Júri absolve cacique, mas condena 4 Guaranis Kaiowá por morte de policiais em 2006

    Durante quatro dias de julgamento e uma extensão de mais de 33 horas na última plenária, cacique Carlito é absolvido e os Guarani Kaiowá são condenados em regime de semiliberdade pela morte de 2 policiais civis no MS em 2006

    Guaranis Kaiowas fizeram uma reza antes da sentença que condenou quatro deles, mas absolveu o cacique | Foto: Reprodução

    Depois de 13 anos de processo, chega ao fim o julgamento dos indígenas Guarani Kaiowá acusados de homicídio e tentativa de homicídio no dia 1º de abril de 2006, em Dourados, cidade no Mato Grosso do Sul. O júri popular, formado por seis mulheres e um homem, decidiu absolver o cacique Carlito de Oliveira, enquanto condenou outros quatro: Ezequiel Valensuela, Jair Aquino Fernandes, Lindomar Brites de Oliveira e Paulino Lopes pela morte dos policiais civis Rodrigo Pereira Lorenzato e Ronilson Magalhães. Outro policial, Emerson José Gadani é a única vítima sobrevivente.

    Uma plateia exausta aguardava o julgamento final dos indígenas Guarani Kaiowá, que chegou ao fim nesta sexta (7/6). O julgamento se estendeu por quatro dias, com início na terça (4/6). Ainda que as sessões tenham sido longas, chegando a 13 horas de plenária, os últimos dois dias foram mais insalubres. A juíza, Andreia Moruzzi, entrou madrugada adentro. A sessão, que começou na quinta às 9h30, só chegou ao fim da noite de sexta, somando 33 horas de plenária, subtraindo os intervalos.

    O júri sentenciou quatro Guaranis e decidiu pela liberdade de Carlito de Oliveira. Paulino foi condenado pelo homicídio consumado de Rodrigo e homicídio qualificado de Ronilson. Cumprirá pena de 20 anos, 3 meses e 6 dias. Lindomar ficará 19 anos, 2 meses e 12 dias em reclusão, pelo homicídio consumado de Rodrigo e Ronildo, quesitos julgados de forma idêntica pelo júri. Já o Guarani Jair cumprirá pena por homicídio consumado de Rodrigo e de Ronilson, além de responder por tentativa de homicídio duplamente qualificado tentado a Emerson. Serão 26 anos, 8 meses e 16 dias de reclusão. Ezequiel Valensuela, réu foragido, foi condenado a 34 anos, 5 meses e 10 dias pelos homicídios de Rodrigo e Ronilson o tentado a Emerson.

    Todos cumprirão pena em regime semiaberto, em uma estrutura da Funai dentro da aldeia Passo Piraju. Decisão tanto da defesa quanto da acusação, que seguiram o artigo 56 do Estatuto do Índio, que determina que “as penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado”, e a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que, no artigo 10, determina a preferência a “a tipos de punição outros que o encarceramento”.

    O processo começou na Justiça estadual e depois se tornou federal. Mas ainda terá desdobramentos pois há outros réus, Márcio, Sandra e Valmir, que respondem em liberdade e aguardam seus julgamentos. Por um pedido da defesa do cacique e os quatro Guaranis Kaiowas, o julgamento foi transferido para São Paulo, ao alegarem parcialidade da Justiça em Mato Grosso do Sul. Na capital paulista, a plenária aconteceu no TRF (Tribunal Regional Federal) da 3ª Região (responsável por São Paulo e Mato Grosso do Sul), na zona oeste de São Paulo, comandada pela juíza Andreia Moruzzi, sobrinha do ex-presidente da República José Sarney.

    Após publicação da reportagem sobre o segundo dia de júri, Moruzzi questionou a equipe quanto à necessidade de relatar seu grau de parentesco com o ex-presidente. Segundo a magistrada, a Ponte “fez política” e a informação não era relevante para o caso. Ainda que sustente o orgulho pela família, disse que responderia com interpelação judicial.

    Sustentação

    Durante os quatro dias de julgamento, a defesa sustentou a versão de que os indígenas não identificaram as vítimas como policiais, já que Rodrigo, Ronildo e Emerson estavam sem identificação, dentro de um veículo descaracterizado – sem identificações tradicionais de veículos policiais. Os advogados falaram da atuação de milícias armadas, contratadas pelos fazendeiros da região, como explicação para o temor e a resposta dos indígenas. Esse era à época um motivo de constantes reclamações dos Guaranis, que andavam muito assustados. Além de comprovarem a legalidade da ocupação dos indígenas, em Dourados.

    Eles relembraram que o próprio policial Emerson sustentou a demora de 15 a 20 minutos entre o indígena ter os identificado como policiais, até a emboscada. A defesa contestou tempo insuficiente para organizar uma emboscada, como Ermínio mencionou. Sustentaram também a tese do pós-doutor e testemunha de defesa Tonico Benites: os indígenas pertencem à terra e não o contrário. A defesa estava composta pelo Procurador Federal da Funai, Derli Fiuza, e os advogados do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) Guilherme Madi, Michael Nolan e Caroline Hilgert.

    A acusação contou com o procurador do Ministério Público Gustavo Torres Soares e o advogado auxiliar Mauricio Rasslan. Os dois defenderam a versão de que Rodrigo, Ronilson e Emerson foram até a região prender o assassino de um pastor, crime que aconteceu anteriormente, e que estava na Chácara Pedroso. Por serem policiais civis em investigação, optaram pela descaracterização.

    Alegavam que os indígenas desarmaram os policiais e armaram uma emboscada, que culminou nas duas mortes. Os Guaranis teriam descoberto a identidade dos três agentes, quando Rodrigo pediu informação sobre a localização da Chácara Pedroso para um indígena, segundo a acusação. Em torno de 15 a 20 minutos, os Guaranis teriam armado a emboscada. Sustentavam a versão posta pela vítima sobrevivente Emerson.

    Depoimento dos réus

    O primeiro réu a prestar depoimento foi o Paulino Lopes, com início às 14h50 da quinta-feira (6/6). A principal língua dos réus é o Guarani Kaiowá e, por isso, dois intérpretes acompanham os julgamentos. Paulino confessou o crime de que estava sendo acusado e disse que não sabia quem eram as pessoas que entraram na aldeia no dia. “Não soube que era polícia”, explicou.

    Antes do ocorrido, ele estava trabalhando na plantação de arroz e viu um pessoal chegando na aldeia. Viu somente o carro saindo, já disparando tiros. Paulino relatou que a Parati, quando viu os indígenas, deu ré em direção à rodovia MS-156. Na cena estavam ele, Ezequiel (réu foragido) e Ermínio (réu falecido). Só Paulino e Ezequiel estavam armados, cada um com uma faca. Já os policias estavam com armas de fogo. E, na tentativa de desarmar as autoridades, acabou esfaqueando-os.

    O argumento utilizado para justificar o desarme dos policiais foi de que a cultura indígena os deixou mais rápidos e ágeis. Ele também falou sobre um tiro de raspão no braço e que fez o exame de corpo de delito vestido, inclusive com camiseta de manga longa. Durante sua prisão, relatou tortura e agressão por parte dos policiais. Dentro do DOF (Departamento de Operações de Fronteira), diz ter levado choques na orelha e na nuca, mesmo depois de ter confessado envolvimento na morte dos policiais. Quando acordou, já estava na cela.

    Réus durante o julgamento, realizado em São Paulo a pedido da defesa, apontando parcialidade do judiciário sul-matogrossense | Foto: Mariana Ferrari/Ponte Jornalismo

    Durante o cumprimento da prisão em semiliberdade, a esposa do acusado cometeu suicídio e a filha do casal, de oito anos, foi estuprada ao ser levada para outra aldeia. Por isso, quando a Polícia Federal foi visitar a estrutura da Funai, onde eles estavam presos, Paulino não foi encontrado. Tinha ido até outra aldeia visitar a filha, que ficou 15 dias na UTI (Unidade de Tratamento Intensivo), mas não resistiu aos ferimentos e morreu. Paulino também responde por um segundo crime de latrocínio, de 2015. Segundo ele, as acusações são falsas e o crime teria sido cometido pelo desaparecido Ezequiel.

    Segundo réu

    Jair Aquino Fernandes foi o segundo réu a depor, com início às 20h30. O Guarani não confessou os crimes, disse que foi incluído no meio dos outros e não tinha como se defender. Segundo ele, no dia 1º de abril de 2006 estava pescando com o filho. Quando o pequeno começou a chorar o levou até a mãe. No percurso encontrou Teresa, que avisou sobre a morte de dois policiais. Assim que deixou o filho com a esposa, foi até a estrada por curiosidade.

    Já no tumulto, uma mulher veio em sua direção perguntando o que estava acontecendo. “Não sei”, respondeu. A mulher, então, pediu ao policial que o mantivessem ali. Ela explicou que iria levá-lo na delegacia e logo depois estariam de volta. Quando soube, Paulino avisou que iria pegar os documentos, mas foi impedido.

    No camburão, foi levado junto com os indígenas Sandra e Valmir até a delegacia civil. Lá, havia uma multidão em ato de represália. Os três, então, foram levados para o DOF. Na cela, ficou junto com Valmir. Por volta da meia noite, o retiraram da cela para assinar um papel. Jair se recusou a assinar na ausência de um representante da Funai ou de um advogado. Foi espancado e assinou o documento sem ao menos ler e, de volta para a cela, foi novamente torturado. Somente na penitenciária ele descobriu que Paulino e Ezequiel eram os responsáveis pelo crime, sustentou.

    Terceiro

    O cacique Carlito foi o terceiro a prestar depoimento. O nome indígena do acusado significa índio de pequeno cocar. Nascido em Passo Piraju, sua principal atividade é a reza. Por algumas vezes ele foi questionado sobre o motivo de estar ali. Carlito respondeu que na aldeia há famílias que não seguem os seus ensinamentos e, por isso, estava ali. “Sabe o que estamos fazendo aqui?”, perguntou a juíza. O líder concluiu com o mesmo pensamento anterior, das famílias que não seguiram seus ensinamentos.

    O advogado auxiliar de acusação, Maurício Rasslan, sugeriu que o acusado estava indefeso, por não saber o que está fazendo na plenária. O procurador de acusação, Gustavo Torres, rebateu e disse que a defesa é “a melhor do Brasil” na causa indígena. A defesa concordou com Gustavo, em continuar com o interrogatório, e garantiu que o réu não estava indefeso.

    Novamente, a juíza questionou se ele sabia o que estava fazendo ali. “Não estava lá”, alegou Carlito. “O que aconteceu no dia 1º de abril de 2006?”, indagou a juíza. O cacique começou, então, a explicar que estava pescando e quando retornou para a aldeia os fatos já tinham acontecido. Por fim, disse que estava ali por conta disso.

    Carlito, como Jair, disse que assinou o depoimento à força, depois de ser espancado na delegacia. Confirmou que um dos réus, Lindomar, é seu filho de criação. Era filho biológico de Plácida, esposa do cacique. Assim que o nome da mulher foi mencionado no plenário, Carlito chorou. A esposa morreu depois dos crimes. “A gente ama a nossa família”, comentou chorando.

    Com o réu ainda em lágrimas, Maurício o questionou sobre outra esposa, que ele negou. Sempre foi casado com Plácida, garantiu. Logo após o intervalo, Carlito fez uma reza para se reestruturar. O líder religioso confirmou a ideia apresentada pelo antropólogo Tonico: retirar um indígena de sua terra é como tirar um filho de uma mãe.

    Quarto réu e as últimas testemunhas

    Lindomar foi o quarto a depor, já que Ezequiel está foragido. Sem confessar o crime, ele afirmou que estava ciente da acusação. Falou que foi até o local das mortes por curiosidade. Chegando lá, pediram para ele ficar em um canto, com outros indígenas, e que não conseguiu ver os corpos. Ele foi levado até a delegacia e bateram muito nele.

    A delgada Magali, da Polícia Civil de Dourados, pediu para não baterem no rosto do acusado e nem para matá-lo. Lindomar disse que apanhou na região da bacia e na boca do estômago, até desmaiar. No dia 1º de abril de 2006, Lindomar explicou que estava pescando. Na aldeia, ele era professor de Guarani.

    Além dos réus, outras testemunhas de defesa depuseram. A primeira foi Margarida Nicoletti. Às 9h30 da manhã de quinta-feira (06/06), a assistente social da Funai falou sobre os fatos do dia 1º de abril de 2006 em cerca de uma hora, em videoconferência de Dourados. Margarida contou que naquele dia uma reunião foi realizada com representantes da Funai, da Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros e da Polícia Civil. O intuito era estabelecer um acordo: em ações dentro de territórios indígenas, “seria necessário” o acompanhamento de um representante da Funai. Sem o chamado do representante, a Fundação do Índio deveria ser, ao menos, comunicada. Segundo ela, não houve proibição. Era um planejamento.

    A segunda e última testemunha de defesa foi o antropólogo, pós-doutor, Tonico Benites. O Guarani Kaiowá também prestou depoimento em videoconferência de Dourados. Tonico é o primeiro Guarani Kaiowá formado em pedagogia. Durante sua trajetória acadêmica, escreveu livros e teses sobre a importância das lideranças religiosas, na comunidade indígena. Benites explica que, diferente dos não-indígenas, o povo Guarani Kaiowá pertence à terra e não o ao contrário. “Não é qualquer pedaço de terra”, completou.

    No fim, prevaleceu a tese da acusação de que os índios sabiam o que estavam fazendo ao atacarem os policiais, diferentemente da sustentação de legítima defesa posta pela defesa. Assim, eles cumprirão pena dentro da aldeia, enquanto o cacique está inocentado das acusações.

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