Liminar de Josué Vilela Pimentel também proíbe policiais de usar cordas e outros apetrechos para imobilizar suspeitos; decisão atende pedido de ação pública impetrada após homem ser filmado amarrado por PMs na capital paulista
O juiz Josué Vilela Pimentel, da 8ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, determinou a intimação do governador paulista, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e deu o prazo de 90 dias para que o seu governo instale câmeras nos uniformes e nas viaturas de todos os policiais militares do estado. Pimentel ordenou, ainda, que o estado observe uma súmula do Supremo Tribunal Federal (STF) que restringe os casos em que os presos devem ser algemados, proibindo expressamente a utilização de cordas e outros apetrechos para transportar suspeitos.
A decisão liminar decorre de uma ação conjunta movida pela Educafro, liderada pelo Frei David, e pelo Centro de Defesa de Direitos Humanos Padre Ezequiel Ramin, conduzido pelo padre Júlio Lancellotti, a partir da prisão de um homem negro por policiais militares no dia 4 de junho em São Paulo. Acusado de furtar chocolates, ele foi conduzido para a viatura amarrado por cordas, com pés e mãos atados atrás do corpo.
Ao longo das cinco páginas de sua decisão, o juiz decidiu:
- Intimar pessoalmente o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e o comandante-geral da PM paulista, coronel Cássio Araújo de Freitas.
- Proibir a contenção de detidos utilizando-se qualquer método que não sejam algemas. A decisão reitera a necessidade de cumprimento da Súmula Vinculante 11, do STF, que determina que o uso de algemas só é permitido em situações de resistência, risco de fuga, ou ameaça à integridade física do preso ou terceiros, exigindo justificativa por escrito para sua utilização. A súmula estabelece responsabilidades em caso de uso inadequado das algemas, incluindo penalidades para os responsáveis e a possibilidade de anulação da prisão ou ato processual em questão.
- Obrigar o estado de São Paulo, no prazo de 90 dias, a instalar câmeras de filmagem que não possam ser desativadas por agentes em todos os uniformes e viaturas policiais. Essa decisão visa combater a prática recorrente de desligamento de câmeras durante operações, supostamente para ocultar condutas inapropriadas.
- Estabelecer multa de R$ 100 mil no caso de descumprimento de suas determinações
Tarcísio é um crítico do uso de câmeras em uniformes policiais e tem sido acusado por adversários e ativistas de direitos humanos de sucatear o atual modelo.
“Para mim, é um voto de desconfiança para o policial. Eu acredito no policial. Acredito naquele profissional que coloca uma farda e coloca a vida em risco para nos defender. Entre policial e criminoso, fico com policial. Você tira privacidade do policial e não permite que coisas que eram rotina aconteçam”, afirmou o então candidato a governador em sabatina na Folha de S.Paulo em maio do ano passado. Ele chegou a ensaiar retirar o equipamento, mas recuou diante da repercussão negativa.
O Congresso em Foco procurou a assessoria do governador Tarcísio e o comando da PM de São Paulo para comentarem o assunto. O texto será atualizado caso haja manifestação. Cabe recurso contra a decisão.
O uso das câmeras corporais reduziu em 62,7% o número de mortes em decorrência de ação policial no estado, passando de 697 mortes em 2019 para 260 em 2022, segundo pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Em agosto, o governo de São Paulo cortou R$ 11 milhões do orçamento para a compra dos aparelhos. O orçamento inicial para a ação de registro de ocorrências policiais, por meio de câmeras portáteis, era de R$ 152 milhões. Esse montante caiu para R$ 125 milhões.
Para o advogado Márlon Reis, que assina a ação em nome das duas entidades, a decisão do juiz Pimentel representa uma vitória para a sociedade brasileira. “A súmula que restringe o uso de algema só vinha sendo aplicada para presos privilegiados. Na favela, muitas vezes não usam algemas. Usam corda, empurram e matam pessoas. Ele proíbe esse tipo de uso expressamente. Além disso, deixa claro que a algema só deve ser usada com cautela e apenas quando necessário”, disse o advogado ao Congresso em Foco.
Na avaliação de Márlon, a decisão tem também caráter simbólico por envolver em uma mesma causa dois militantes reconhecidos nacionalmente, como Frei David e o padre Júlio Lancellotti. “Frei David é uma referência na luta antirracista, e padre Júlio, na luta contra a aporofobia (aversão a pobres)”, ressalta o autor das ações.
Em junho, imagens de câmeras instaladas nos uniformes de policiais militares e de sistemas de segurança registraram o momento em que Robson Rodrigo Francisco, de 32 anos, foi abordado por agentes com duas caixas de chocolate furtadas. O homem teve mãos e pés amarrados ao resistir à ação. Na ocasião, também foi preso outro e um adolescente, todos acusados de pegar alimentos e bebidas em um mercado na Zona Sul de São Paulo. Rodrigo virou réu por furto, resistência à prisão e corrupção de menor de idade.
Depois do episódio, a PM afastou os dois policiais, abriu processo para apurar o caso e repudiou a abordagem, considerada incompatível pela instituição. “A Polícia Militar lamenta o episódio e reafirma que a conduta assistida não é compatível com o treinamento e valores da instituição. Por isso, foi instaurado um inquérito para apurar todas as circunstâncias relativas às ações dos policiais envolvidos no episódio. Todos foram preventivamente afastados das atividades operacionais, vez que as ações estão em desacordo com os procedimentos operacionais padrão da instituição”, informou a Polícia Militar na ocasião.
Operação Escudo
Nesta quarta-feira (13), o governo paulista anunciou a retomada da Operação Escudo, na Baixada Santista, uma semana depois de ter anunciado o encerramento das ações. A operação teve início no final de julho, após um sargento reformado da Polícia Militar ter sido morto em frente de casa, em São Vicente.
No mesmo dia, uma equipe da PM foi atrás dos suspeitos, houve troca de tiros e um policial ficou ferido. Na ação, outras três pessoas foram atingidas e uma jovem de 22 anos morreu vítima de um tiro. A primeira fase da operação deixou 28 mortos e entrou para a história como a segunda ação mais letal da polícia em São Paulo, atrás apenas do Massacre do Carandiru em 1992.
Relatório divulgado na semana passada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos relacionou uma série de abusos da operação e recomendou 20 medidas para o governo de São Paulo, começando pelo encerramento imediato das ações. Em resposta às denúncias de abuso e violência policial, a Defensoria Pública de São Paulo e a Conectas Direitos Humanos entraram na Justiça com uma ação civil pública pedindo que fosse obrigatória a instalação de câmeras corporais em todos os policiais que atuavam na operação.