Técnico de blindagem Edson Silva e motoboys Leonardo Vieira e Kauan Gregorio foram acusados por crime após reconhecimento irregular em setembro; uma das vítimas do assalto disse que os reconheceu com base no que policiais disseram
As famílias do técnico de Edson Souza da Silva Junior, de 23 anos, e dos motoboys Kauan Cristhyan Gregorio da Silva, 20, e Leonardo Silva Vieira, 25, respiraram mais aliviadas desde o Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu, no dia 7 de novembro, os três da acusação de roubo de carro após a polícia perseguí-los por estarem em uma moto sem capacete e serem submetidos a reconhecimento irregular em 10 de setembro, na região da Vila da Saúde, na zona sul da capital paulista.
“Foram 40 dias de lágrimas e sofrimento para nós, uma angústia que não cabia no peito”, desabafa consultora de vendas Natasha Alves da Silva, 24, irmã do técnico. “Agora é voltar a rotina normal, cabeça erguida e lutar pelos direitos deles! Agradeço toda a equipe de jornalismo, por ter nos dado todo o suporte necessário, e à ONG do Marcelo Dias, sem vocês nada disso teria acontecido”, disse, em referência à reportagem da Ponte que foi usada no processo e à organização do educador social Marcelo Dias, que passou a auxiliar famílias de pessoas presas sem provas na região da Vila Brasilina depois que foi alvo de uma prisão sem provas denunciada pela reportagem em 2018.
Edson e Kauan ficaram 39 dias presos e aguardavam a sentença em liberdade. Já Leonardo ainda ficou cerca de 20 dias a mais preso pois a Vara de Execução Penal entendeu que tinha violado a liberdade condicional referente a um outro processo. Isso porque, quando foi detido com Edson e Kauan, faltavam alguns dias para ele ir ao fórum e assinar o comparecimento mensal. Natasha afirma que eles estão avaliando entrar com um pedido de indenização contra o Estado pelo sofrimento que passaram ao serem acusados injustamente.
A juíza Eva Lobo Chaib Dias Jorge, atendendo a um pedido da promotora Claudia Aparecida Jeck Garcia Nunes de Souza, absolveu os três por entender que não existiam provas suficientes para uma condenação. “Em assim sendo, muito embora tenha havido indícios suficientes tanto para o oferecimento como para o recebimento da denúncia, tais indícios não foram confirmados sob o crivo do contraditório, motivo pelo qual outro caminho não há senão a absolvição dos denunciados”, escreveu.
Durante as audiências, o casal que foi vítima do assalto não reconheceu os rapazes em juízo, ou seja, na frente da magistrada e da promotoria. A mulher, inclusive, indica que foi induzida pelos policiais a reconhecê-los. “Fomos para a delegacia, onde ficamos por cerca de dez horas. Os policiais nos mostraram fotos de vários celulares, que disseram que estavam com eles. Um deles era igualzinho ao meu, eu disse que era o meu celular. O policial disse que o meu celular estava com eles, que estavam em um veículo Honda Civic, do meu marido, aí eu disse, então são eles. Na delegacia eu reconheci em razão das coisas que os policiais falaram, mas hoje não tenho condições de reconhecer nenhum deles. Eram quatro agentes, mas a policia só prendeu três deles”, declarou.
Ela também disse que não tinha condições de reconhecer porque os assaltantes estavam todos usando capacetes. Essas informações, por exemplo, não constam no depoimento que ela deu à Polícia Civil.
Dar informações prévias, como os policiais fizeram, são uma das maneiras que se pode contaminar o processo de reconhecimento. Especialistas entrevistados pela reportagem também haviam sinalizado a indução por conta de os três jovens, que têm características diferentes entre si, terem sido colocados juntos.
Dentre as regras da Resolução nº 484, de 19 de dezembro de 2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), está que policiais e qualquer outra pessoa não podem dar informações prévias à vítima ou à testemunha que vai fazer o reconhecimento pelo risco de indução. A norma, que está em vigor desde março deste ano, foi criada a fim de estabelecer diretrizes para o reconhecimento e evitar prisões e condenações de inocentes.
O artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) prevê que a vítima ou testemunha primeiro descreva as características do suspeito e depois lhe sejam apresentadas pessoas com perfis semelhantes para serem reconhecidas.
No caso de Kauan, Edson e Leonardo, o texto não foi seguido nem mencionado. Tanto o Ministério Público (MPSP) quanto o Judiciário argumentaram que a previsão do artigo 226 é uma “recomendação” por indicar o cumprimento das regras “se possível”.
No auto de reconhecimento feito na delegacia, Edson, Kauan e Leonardo, que têm características diferentes entre si, foram colocados juntos. O casal apontou que reconheceu os três, mas no documento não está especificado quem seria o correspondente a cada descrição. As características dos suspeitos não estavam descritas nesse documento, só nos depoimentos separados. Também não há fotos legíveis dos rapazes, já que as imagens que foram anexadas ao inquérito não mostram o rosto de cada um. Uma está pixelada e as outras duas não carregaram quando a pessoa que anexou as fotos as baixou.
No 26º DP (Sacomã), o homem foi perguntado se teria condições de reconhecer os criminosos e disse que reconheceria apenas aquele que o abordou, descrevendo-o como “indivíduo de cabelos castanhos escuros, pele parda, aparentemente jovem entre 20 e 25 anos, trajando camisa com detalhes em vermelho”.
A esposa dele confirmou que o companheiro foi surpreendido por um homem em uma motocicleta que estava armado, mas disse que havia um outro homem na garupa que a abordou, ordenando que ela descesse do veículo e entregasse as joias. Enquanto estava sendo abordada, disse que uma outra moto chegou “e um segundo indivíduo passou a puxar seu cabelo, dizendo que ela iria ficar com eles, fazendo-a implorar para que fosse liberada”.
A mulher também foi questionada se conseguiria reconhecer os assaltantes. Ela disse que poderia reconhecer os dois que a abordaram, descrevendo-os como “o que desceu da garupa da motocicleta teria olhos mais claros, cor de pele bem morena, e parecia ser bem jovem, de 20 e poucos anos, por volta de 1,70m. Ele trajava camiseta branca. O que chegou posteriormente era o mais alto, por volta de 1,75/1,80 [de altura], cor de pele parda e também parecia ser bem jovem”. O casal não informa se os suspeitos estavam ou não utilizando capacetes.
O inquérito teve como base apenas o reconhecimento. Os jovens relataram que estavam em um baile funk na comunidade de Heliópolis, na zona sul da cidade. Por volta das 6h, quando iam retornar para casa, Edson conta que perdeu a chave do carro. Leonardo se ofereceu para levá-lo de moto para casa. Os três jovens foram no veículo, estavam sem capacete e com a placa tampada.
Natasha conseguiu obter um vídeo gravado por Kauan em que o trio aparece sem capacete, fazendo caretas e gestos com as mãos, em uma moto prata. Em determinado momento, Kauan olha para trás e parece se assustar. É possível ver uma viatura da Polícia Militar com a sirene acionada e Leonardo parece acelerar o veículo. A filmagem se encerra.
Nele, é possível ver que Kauan tem cavanhaque, cabelo castanho com luzes loiras, veste camisa branca com estampa vermelha e calça jeans azul. Edson está de boné azul com detalhe em branco, blusa azul escuro com listra lateral em tom de azul mais claro e calça jeans azul. Leonardo está com um conjunto de blusa e calça pretas com listras laterais em vermelho, capuz preto sobre boné branco. Ele também usa cavanhaque.
Os jovens relataram que fugiram da abordagem “por medo”, já que estavam sem capacete e com a placa tampada, que são infrações de trânsito. Ao baterem num carro e serem abordados, nada de ilícito estava com eles. Dali, foram detidos e levados para a delegacia.
De acordo com o boletim de ocorrência, por volta das 6h30 uma pessoa parou a viatura em que estavam os policiais Bruno Matos dos Santos e Gabriela Lopes Rosa, do 3º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M), e avisou que tinha presenciado um roubo “praticado por indivíduos em duas motocicletas que estariam abordando um veículo Civic de cor preta”. No registro digitalizado no site do Tribunal de Justiça (TJSP), não é informado o endereço do roubo, apenas onde os jovens foram detidos. O boletim de ocorrência foi corrigido na cópia obtida por Natasha como sendo o local do crime a Avenida do Cursino, na altura do número 1864.
Quando os PMs Santos e Rosa estavam conversando com esse transeunte, segundo eles, passaram duas motocicletas em alta velocidade, sendo “uma tripulada por um indivíduo e a outra com dois” seguidos por um carro de cor preta. A dupla afirma que deu voz de parada e emitiu sinais luminosos e sonoros que foram ignorados e, a partir daí, iniciou-se uma perseguição. Na altura da Avenida Nazaré, os PMs informaram que o Civic e as motos tomaram caminhos diferentes e, por isso, decidiram ir atrás de quem conduzia o carro roubado.
Os policiais Ewerton Raposo Ferreira e Lara da Conceição Izaias, do 46º BPM/M, receberam via rádio a informação e “as características das motocicletas em fuga e de seus tripulantes”. Nos depoimentos, não são descritas essas características. Já a outra dupla de policiais localizou o Civic preto na Rua Dezesseis de Dezembro, dentro da comunidade de Heliópolis, para onde a pessoa que dirigia o carro conseguiu fugir.
Os batalhões em questão que os policiais integram fazem parte do Comando de Policiamento da Capital, ou seja, estão cobertos pelo programa de câmeras da corporação, mas em nenhum momento foi citado se os PMs usavam o equipamento, nem o delegado Savigny Gonçalves, o Ministério Público ou o judiciário solicitaram possíveis imagens.
Os próprios familiares dos rapazes foram atrás de imagens de câmeras de segurança na avenida em que o roubo aconteceu. Uma delas, na altura do número 1623, aparece o Honda Civic preto atrás de dois motociclistas, que usam capacetes: um utiliza uma jaqueta marrom, parece usar uma camisa branca por baixo e calça jeans. O outro está com blusa e calça preta com listras laterais que parecem ser brancas.
No mês passado, a Polícia Científica anexou um laudo papiloscópico que identificou impressões digitais compatíveis de um jovem branco de 22 anos no capacete abandonado dentro do veículo roubado e que foi preso no dia 12 de setembro por suspeita de ter roubado um outro Honda Fit dias antes. Outra impressão digital encontrada no carro é de um policial militar que não é mencionado no inquérito, mas provavelmente fazia parte da equipe que atuou no caso. Procurada, a Secretaria de Segurança Pública não confirmou a participação desse PM e disse que o delegado não aguardou o resultado do laudo antes de fazer o relatório final “por se tratar de um caso flagrancial”.
À Ponte, Willy Hauffe, presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF), explicou que a identificação de uma digital não significa necessariamente que a pessoa praticou o crime, mas “a coloca na cena do crime” e que esse tipo de prova também precisa ser confrontada com outros elementos. Ele também aponta que a identificação no laudo parece “inequívoca”, uma vez que há mais de 12 pontos de convergência na digital, que é considerado o padrão mínimo para uma identificação mais robusta. O jovem branco também já estava cadastrado no banco de dados da polícia.
Hauffe indica ainda que uma única prova não é determinante e que o reconhecimento sozinho é falho. “Para ter uma falsa percepção é muito fácil. E como é que você tira essa falsa percepção? Com outros tipos de exames. Seria o DNA, seria a papiloscopia ou então seria a análise de câmeras do local. Você pode agregar mais valores. Existem formas de chegar a uma justiça, a indicar algum suspeito, que não só a prova testemunhal”, declarou.