Juiz e MP ignoram violência e fome em presídio campeão de denúncias, segundo famílias e defensores

    CDP Nova Independência é uma das unidades prisionais com mais denúncias na Defensoria, todas arquivadas. Em 2019, defensores constataram racionamento de água e jejum de 15 horas entre as refeições. Governo Doria nega e diz que denúncias são “genéricas e superficiais”

    Presos do CDP Nova Independência mostram excesso de pó no café servido com o jantar | Foto: Defensoria Pública do Estado de SP

    Há pouco mais de um mês, Cristina (*) não tem notícias do marido, que está preso no Centro de Detenção Provisória (CDP) Nova Independência, localizado na cidade de Nova Independência, no interior do estado de São Paulo. A cozinheira de 27 anos diz que mal dorme desde que ele foi transferido para o CDP, em 15 de abril, e que só recebe notícias do esposo a partir do advogado. “Ele chegou lá e já retiraram os remédios dele, colocaram ele no castigo alegando que era por conta de uma falta coletiva. Eles simplesmente não enviam as cartas dos presos para a gente”, denuncia.

    Além dos maus tratos, Cristina ouviu que o marido estava sofrendo com a fome. “Ele teve uma grande perda de peso depois que chegou lá, segundo o advogado. O café é às 5 da manhã é um absurdo isso, quando a comida não vem estragada vem suja. São pouquíssimas coisas que entram no jumbo [itens de higiene, alimentação e saúde que os parentes mandam para os detentos], não entraram os remédios dele e pasta de dente. Ele levou vários sabonetes, mas só permitiram dois e não devolvem as coisas que não entram.”

    A moça, que enviou um e-mail à Ponte, afirma que “os presos devem assinar um termo permitindo a doação de seus pertences na presença de cães de guarda da raça Rottweiler”. Segundo ela, há proliferação de doenças dentro da unidade, que tem “muitos insetos e até mesmo escorpiões”. Inaugurada em novembro de 2018, a unidade custou R$ 47 milhões — parte dos recursos veio do Governo Federal, por meio do Departamento Penitenciário Nacional, segundo informações do site da SAP (Secretaria da Administração Penitenciária), na gestão do governador João Doria (PSDB).

    Canil do CDP Nova Independência, imagem de 2019 | Foto: Defensoria Pública do Estado de SP

    As visitas presenciais estão suspensas desde março deste ano e a saída para as famílias se comunicarem com seus entes tem sido por meio do projeto Conexão Familiar, desenvolvido pela SAP para as visitas virtuais e a troca de e-mails entre presos e seus parentes. Nesse quesito, outra esposa de detento, Alessandra (*), aponta problemas. Seu marido se encontra lá há mais ou menos um mês: o primeiro e único contato com ele foi no último domingo (16/5) por chamada de vídeo. “Não conseguimos conversar muito, pois são cinco minutos. Nós não recebemos cartas, meu marido disse que mandou três, mas até hoje nada chegou para mim, não temos retorno dos presos, a gente fica vulnerável, é triste porque são seres humanos”, critica. Ela também aponta que o que é servido como alimento a eles lá dentro é insuficiente. “Eles passam fome.”

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    A falta de luz também é relatada por Cristina (*). De acordo com ela, às 20h as luzes são apagadas pelos agentes penitenciários. “Os agentes apagam as luzes do pavilhão para presos ficarem no escuro, só é religada no outro dia. Isso é desumano”, diz.

    Já a assistente de agendamento, Amanda (*) lembra que seu irmão, preso há 20 dias no CDP, também não consegue se comunicar com ela. Segundo ela, o tratamento recebido pelo irmão no CDP de Diadema (Grande SP) era diferente do que encontrou no Nova Independência. “Mal consigo dormir, a minha mãe também fica aflita, pois ele estava no CDP em São Paulo e o tratamento era totalmente diferente. A SAP diz que o presídio tem o prazo de cinco dias para responder os e-mails, mas eles respondem apenas quando querem. Se o nosso único meio de comunicação é esse, porque violam um direito simples?”, questiona a jovem.

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    Agressões também são cometidas na unidade, segundo Amanda (*). “Entendo que todo presídio deve ter alguém para coordenar, mas não desta maneira. Meu irmão estava tranquilo no CDP aqui em São Paulo, quando foi para lá já mudou totalmente a fisionomia, o olhar parece pedir socorro. Ele não pode dar um respiro a mais que já é motivo de apanhar e ser colocado de castigo e levar falta grave no processo, implicando o andamento”, afirma.

    Em um grupo de WhatsApp com aproximadamente 47 familiares de detentos do CDP do Nova Independência, os problemas são relatados diariamente. Um deles é a falta de água na unidade, que é constantemente desligada. 

    Conforme o e-mail enviado à Ponte, os presos não têm “água para beber e tampouco para fazer suas higienes pessoais”. Os familiares pedem que os órgãos responsáveis visitem a unidade, “para que, desta forma, tomem conhecimento destas violações e as resolvam”.

    Histórico de violações

    O CDP Nova Independência carrega consigo um histórico de inúmeros descumprimentos de direitos das pessoas em restrição de liberdade, conforme relatado pelo defensor público e coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC), da Defensoria Pública de SP, Leonardo Biagioni de Lima. OS defensores fizeram uma inspeção na unidade em novembro de 2019 e verificaram o racionamento de água, agressões físicas cometidas contra os detentos pelo GIR (Grupo de Intervenção Rápida), a “tropa de choque” do sistema prisional paulista, menos de quatro horas de banho de sol, ausência de alimentação variada, dentre outras coisas.

    “A própria unidade confirmou o racionamento, que é vedado, não pode haver racionamento de água. O próprio Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária fala que tem que ser sobre a livre demanda a oferta de água às pessoas presas”, afirma o defensor público.

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    A equipe da defensoria também averiguou que o valor gasto por refeição por pessoa presa correspondia a R$1,21 naquele ano. A unidade não fornecia o kit de higiene para quem tinha visita, nem aceitava a entrega do “jumbo” pelos parentes. A revista vexatória e a aplicação de sanções coletivas, que também é proibida pela Lei de Execução Penal, além de um jejum de 15 horas entre a última e a primeira refeição do dia, também foram observações da Defensoria Pública. 

    Foram diversos relatos de agressão, conta o defensor. “As pessoas presas narraram constantes incursões do GIR, com o uso de bombas, balas de borracha, spray de pimenta, cachorros e foram verificadas inclusive pessoas machucadas”, narra. “Os presos ali estão numa situação muito parecida das pessoas do RDD [Regime Disciplinar Diferenciado], nesse regime, que é o mais extremo inclusive de constitucionalidade muito duvidosa, nesse sistema rígido o preso tem direito a pelo menos duas horas de banho de sol.”

    Pessoa com costela quebrada em face de agressões do GIR, em imagem de 2019 | Foto: Defensoria Pública do Estado de SP

    Além da falta de infraestrutura narrada pelos próprios agentes penitenciários e mencionadas em um relatório produzido pela Defensoria Pública de SP, sobre a unidade prisional, Leonardo relata que as denúncias sobre o lugar são numerosas. “É uma das unidades que a gente recebe o maior número de denúncias pelo número de pessoas no núcleo carcerário. Isso motivou que nós fizéssemos uma inspeção na unidade prisional, tamanha a quantidade de denúncias que a gente recebia”, diz. Desde lá, as denúncias não cessaram. 

    Após a visita no CDP, os defensores enviaram um pedido de providências ao juiz corregedor da unidade prisional, Fernando Baldi Marchetti, em janeiro de 2020 pedindo a regularização das violações, mas nada mudou, diz Leonardo. “A unidade foi genérica na resposta não trazendo nenhum documento, negou todas as denúncias, reiteramos ao juiz e ele simplesmente arquivou o procedimento, acatando todas as falas da direção. Recorremos À Corregedoria Geral de Justiça, que também negou o recurso, arquivando.” 

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    Mesmo com relatos dos presos e funcionários do local, além da própria direção assumir o racionamento de água e provas fotográficas em relação a marcas de bombas, pessoas machucadas e estilhaços de bomba, os promotores Lindson Gimenes de Almeida e Adelmo Pinho, do do Ministério Público Estadual de São Paulo, ignoraram o procedimento da Defensoria e o juiz ainda fundamentou que não havia provas da de nenhum fato irregular. “O Ministério Público não requereu nada. Viu todas as violações e nada fez”, completa Leonardo.

    No final do ano passado, os defensores protocolaram outro pedido de providências, com novas denúncias, porém mais uma vez foi arquivado pelas autoridades. “Agora recorremos novamente e estamos aguardando a decisão da Corregedoria Geral de Justiça”, explica o defensor.

    O que diz o governo

    A Ponte indagou ao Ministério Público do Estado de SP sobre as violações ocorridas no CDP e sobre seu papel diante das denúncias oferecidas pela Defensoria Pública de São Paulo. Os promotores ainda não responderam à reportagem. 

    O Tribunal de Justiça de SP também não informou porque as denúncias foram arquivadas pelo juiz Fernando Baldi Marchetti. Disse somente que “não se manifesta sobre questões jurisdicionais”.

    Questionada pela reportagem, a assessoria de imprensa da SAP disse em nota que as denúncias são improcedentes e já foram tema de apuração pela Corregedoria Juízo Corregedor de Presídios do DEECRIM 2ª RAJ de Araçatuba, que resultou em arquivamento por não restar vislumbrada qualquer irregularidade, tampouco indícios de infração penal.

    A pasta informou que “não há uso de cães como colocado nas denúncias, feitas de maneira genérica e superficial”. Segundo a pasta, “o Centro de Detenção Provisória de Nova Independência passou por desintetização, desratização e dedetização em 03 de março, com reforço no último dia 05 de maio”.

    A SAP afirma que o projeto Conexão Familiar “é realizado normalmente, sendo cumpridos os prazos estabelecidos pela normativa da Secretaria” e que “o setor responsável pelo recebimento e distribuição dos materiais provenientes de correspondências fornece um documento impresso aos custodiados na hipótese de algum item ser restringido ou considerado excessivo”.

    Sobre as refeições, foi informado que são quatro: “café da manhã, almoço, café da tarde e jantar, diariamente, sendo a última refeição servida às 17h”. Ademais, foi dito que não há racionamento de água no CDP de Nova Independência nem nas demais unidades da SAP. “Todos os presídios seguem o que determina a Organização Mundial da Saúde, que estipula o consumo mínimo per capita de 100 litros diários de água por pessoa por dia. A Secretaria reforça o uso consciente para evitar que haja desperdício”.”

    A SAP não respondeu se pretende investigar as denúncias de agressões, nem sobre os protocolos de entrada do “jumbo”, e o horário em que as luzes são desligadas.

    (*) Os nomes foram trocados a pedido das entrevistadas por medo de represálias contra seus familiares

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