Jovens negros são acusados de ‘golpe do Pix’ porque usavam bonés

Lucas e Samuel foram presos na zona norte de SP; imagens de câmera de segurança obtidas por familiares apontam que eles estariam em uma adega na hora do crime

Adailza, mãe de Lucas, e Ana Maria, mãe de Samuel, vão às lágrimas ao pedir liberdade dos filhos em protesto | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

“O que está por trás da manutenção da prisão de Lucas e Samuel é o RACISMO do Estado dos ricos”. Com destaque em letras garrafais na palavra racismo, essa é uma das frases gravada em folhetos e cartazes que familiares e amigos empunhavam no bairro da Brasilândia, na periferia da zona norte da cidade de São Paulo, nesta quarta-feira (3/5), para pedir a liberdade dos jovens negros Lucas Mitrzrael Silva de Oliveira, 26 anos, e Samuel Mohamed, 27.

Os dois estão presos desde 28 de janeiro ao serem acusados de participar de uma extorsão mediante sequestro contra um homem e uma tentativa de roubo contra outro, que se caracterizavam no popular “golpe do Pix” ou “golpe do amor”, já que uma das vítimas tinha combinado encontro com uma mulher por meio de aplicativo de relacionamento. Mesmo não portando nenhum objeto roubado e nem terem sido reconhecidos pelas vítimas, os rapazes permanecem detidos no Centro de Detenção Provisória (CDP) Vila Independência, na zona leste da capital.

“Nós fizemos esse protesto para chamar a atenção para essa injustiça”, disse à Ponte a vigilante Adailza Macedo, 45, mãe de Lucas. Os manifestantes fecharam o cruzamento da Avenida Deputado Cantídio Sampaio com a Rua Santa da Cruz da Conceição por algumas horas. “A gente quis fazer algo de forma pacífica, sem causar nem nenhum dano”, explicou.

Famílias fizeram folhetos contando o caso e denunciam acusação injusta contra Lucas Mirtzrael e Samuel Mohamed em protesto | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

Adailza conta que só soube que o filho tinha sido preso após um comerciante de uma adega localizada na mesma rua onde Samuel mora ter reconhecido os dois em uma reportagem veiculada pela Record TV no dia 30 de janeiro. Nas imagens, Lucas e Samuel estão sendo conduzidos ao 72º DP (Vila Penteado) e, com base apenas nas entrevistas dos policiais militares que prenderam os dois e um outro homem, afirmam que se tratam de criminosos. O SBT News também divulgou imagens deles nesse sentido. “Eu achava que meu filho estava desaparecido”, afirma Adailza. “Até que o rapaz da adega falou comigo ‘mas como ele roubou se ele estava aqui?'”.

A vigilante conta os dois são amigos há muito tempo, já que Samuel é irmão da cunhada dela e se tratam como primos. “Os dois cresceram praticamente juntos. Não é de sangue, mas somos uma família”, afirma. No dia em que foram presos, Adailza conta que Samuel e Lucas ficaram na casa dele e saíram para a adega e depois para fumar.

“Quando eles passaram por uma viela, veio um monte de gente correndo, gritando ‘olha a força, olha a força’ [referência à Força Tática da PM] e correram também. Eles se assustaram e correram”, diz. Foi na correria que acabaram abordados.

Trechos da filmagem da câmera de segurança da adega em dois momentos: às 19h27 e às 20h50 do dia 28 de janeiro de 2023 em que aparecem Lucas e Samuel | Imagens: reprodução

Adailza pediu as filmagens da câmera de segurança da adega, que fica a 26 metros da casa de Samuel, e mostram Lucas, sem camisa, vestindo bermuda branca e boné azul, e Samuel, trajando camiseta azul com estampa, bermuda branca com estampa colorida e boné vermelho, em dois momentos.

Primeiro, eles vão até o estabelecimento, das 19h24 até 19h30, onde ficam conversando. Depois, retornam ao local, caminhando pela rua, às 20h49 e permanecem na adega até 20h53, em que é possível ver apenas Lucas em frente a uma espécie de janela que serve como caixa.

Quatro minutos depois, às 20h57, aparece uma viatura descendo a rua da adega sentido à Rua do Mestre, que faz cruzamento, onde os jovens foram abordados. Depois que as famílias procuraram as emissoras com as imagens, a Record e o SBT fizeram reportagens sobre o assunto pela ótica da denúncia de acusação injusta.

Momento em que viatura da Força Tática da PM desce a Rua Clara Nunes, às 20h57 | Foto: reprodução

Adailza afirma que a prisão do filho foi um choque para a toda a família. “Ele sempre foi trabalhador, sempre se esforçou, até fazendo bico quando estava desempregado. Deus abençoou ele com um trabalho [fixo], mas infelizmente ele foi mandado embora por causa disso”, lamenta. Lucas trabalhava como auxiliar de produção com carteira assinada desde janeiro de 2022 e estava prestes a tirar férias quando foi detido.

Ele ainda tem dois filhos pequenos, um de quatro anos e outro de nove meses. “Eu tento ajudar a minha ex-nora como posso, inclusive complementando a renda fazendo faxina, mas ela está nas mãos de Deus com essas crianças”, diz a vigilante.

A vendedora Thais Mohamed, 37, também aponta que o irmão Samuel tinha conseguido um trabalho temporário na época para sustentar a filha de cinco anos. “Ele ia começar a trabalhar como ajudante de pedreiro, ele já tinha feito outros bicos antes”, afirma. “Ele ficou o dia inteiro na casa da minha mãe. Só saiu para ter um lazer, passar na adega para comprar uma dose”, lamenta.

A versão da polícia

No boletim de ocorrência, apenas uma das vítimas, que vamos chamar de Paulo, detalha o horário em que a tentativa de roubo aconteceu: 20h. Já a outra que foi efetivamente extorquida e agredida pelos assaltantes, que nomearemos como Anderson, não informa o horário que havia sido combinado o falso encontro nem quando foi abordado pelos bandidos. O registro aponta 22h55 tanto como o horário da ocorrência quanto da comunicação à delegacia. Os PMs, nos depoimentos, também não precisam o horário em que encontraram Anderson e começaram a perseguir os criminosos.

Paulo disse no 72º DP (Vila Penteado) que é motorista de aplicativo e que, por volta das 20h, havia aceitado uma solicitação de corrida feita por uma mulher na Rua Aires Bento, no bairro Jardim Elisa. Quando chegou ao local, foi abordado por dois homens, sendo que um deles apareceu pelo lado da porta do passageiro, parecendo estar armado, e perguntou “você é o Paulo? [nome original trocado]”. Depois, ele abriu a porta do carro e o mandou sair. Ao mesmo tempo, o outro assaltante foi em direção à porta do motorista, mas não conseguiu abri-la e gritou “atira nele!”. Nesse instante, Paulo acelerou e conseguiu fugir da dupla e depois acionou a PM.

Já Anderson declarou que havia conhecido uma mulher por um aplicativo de relacionamento havia um mês e decidiram marcar um encontro na Avenida Deputado Cantídio Sampaio, na região da Brasilândia. Quando chegou ao local, foi surpreendido por “cerca” de seis pessoas que invadiram o carro que dirigia, colocaram-no no banco de trás, pegaram seu celular e a carteira e seguiram com ele, dentro do veículo, até um local desconhecido. A vítima afirma que foi agredida com coronhadas, socos, pontapés e ameaças de morte para dizer a senha dos aplicativos de banco.

Em determinado momento do trajeto, eles pararam o veículo em uma rua que Anderson desconhecia e, antes de fornecer as senhas, uma viatura da Polícia Militar se aproximou. No depoimento, é dito que três assaltantes que estavam do lado de fora do carro saíram correndo, bem como outros quatro que estariam dentro do veículo, em direção a uma viela, o que indicaria a presença de sete criminosos, embora a vítima tenha informado que se tratavam de seis.

O sargento Carlos Eduardo da Cruz Raimundo e o cabo Wagner Oliveira Lima, ambos da Força Tática do 9º BPM/M (Batalhão de Polícia Militar Metropolitano), disseram que haviam sido acionados para um caso de roubo com “retenção de vítima” na Avenida Deputado Cantídio Sampaio. Quando estavam seguindo pela Rua do Mestre viram o veículo preto parado na rua e o momento em que um “indivíduo” teria saído do carro e fugido ao ver a viatura. Outras quatro pessoas também desembarcaram e correram para uma viela em direção à Rua Manoel Aquilino dos Santos.

Com isso, o sargento, o cabo e um soldado identificado apenas como Julio foram atrás dos suspeitos. Os policiais afirmaram que “dois dos suspeitos, ambos trajando boné, tentaram sem sucesso se esconder em uma oficina mecânica”, mas foram interceptados pela equipe identificada apenas como a do tenente França e do sargento Fernandes, que foram dar apoio e fizeram um cerco. Esses dois são Samuel e Lucas. Um terceiro rapaz, de 20 anos, que o registro destaca que usava boné, também foi detido pelo sargento Fernandes, e estava com o celular da vítima Anderson.

À esquerda, Lucas Mirtzrael, à direita, Samuel Mohamed, de 26 e 27 anos, respectivamente | Fotos: arquivo pessoal

Os policiais alegaram que Lucas teria dito a eles que estava sem camiseta e chinelo no momento da abordagem “por ter deixado as vestes ‘na casa de um tio'”. Os PMs afirmam que “suas roupas foram posteriormente localizadas jogadas na viela, por onde correu para fugir dos policiais”, o que a família nega por conta das imagens da câmera da adega que já o mostravam sem camisa.

Anderson, que estava dentro do veículo, contou ao cabo Renato, da equipe do sargento Carlos e do cabo Wagner, que havia sido rendido e, soube depois, que “três suspeitos” haviam sido detidos, sendo que reconheceu o celular que estava com o terceiro detido. Ele também identificou que no período foi feita uma compra no valor de R$ 108 por um dos cartões que levava na carteira, que ainda continha R$ 700 em espécie e não foi recuperada.

Só depois os PMs tiveram conhecimento da tentativa de sequestro contra a vítima Paulo, que foi até o 72º DP.

Na delegacia, conforme o boletim de ocorrência, Paulo reconheceu esse terceiro detido, que usava boné, como o homemque o abordou pela porta do motorista, e não reconheceu Samuel nem Lucas. No auto de reconhecimento, ele descreveu o suspeito que o abordou pela porta do motorista como “pele parda, magro, cerca 1,70m de altura, com dentes bem cuidados, lábios carnudos, e trajava roupa branca e boné escuro”. Ele ainda teria reconhecido o boné azul escuro. O que o abordou pela porta do passageiro também teria pele negra, mesma altura e porte físico magro, mas “vestia blusa cinza e calça jeans”.

Já Anderson disse que não tinha condições de reconhecer ninguém “pois afirmou que não conseguiu visualizar seus rostos devido às baixas condições de luminosidade e por ter permanecido com a cabeça abaixada quase que o tempo todo”. Ele descreveu que pelo menos três assaltantes usavam bonés com máscara e moletom com capuz, e os outros três usavam apenas máscara, sem boné nem capuz. Anderson fez questão de destacar no depoimento que três assaltantes usavam bonés.

Apesar de o auto de reconhecimento conter descrições físicas feitas pela vítima Paulo e informar que foram colocadas cinco pessoas para o reconhecimento, essas cinco têm características diferentes que vão da altura ao corte de cabelo e tom de pele, conforme a foto anexada ao processo e que segue abaixo.

Foto do auto de reconhecimento em que Samuel segura a folha com número 3 e Lucas, a de número 1. Os dois têm características diferentes entre si e em relação aos demais colocados | Foto: reprodução/Polícia Civil.

A Ponte omitiu as identidades dos outros três homens que foram colocados para reconhecimento, dos quais um deles, que segura o número 5, foi reconhecido pela vítima Paulo e abordado pela mesma equipe que enquadrou Lucas (que segura o número 1) e Samuel (que segura o número 3). Os que estão com as placas 2 e 4 não há informação no auto de reconhecimento sobre o motivo de estarem na relação de suspeitos.

Contudo, a forma como foi realizado o reconhecimento não segue o artigo 226 do Código de Processo Penal, que estabelece que as vítimas devem primeiramente descrever as características da pessoa a ser identificada e, depois, são colocadas pessoas com perfis semelhantes.

Desde março, também está em vigor resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de número 484/2022, que prevê uma série de diretrizes para realizar reconhecimento presencial ou por foto a fim de evitar prisões e condenações de inocentes. Colocar pessoas de características diferentes e dar qualquer tipo de informação prévia à vítima como dizer que “três suspeitos foram presos”, como aconteceu com a vítima Anderson, mesmo que ela não tenha reconhecido ninguém, são formas que podem induzir e contaminar o procedimento.

Boné azul claro usado por Lucas, boné vermelho usado por Samuel e boné azul escuro usado pelo terceiro rapaz detido | Fotos: reproução/Polícia Civil

Mesmo assim, o delegado Antonio Toshio Nishida Júnior, do 72º DP, considerou que Lucas e Samuel tinham praticado os crimes porque usavam bonés. “Muito embora não tenham sido reconhecidos em solo policial, a vítima descreve que três dos roubadores trajavam bonés (os indiciados todos usavam tal indumentária), bem como consta que os militares estaduais perseguiram os capturados ininterruptamente sem perdê-los de vista”, escreveu ao entender que a fundada suspeita se configurava e que a prisão foi em flagrante.

Porém, o argumento de que os policiais perseguiram os assaltantes sem perdê-los de vista também não se sustenta pois a equipe que encontrou a vítima Anderson é diferente da que abordou Lucas, Samuel e o terceiro rapaz de 20 anos.

Para Adailza, mãe de Lucas, a justificativa é “absurda” porque qualquer pessoa na região pode estar usando boné. “Se você ver as fotos do meu filho, ele sempre está de boné. Ele tem uma coleção de uns 10, 15 bonés, e tudo conquistado com trabalho dele”, afirma.

Na delegacia, tanto Lucas quanto Samuel também negaram envolvimento com os crimes. Ambos disseram que estavam na Rua do Mestre “fumando um baseado [maconha]” quando viram “quatro moleques correndo” e acabaram abordados. Disseram que não conheciam o rapaz que acabou detido com eles.

Já o terceiro rapaz preso disse que estava na viela quando “um menor veio correndo e jogou um telefone celular no chão” e foi enquadrado em seguida pelos policiais. Também disse que não conhecia Lucas nem Samuel.

O delegado Antonio Toshio Nishida Júnior indiciou o trio por roubo (o tentado e o de fato consumado) e extorsão mediante sequestro. Na audiência de custódia, o juiz Paulo Eduardo de Almeida Sorci decidiu converter a prisão para preventiva (por tempo indeterminado). No caso de Samuel, tanto o magistrado quanto o delegado e o Ministério Público, que se manifestou pela prisão, consideraram o fato de ter tido passagens anteriores por roubo e receptação, em 2013 e 2014, cujas penas já foram cumpridas.

“Na época, ele cumpriu direitinho e a gente não teve como provar que não foi ele, mas num caso que a gente tem imagens que mostram que eles saíram de casa para ir na adega não faz sentido”, critica Thais Mohamed, irmã de Samuel.

Nem a Polícia Civil nem o Ministério Público, de imediato, aprofundaram as investigações do caso. O delegado concluiu o inquérito em 1º de fevereiro, ou seja, três dias depois das detenções e não solicitou busca por câmeras de segurança nos locais em que os crimes aconteceram nem os registros das câmeras das fardas dos PMs.

Em 8 de fevereiro, o promotor Paulo Henrique Castex acusou os três por roubo com agravantes de ser praticado por mais de duas pessoas, com uso de violência ou grave ameaça com emprego de arma, e extorsão, também com esses agravantes, além de ser cometido por meio de restrição de liberdade da vítima. Os dois crimes têm penas que variam de quatro a 10 anos, o tempo pode ser maior devido aos agravantes.

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A juíza Fernanda Afonso de Almeida aceitou a denúncia e o processo está em andamento. Apenas em audiência do dia 20 de março que a magistrada determinou que o batalhão fosse oficiado para ceder as imagens das câmeras acopladas aos uniformes dos policiais envolvidos para análise.

Mesmo com a apresentação das filmagens da adega pelos advogados das famílias e comprovação de que os rapazes trabalhavam, as autoridades não consideraram soltá-los durante o processo.

O que diz a polícia

A reportagem procurou a Secretaria de Segurança Pública e questionou sobre a abordagem aos dois rapazes e à investigação conduzida pela Polícia Civil. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu as perguntas e encaminhou a seguinte nota:

A Polícia Civil esclarece que a versão dos policiais envolvidos embasou a fundamentação do flagrante. Cabe ressaltar que o boletim de ocorrência é um resumo dos fatos. O B.O, os depoimentos das partes e demais documentos produzidos no auto de prisão em flagrante compõem o inquérito, que foi remetido para análise do Poder Judiciário.

O que diz o Ministério Público

A Ponte também procurou a assessoria do órgão sobre a investigação do caso bem como os motivos para o promotor não ter questionado a abordagem, o reconhecimento e nem solicitado aprofundamento das investigações antes de fazer as acusações e aguarda retorno. A assessoria respondeu que o “MPSP se manifesta nos autos”.

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