Adolescente que estava com Ítalo disse ter sido coagido por policiais a dar versão falsa em depoimento; morto em 2016, Ítalo é a vítima mais jovem da Polícia Militar de São Paulo
O juiz Ricardo Augusto Ramos, da 1ª Vara do Júri do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, determinou que o soldado da PM Otávio de Marqui, que matou Ítalo Ferreira de Jesus de Siqueira, 10 anos, com um tiro na cabeça, responda por homicídio doloso diante de um júri popular. O magistrado, no entanto, absolveu outros três PMs da acusação de fraude processual, ignorando o relato do adolescente que estava com Ítalo e que disse ter sido ameaçado e coagido.
A decisão foi expedida na quarta-feira (11/10). Essa etapa ocorre quando o magistrado aceita a denúncia feita pelo Ministério Público e determina a realização de um júri popular.
Ítalo é a vítima mais jovem da letalidade policial paulista desde 2013, quando a Secretaria de Segurança Pública do estado passou a disponibilizar os dados detalhados das mortes praticadas pelas polícias.
Em agosto de 2018, o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) denunciou Otávio e também os PMs o sargento Israel Renan Ribeiro da Silva por homicídio e fraude processual. Outros três policiais — os sargentos Daniel Guedes Rodrigues e Lincon Alves e o soldado Adriano Alves Bento — foram denunciados apenas por fraude.
Na denúncia, o promotor Fernando César Bolque destacou que a fraude processual se deu pela retirada de uma arma da cena do crime, pelo fato de os PMs terem colocado o amigo de Ítalo, de 11 anos, em uma viatura e rodado com ele por duas horas, contrariando o Estatuto da Criança e do Adolescente, e pela presença de um terceiro projétil deflagrado no local, que policiais atribuíram a Ítalo, mas que os dados da perícia, segundo o promotor, indicaram que só poderia ter sido deixado no local pelos PMs.
Essa fase de instrução só começou em 2020, quando desembargadores reformaram uma sentença de absolvição dos policiais envolvidos proferida pela juíza Débora Faitarone.
Contudo, pela decisão atual de Ramos, apenas Otávio de Marqui vai a júri. Ele também responderá por fraude processual porque, segundo o magistrado, admitiu ter tirado a arma supostamente encontrada com Italo do interior do veículo, a mando do tenente Daniel Guedes Rodrigues — que faleceu em janeiro deste ano e teve o processo contra ele extinto.
Negro, Ítalo foi morto com um tiro na cabeça disparado por Otávio Marqui, após ele e um amigo, outra criança negra de 11 anos, terem furtado um carro em um condomínio. O outro jovem sobreviveu.
Na pronúncia, o juiz também citou a versão relatada em juízo pelo menor sobrevivente. Ele relatou que, junto com Ítalo, entrou no condomínio na intenção de pegar uma bicicleta, mas a dupla não encontrou nenhuma.
Ao ver um carro aberto, Ítalo teria sugerido sair dirigindo o veículo e o amigo o acompanhou. Quando saíram do local, a polícia os teria abordado e ordenado que parassem o carro, o que não teriam feito por medo.
O adolescente afirmou que eles não estavam armados e que Ítalo nunca tinha atirado antes. Ele narrou, ainda ter ouvido dois disparos: um no momento em que não quiseram parar e outro quando o carro parou ao bater contra um caminhão.
Ele contou ter sido ameaçado e agredido por um policial e que os PMs teriam dito que numa próxima vez o “pegariam com uma faca”. O menino disse ter sido coagido pelos policiais a contar na delegacia que Ítalo estava armado e confirmou ter visto os policiais jogarem uma arma no carro. No momento dos disparos, ele disse ter ficado na parte traseira do veículo e que, após a abordagem, foi colocado no porta-malas de uma viatura
Mesmo com o relato e com a denúncia do MP, o juiz Ricardo Augusto Ramos absolveu os PMs Adriano Alves Bento, Lincoln Alves e Israel da acusação de fraude processual. Para o juiz, o procedimento dos policiais, que levaram o adolescente em uma viatura até a casa onde ele morava, não configura crime.
A versão dos policiais para explicar a morte é a de que os tiros contra o veículo ocorreram após terem observado “um clarão” vindo de dentro do carro conduzido por Ítalo. A narrativa, no entanto, foi refutada por laudo que concluiu que não houve disparo de dentro para fora.
“É certo também que durante a perseguição descrita, as testemunhas teriam ouvido apenas dois disparos de arma de fogo, não sabendo identificar se os mesmos eram oriundos do veículo Daihatsu, conduzido por Ítalo ou da polícia militar, que os acompanhava. Entretanto, a ocorrência dos dois disparos foi atestada pelo perito quando da realização do laudo de reconstituição de fls. 494. Considerando, assim, que no momento do embate do veículo não houve disparo de dentro para fora, conforme atesta o laudo de fls. 44, não se justifica a existência deste terceiro projétil deflagrado”, escreveu o juiz.
O que diz a defesa dos PMs: ‘o juiz é novo’
A defesa de Marqui e dos PMs Israel e Adriano, feita pelo advogado Marcos Mantega, disse que irá recorrer da decisão. “A justiça foi parcialmente aplicada de forma correta. Injustamente aplicada em desfavor de Otávio de Marqui”, disse à Ponte.
Mantega defende que a decisão só demonstra que Marqui foi o autor dos disparos que mataram Ítalo, mas ignora que o soldado teria supostamente agido em legítima defesa, porque teria havido disparos anteriores aos dos policiais.
“Ali existiam dois tiros antecedentes, no período do percurso, do acompanhamento policial. Foi irradiado dois tiros por alto, comprovado por testemunhas civis, testemunhas não policiais que estavam ali na rua, que estavam de frente com o colégio”, alega.
O advogado afirma que esses disparos ocorreram antes do que chamou de “embate”, quando os policiais atiraram na direção de Ìtalo e a outra criança. Ele também alega que houve mudanças na versão do menor que sobreviveu sobre a presença ou não de arma no local.
A decisão judicial também foi alvo de críticas do advogado. “Ele é um juiz novo. Viu o que aconteceu com a colega dela e deve ter ficado com receio de receber qualquer retaliação”, disse Mantega sobre a condução de Ricardo Augusto Ramos no caso. A Ponte procurou o magistrado por meio da assessoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, mas não teve retorno.
O advogado fez referência ao afastamento da juíza Débora Faitarone promovido pelo TJSP em 2020. Na ocasião, a Ponte revelou com exclusividade que Faitarone foi acusada de atos como descumprimento do dever de urbanidade (magistrado deve tratar com respeito e cordialidade seus pares e a quem o procurar); descumprimento de orientação da Corregedoria Geral da Justiça de observância do critério de divisão de processos entre os juízes da vara e introdução de modificações em contrarrazões de apelação elaboradas por Defensor Público, com tratamento diferenciado concedido ao Defensor Público. Esse último tem relação direta com o caso Ítalo.
Faitarone foi acusada de revisar e orientar modificações em uma petição de um defensor público responsável por representar PMs acusados de matar Ítalo, depois de rejeitar a denúncia do Ministério Público. No ano passado, a magistrada foi punida com aposentadoria compulsória, penalidade máxima prevista em procedimento administrativo disciplinar (PAD).
A Ponte procurou também a defesa do PM Lincoln Alves, mas não conseguiu retorno.
O que diz o governo
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo pedindo entrevistas com os PMs envolvidos e pedindo um posicionamento sobre o caso. Por meio de nota enviada pela assessoria, a SSP se limitou a dizer que “a pasta não comenta decisões judiciais”.
A reportagem procurou também o Ministério Público e o Tribunal de Justiça. O MPSP respondeu dizendo que não foi oficialmente intimado da decisão. Já o TJSP disse que “os magistrados não podem se manifestar sobre processos em andamento”.
*Matéria atualizada às 14h50min do dia 16 de outubro de 2023 para incluir a manifestação do Ministério Público do Estado de São Paulo.