Riquelme Madeira Antunes ficou preso por cinco meses com base em um reconhecimento irregular em São Paulo; ele disse “estar no lugar errado na hora errada” ao ser detido quando entrava em casa de vizinho
Riquelme Madeira Antunes, 19 anos, foi absolvido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) das acusações de roubo e extorsão por supostamente participar de um golpe financeiro. Foram cinco meses de prisão em regime fechado, justificadas pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) e pela Justiça com base no reconhecimento irregular da voz do jovem feito pela vítima na delegacia e o depoimento dos policiais militares que atenderam a ocorrência. Ele alegou estar “no lugar errado na hora errada” ao entrar na casa de um vizinho no momento da abordagem e ser levado como cúmplice. A defesa prepara pedido de reparação judicial.
A história de Riquelme foi contada em reportagem publicada pela Ponte. Na ocasião, ele acabara de ser preso e a família protestou na região da Brasilândia, onde ele mora, pedindo a liberdade do jovem.
A irmão do jovem, Natasha Kemellyn Madeira Ramalho, diz que a família agora busca por reparação. “Vamos entrar com uma ação contra o Estado porque querendo ou não isso prejudicou a vida dele. Esse período que ele estava ausente, fora de casa, prejudicou ele”, comenta.
A prisão ocorreu em 6 de julho de 2022. Em depoimento à polícia, Riquelme contou que caminhava para casa quando viu o portão da residência do amigo e vizinho aberto. Com a intenção de alertar, o jovem diz ter ido até o local, momento em que percebeu policiais ali e acabou abordado e preso. Das quatro pessoas detidas com ele, o jovem disse reconhecer apenas o pai do amigo. Ele negou que tivesse participação em qualquer ação criminosa anterior — fato atestado na investigação que não encontrou ficha criminal. Na época, Riquelme contou que trabalhava como lavador de carros, ganhando salário de cerca de R$ 2.100 por mês.
O crime no qual Riquelme foi preso em flagrante se tratou de um golpe financeiro iniciado no Tinder. Segundo a Polícia Civil, o grupo criou um perfil falso e trocou mensagens com a vítima combinando um encontro. Ao chegar no local marcado, o homem teria sido abordado por dois suspeitos (um deles armado) e levado até um cativeiro, onde foi ameaçado de morte e obrigado a passar senhas de contas bancárias. Na denúncia do Ministério Público que pediu a prisão preventiva dos cinco investigados, assinada pela promotora Bárbara Valéria Cury e Cury, há uma contradição quanto ao reconhecimento feito pela vítima.
Na denúncia do MP-SP é dito, num primeiro momento, que Riquelme era um dos homens que fez a abordagem à vítima. Contudo, ao falar que o jovem foi reconhecido pela voz, o texto da promotora se contradiz ao contar que o homem sequestrado reconheceu outras duas pessoas como seus algozes.
Não fica claro na denúncia, o momento em que a vítima teria ouvido a voz de Riquelme durante o sequestro. Apenas é mencionado que uma ligação em viva-voz foi feita enquanto estava em cárcere.
De qualquer forma, a maneira como o jovem foi reconhecido não seguiu os padrões recomendados pelo Código de Processo Penal (CPP). O artigo 226 do CPP diz que “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”, o que não aconteceu neste caso.
Riquelme e os quatro detidos foram levados para o 72º D.P (Vila Penteado) e lá ouvidos e presos pela delegada Gisele Maciel Rocha. Na audiência de custódia foi homologada a prisão pela juíza Gabriela Marques da Silva Bertoli, no caso do jovem, tendo como base o reconhecimento da voz e depoimento dos policiais militares da Força Tática André Luís Voltan de Andrade e Willian Arimateia da Silva Germano. A dupla disse que, ao chegar na casa, o lavador de carros gritou algo como “moiô, a polícia tá vindo”.
Sem novas oitivas, a prisão foi mantida por decisão do juiz Luis Fernando Decoussau Machado, em 15 de julho, e em outubro o juiz Rodrigo Jae Hwa negou um pedido de habeas corpus, mesmo com a defesa de Riquelme, na época conduzida pela advogada Neusa Schneider, tendo questionado as justificativas da prisão e do reconhecimento irregular que baseou a detenção.
A audiência de instrução sobre o caso ocorreu em dezembro do ano passado. A defesa de Riquelme, conduzida a partir daí por Arismary Gaia Ruchinsque Jales, fundadora do projeto social Vozes Inocentes, pediu a liberdade provisória de Riquelme. A promotora Bárbara Valéria Cury e Cury, que já havia pedido a prisão do jovem, foi contra. Na ocasião, a vítima foi ouvida novamente e desta vez não reconheceu Riquelme.
O pai do amigo do jovem, preso em flagrante na ação, também contou versão semelhante à de Riquelme, afirmando que ele foi até a casa para avisar o amigo e que não tinha envolvimento na ação. Outra presa confirmou que o ele não estava na casa no momento da abordagem.
A partir disso, o juiz Paulo Eduardo Balbone Costa revogou a prisão de Riquelme e determinando medidas cautelares (comparecimento em todos os atos processuais e manter seu paradeiro público em juízo).
Em entrevista à Record TV, quando foi libertado após cinco meses de prisão, Riquelme se disse aliviado. “Foram meses de sofrimento. Só Deus na causa para confortar meu coração”, contou.
A absolvição só ocorreu em fevereiro deste ano, quando houve o julgamento dos suspeitos pelo TJSP. Diferente do comportamento durante todo o processo, nos memoriais do MP a promotora Bárbara Valéria Cury e Cury reconheceu que Riquelme não foi encontrado na casa onde estavam os demais suspeitos.
“Ao nosso ver, essa condição, por si só, não configura elemento seguro no sentido de confirmar a participação de Riquelme, nos delitos precedentes de roubo e sequestro. Os indícios obtidos na fase policial não se transmutaram em elementos seguros de prova”, escreveu a promotora.
O juiz Paulo Eduardo Balbone decidiu pela absolvição de Riquelme, mas escreveu na sentença que a versão apresentada pelos policiais poderia configurar que o jovem foi até a casa “alertar os comparsas”.
“Mas, como cediço, verossimilhança não basta à condenação. E certeza do quanto RIQUELME estava envolvido anteriormente à chegada dos policiais é algo a que, ao cabo da instrução, não se chegou”, escreveu o magistrado.
Família busca reparação judicial
Para a advogada Arismary Gaia Ruchinsque Jales, que defende Riquelme, o próximo passo é o pedido de reparação judicial. Ela diz que ainda é preciso que o caso transite em julgado — quando não há mais forma de recorrer da sentença.
“Agora ele foi absolvido e nós estamos aguardando o trâmite final do processo, que é o trânsito em julgado, e aí nós vamos entrar com uma ação de reparação. Que como você já deve saber é bem demorado, mas não pode deixar impune para que o Estado entenda que não pode ficar prendendo pessoas inocentes e ficando por isso mesmo”, comenta Arismary.
Natasha Kemellyn Madeira Ramalho, irmã de Riquelme, conta que a família celebra a absolvição. “Foi uma vitória para a gente porque só quem passa pelo sofrimento de ser acusado de uma coisa que você não fez e está sendo injustiçado sabe a dor que é”, comenta.
Ela definiu o irmão como uma pessoa querida pela comunidade e que nunca teve envolvimento com “nada errado”. Segundo a família, Riquelme está desempregado desde que saiu da prisão e vive de bicos como pintor.
Outro lado
A reportagem da Ponte procurou a promotora Bárbara Valéria Cury e Cury questionando a contradição na manifestação inicial sobre o caso e a manutenção do pedido na audiência de instrução, mesmo com a vítima não reconhecendo Riquelme. Ainda não houve retorno.
O TJ-SP foi questionado sobre o não questionamento do reconhecimento irregular pelos juízes Gabriela Marques da Silva Bertoli (que presidiu a audiência de custódia), Luis Fernando Decoussau Machado (que determinou a manutenção da prisão). Em resposta, a assessoria informou que “os juízes têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos processos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos cabíveis, previstos na legislação vigente”.
Também foi procurada a Secretaria de Segurança Pùblica (SSP-SP) questionando a abordagem dos policiais da Força Tática André Luís Voltan de Andrade e Willian Arimateia da Silva Germano ao jovem e também sobre o reconhecimento irregular que baseou o pedido de prisão feito pela delegada Gisele Maciel Rocha.
Em nota, a SSP respondeu que procedimento seguiu “estritamente o rito” da CPP, mesmo o inquérito não esclarecendo como foi feito o reconhecimento de Riquelme.
“O caso é investigado por meio de inquérito policial instaurado pelo 72º Distrito Policial (Vila Penteado). Os suspeitos, com idades entre 18 e 33 anos, foram encaminhados para audiência de custódia e o Poder Judiciário manteve as prisões e converteu o ‘flagrante’ para ‘preventiva'”.
“O procedimento acerca do reconhecimento de pessoas segue estritamente o rito previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal. Em relação ao reconhecimento por voz, a prisão em flagrante é decretada, levando-se em consideração todos os elementos trazidos ao conhecimento da autoridade policial, assim, reconhecimentos, declarações, depoimentos, cujos requisitos estão previstos no artigo 301 e seguintes do Código de Processo Penal”, disse a SSP.