drogas.

    Segundo a família, Kenedy já havia cumprido suas pendências com o Judiciário e estava desde 2021 trabalhando como entregador em um supermercado.

    A advogada Fernanda Monique de Jesus, que representa o jovem, fez uma série de pedidos de diligências ao tribunal, como as imagens de câmeras corporais caso os PMs estivessem usando. No caso, os da Rocam, que abordaram Kenedy, não usavam e os demais teriam gravações sem som. Ela solicitou câmera de monitoramento próximo ao radar da Rodovia Anhanguera, mas a Companhia de Engenharia de Tráfico (CET) respondeu que não dispunha de equipamento. Também solicitou imagens de um estabelecimento nas proximidades, que informou que só as armazenava de sete a dez dias, por isso não teria mais as gravações.

    A defensora pediu também o extrato do aplicativo do seguro da vítima para verificar o local e o horário de quando a moto foi roubada, indicando que o crime aconteceu às 10h15 e não às 11h.

    Durante as audiências, a vítima do roubo disse que os assaltantes estavam de capacete, que viu o rosto “do nariz pra cima” e que reconheceu Kenedy pelas vestes, embora também não tenham sido fornecidos detalhes.

    Ainda afirmou que foi Kenedy que saiu pilotando sua moto, embora o veículo roubado fosse azul e Kenedy dirigisse a moto do pai quando foi abordado, de cor vermelha. A vítima falou que chegou junto com Kenedy à delegacia, ou seja, o viu antes do ato de reconhecimento. Além disso, o reconhecimento foi novamente realizado em juízo com a vítima apontando Kenedy mais uma vez, o que pelos parâmetros do CNJ é um problema pois o ato de reconhecimento é irrepetível, o que significa que está sujeito à contaminação de memórias durante o tempo.

    ‘Prova frágil e invasão de residência’

    Um funcionário da barbearia que o jovem prestou depoimento em juízo confirmando que Kenedy foi ao local e saiu de lá às 11h. Um vizinho que estava mexendo no carro quando os PMs foram atrás de Kenedy também confirmou que os policiais entraram na casa sem qualquer autorização prévia e que o pai dele chegou depois. Um dos policiais ainda teria dito que entrou na residência por estar “em situação de flagrante”.

    Mesmo assim, o juíz Marcello Ovídio Lopes Guimarães condenou o motoboy a 9 anos, 2 meses e 20 dias de prisão em regime fechado pelos crimes de roubo majorado e porte ilegal de arma e um mês de prestação de serviços à comunidade pela posse de maconha.

    Entre as argumentações, estavam o reconhecimento da vítima e que os policiais não teriam motivos para acusar o rapaz injustamente.

    A pedido da reportagem, a advogada Dina Alves analisou o inquérito. Ela alerta que o reconhecimento foi irregular. “Não existe nenhuma outra prova nos autos que comprova que o Kennedy é autor do roubo da moto. A prova da vítima é muito frágil. Como é que ela reconhece a pessoa apenas olhando para o nariz e os olhos?”, contesta.

    Ela entende que os PMs violaram o domicílio de Kenedy, ou seja, o artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal prevê que ninguém pode invadir sua casa sem um mandado judicial, desde que em caso de flagrante delito ou desastre natural para resgatar alguém. “Os policiais invadiram a residência, fizeram a prisão do rapaz dentro da residência e buscaram outros tipos de provas para justificar aquela prisão, que foi encontrar uma arma e encontrar maconha no interior da residência”, explica. “Se a polícia estava atrás das pessoas que roubaram a moto, essas provas que eles acharam dentro da casa do Kenedy são provas ilícitas e por isso é um processo que tinha que ser anulado”, avalia.

    Ajude a Ponte!

    A defesa de Kenedy agora tenta recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), já que na segunda instância do TJSP o recurso foi negado.

    “Meu filho está pagando por uma coisa que ele não fez”, lamenta Angela Cristina. “É de sangrar o coração, porque é uma pessoa trabalhadora, uma pessoa de coração bom. Ele tá quase em depressão, é sofrido, é uma humilhação”.

    O que dizem as autoridades

    A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP) sobre a apuração do caso. A Fator F, assessoria da pasta, não concedeu os pedidos de entrevista com os policiais envolvidos e com o delegado do caso e enviou a seguinte resposta:

    O caso foi analisado pela autoridade policial com base nos elementos apresentados e coletados. O inquérito policial foi concluído e encaminhado à Justiça em 6 de junho de 2024. Na ocasião, a entrada no imóvel foi autorizada pelo pai do suspeito, sendo encontrados entorpecentes e uma arma com numeração raspada. A Corregedoria da Polícia Militar está à disposição para registrar e apurar denúncias contra seus agentes.

    Já a assessoria do Ministério Público disse que o órgão “se manifesta nos autos”.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude
    Inscrever-se
    Notifique me de
    0 Comentários
    Mais antigo
    Mais recente Mais votado
    Inline Feedbacks
    Ver todos os comentários

    mais lidas

    0
    Deixe seu comentáriox