Juiz de SP exige que presos tenham acesso à água quente e chama banho frio de tortura

    Das 186 prisões no estado, apenas 27 têm água quente; na sentença, juiz Adriano Marcos Laroca cita Racionais e livros sobre o PCC

    Centro de Detenção Provisória de Mauá é uma das unidades, segundo um ex-detento entrevistado pela Ponte em novembro de 2019, que não tem água quente | Foto: Reprodução/Google Street View

    O juiz Adriano Marcos Laroca, da 12ª Vara da Fazenda Pública, obriga o governo de São Paulo a fornecer água quente para que presos deixem de tomar banho frio em todas as unidades prisionais do estado (leia aqui sentença completa).

    Na sentença, o magistrado acolhe o argumento de que o banho frio é um tipo de tortura, cita Racionais e lança mão de bibliografia sobre a facção paulista PCC (Primeiro Comando da Capital) para criticar a política prisional e destaca as consequências do encarceramento em massa.

    “Manter o preso em condições indignas, ainda que seja uma decisão político-administrativa, apoiada por muitos na sociedade civil, é absolutamente ilegítima, inconstitucional, violadora do mínimo existencial da dignidade humana”, escreve, na conclusão da decisão, e frisa que aceitar tal fato como natural é o “reconhecimento de que vivemos em estado de exceção”.

    De acordo com a Defensoria Pública de São Paulo, autora da ação civil pública, dos 186 presídios em SP, apenas 27 têm instalações para aquecimento de água. Há prisões onde há chuveiro elétrico na cela ou na enfermaria, mas apenas o preso “faxina” (ou piloto, vinculado ao PCC) pode usar.

    Com relação às carceragens, de responsabilidade de Secretaria de Segurança Pública, apenas 11 dispõem de instalações adequadas para banho morno das 30 existentes.

    Na decisão, Laroca destaca trecho da ação da Defensoria que informa que o banho frio pode causar ou piorar quadros de doenças. “Configura ato de tortura sobretudo nos dias mais frios, tudo agravado pela ausência de atendimento médico nos presídios, conforme relatório do CNJ. Menciona, ainda, como agravante a superlotação dos estabelecimentos, além da ausência ou insuficiência no fornecimento de cobertores e agasalhos”, cita o juiz.

    E outro trecho da sentença, para explicar a falência do sistema prisional, Laroca faz um verdadeiro arrazoado da história do rap como expressão genuína dessa realidade, citando até Afrika Bambaataa. “Se a música clássica de Bach, escrita de tradição camerística e sinfônica, servia à missa, o Rap (segunda geração Emicida AmarElo: ‘permita que eu fale, não as minhas cicatrizes’; Criolo com Boca de Lobo: ‘é que a indústria da desgraça pro governo é um bom negócio’; Rashid – Estereótipo: ‘quando a definição de suspeito vem com uma tabela de cores’), escrita poética de dicção temática via de regra, pode servir ao Papa Francisco, à sua ‘ecologia integral’, crítica da degradação social e ambiental, da violência, da exploração humana, do consumismo exacerbado, da injustiça com os excluídos”, escreve.

    Ao criticar a política criminal e definir o fracasso do cárcere, Laroca mescla citação do livro “Irmãos”, de Gabriel Feltran, com o álbum que virou livro “Sobrevivendo no inferno”, dos Racionais. “As políticas criminais, de crescente encarceramento, logo após a redemocratização, serviram de alimento ao poder da facção, primeiro, dentro, depois fora das prisões”, argumenta.

    E segue. “Quase certo que a taxa de homicídio no Estado de São Paulo em queda desde 2001 tenha como concausa, ou se correlaciona com a ‘bandeira branca das quebradas’ imposta pela facção, concretização legitimada por parcela da sociedade, mas equivocada, da ‘fórmula mágica da paz’ (a malandragem de verdade é viver) dos Racionais MC’s, cantada em meados da década de 1990, ‘época das guerras'”.

    O juiz Adriano Marcos Laroca também critica o punitivismo, a “histórica desigualdade social intocada pelo poder”, a guerra às drogas e destaca o perfil do apenado: jovem, negro e pobre. “A política repressiva que dura trinta anos não reduziu o tráfico nem o consumo, só elevando o encarceramento (em torno de 70% dos presos relacionados com os crimes de tráfico de drogas e roubo), e que estes alimentam financeiramente as facções criminosas, o poder político junto com a sociedade civil deveria ao menos debater a possibilidade da descriminalização das drogas, como já ocorreu em outros países”, afirma, defendendo o livre mercado e adoção de políticas de redução de danos.

    O Brasil tem hoje 812 mil presos, a terceira maior população prisional do mundo, ficando atrás apenas de Estados Unidos e China. Laroca frisa que, no ritmo que o sistema prende, em 2025 a população prisional deve superar 1,5 milhão de pessoas. “64% são negros; 55% tem entre 18 e 29 anos de idade; 95% são homens; a maioria não completou o ensino fundamental ou educação básica. Altíssima reincidência, em torno 70%”.

    Também afirma que, para além da superlotação, as condições dos estabelecimentos penais brasileiros são “insalubres e degradantes, em suma, desumanas”.

    Caso antigo

    A Ponte denuncia, há muito tempo, condições subumanas no sistema prisional de todo o país e isso inclui a falta de água quente nas prisões e até mesmo o racionamento, como verificado no estado de São Paulo.

    Em fevereiro de 2018, nossa reportagem antecipou dados da Defensoria Pública de SP, feitos a partir de inspeções em 57 unidades prisionais, que apontavam que banho frio era uma regra, não exceção. “Água quente não existe no sistema prisional e verificamos nas inspeções que o racionamento é recorrente. Há presídios que tem água pela manhã e depois só a noite”, pontuou, à época, o defensor público Mateus Moro, no Núcleo Especializado em Situação Carcerária).

    Na reportagem, trazíamos também dados de outros maus tratos ocorridos em prisões do estado, que incluíam agressões durante incursões do GIR (Grupo de Intervenção Rápida). “Agressões com chutes, socos. Cortaram as visitas para não verem os machucados. Fizeram comer fezes, jogam spray de pimenta, bomba de efeito moral, revista humilhantes, com cachorros mordendo”, apontava um relato coletado pela Defensoria em um Centro de Detenção Provisória na Baixada Santista. 

    Outro lado

    A Ponte procurou a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo e a Secretaria de Segurança de SP e questionou, por e-mail, o que a gestão de João Doria (PSDB) pretende fazer diante da sentença de condenação.

    Em nota enviada na noite de sexta-feira (14/2), a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo informou que, até o momento, “o Estado não foi intimado e, assim que for, adotará as medidas cabíveis”.

    Reportagem atualizada às 10h do dia 17/2 para inclusão da nota do governo de SP

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