Policial sobrevivente depõe em júri: ‘não são índios da terra. É papo para ganhar dinheiro’

    No 2º dia de júri de indígenas Guarani Kaiowá, único policial sobrevivente, Emerson José Gadani prestou depoimento de 4 horas; durante a sessão, defesa dos índios alega emissão de opinião da juíza Andreia Moruzzi , sobrinha do ex-presidente José Sarney

    2º dia de júri dos indígenas Guarani Kaioeá, todos de costas, começou às 8h25 e chegou ao fim pouco depois das 21h | Foto: Mariana Ferrari/Ponte Jornalismo

    O termômetro marcava cerca de 13 graus quando Emerson José Gadani tomou posse do microfone. Ele deu inicío ao depoimento que abriu o segundo dia de júri dos indígenas Guarani Kaiowá. Às 8h25 da gelada quarta-feira (5/6), Gadani inundou a plenária do 14º andar com uma voz forte, alta e por vezes embargada, no TRF (Tribunal Regional Federal) da 3ª Região, na zona oeste de São Paulo.

    Antes da testemunha iniciar o depoimento, que não corre o risco de se tornar um falso testemunho pelo fato de Gadani também ser vítima, o procurador Gustavo Torres Soares comenta que o ocorrido dia 1º de abril de 2006 teria sido a “experiência de vida mais forte” que a vítima tenha passado. Os indígenas Carlito de Oliveira, Ezequiel Valensuela, Jair Aquino Fernandes, Lindomar Brites de Oliveira e Paulino Lopes são acusados de dois homicídios e uma tentativa de homicídio em Dourados, município no extremo oeste do Mato Grosso do Sul, quase na divisa com o Paraguai. Quem comanda a sessão é a juíza Andreia Moruzzi, sobrinha do ex-presidente da República José Sarney.

    Na época do ocorrido, que gerou a morte dos policias civis Rodrigo Pereira Lorenzato e Ronilson Magalhães, Gadani estava há três meses lotado na corporação. Segundo seu relato, ainda naquele dia 1º de abril, ele saiu para almoçar por volta das 12h30. Havia iniciado o expediente pela manhã, na delegacia de Dourados. Pouco depois de sentar para almoçar, seu telefone ligou. Era Ronilson avisando de um chamado: precisavam buscar o assassino do pastor Wilson, na Chácara Pedroso, crime acontecido anteriormente. Emerson atendeu o chamado do colega e chegou pouco depois na delegacia, já que morava há oito quadras do local. Os três respondiam à delegada plantonista, Magali Leite.

    A equipe, então, entrou em uma viatura descaracterizada e seguiu rumo à chácara. A disposição do carro era a seguinte: Rodrigo no volante, Ronilson no banco do passageiro e Emerson trás – local atribuído a ele por ser o mais novo. Emerson diz que não tinha mandado de prisão e que a saída também não foi documentada. Chegando próximo ao local desejado, por volta das 14h30 como menciona, Gadani e os colegas começaram a questionar moradores no entorno da Rodovia MS-156 onde ficava a Chácara Pedroso – já que na delegacia não passam informações precisas do endereço.

    Nesse momento, segundo relato, o trio encontrou uma pessoa identificada como indígena e questiona sobre a localização da Chácara. “Nós somos policiais”, comenta que avisaram. Em seguida, Emerson percebeu que o indígena teria ficado assustado. Depois de procurar e não encontrar o local desejado, a equipe policial decide voltar para a delegacia. “Aí nossa vida começa a tomar tumulto”, derramou-se em lágrimas.

    Emerson diz que, ao passarem a ponte de Passo Piraju, Porto Cambira, viram uma confusão. De longe, ele diz que avistou uma mulher deitada na estrada. Em outros depoimentos anteriores ele teria mencionado que viu um “índio”. Questionado pela defesa, ele confirma que a índia na estrada se tratava de Sandra – presa em flagrante na ocasião e depois liberada.

    A confusão, segunda a vítima, começou depois que Rodrigo puxou o freio de mão. Emerson relata que no momento uma mão entrou pela janela do Rodrigo e acertou o motorista com golpes de armas brancas perfurantes. Ronilson, no banco do passageiro, teria sido abordado com uma arma de fogo. “Eu sou policial, está louco?”, Gadani enfatizou no momento.

    Já saindo do carro, Emerson pega a espingarda calibre 12, que estava no chão do passageiro do carro. Ele também portava um revólver calibre 38. Em conflito com os índios que, segundo ele, tentavam tirar a arma do policial, a espingarda – carregada, mas travada – foi disparada e atingiu o joelho de Ronilson. Emerson diz que foi desarmado após ser golpeado na mão. Gadani menciona que quando foi desarmado passou a ser “espancado” e “esfaqueado no peito”. “Uma cicatriz que preciso olhar todo dia essa porcaria”, queixou, indo às lágrimas.

    Emerson diz que foi torturado pelo réu Lindomar, que teria colocado um revólver oxidado em sua boca, e que ficou entre a vida e a morte quando o réu Jair teria dito que iria “dar um tiro” em sua cabeça. Irritado, a vítima diz que os índios “não são inocentinhos, que vendem arquinhos na rodovia”. Também diz que os índios em sua região, Dourados, “não são índios da terra. Isso é papo para ganhar dinheiro da Funai (Fundação Nacional do Índio)”.

    Gadani ainda alega negação no atendimento médico por parte dos indígenas e confirma afastamento da profissão depois do fato, por invalidez. Por recomendação médica, a vítima depôs de costas aos réus (Carlito de Oliveira, Ezequiel Valensuela, Jair Aquino Fernandes, Lindomar Brites de Oliveira e Paulino Lopes), que assistiram o depoimento na plateia a pedido da defesa. Antes, eles estavam fora da plenária. O depoimento do policial aposentado Emerson Gadani durou quatro horas.

    Oitiva de defesa

    Depois do longo depoimento de Gadani, o júri iniciou a fase das oitivas de defesa – encerrando os depoimentos de acusação. A primeira testemunha a falar foi Maria Aparecida da Silva Lins, indígena da etnia ofaié. Maria estava um pouco acuada e mostrou certa dificuldade em se comunicar da maneira formal com a qual o júri está acostumado. A indígena contou que estava há 30 dias na aldeia de Passo Piraju.

    No dia 1º de abril de 2006, Maria estava com o marido guarani de nome Valdinei, com o irmão Márcio Silva Lins e seus dois filhos no meio da aldeia. Os três trabalhavam na construção de suas casas. A testemunha havia se mudado para a região de Porto Cambira para acompanhar o marido. Ela disse que fora avisada do conflito de terras na região. Enquanto eles trabalhavam na construção, Maria explicou que uma parati passou pela aldeia, deu uma volta brusca – em depoimentos anteriores ela chama a volta de “cavalo de pau”. Nesse momento, ela escutou três disparos de tiros. Como foi o seu primeiro contato com barulho de arma de fogo, a indígena confundiu com o som de “bombinhas”. Segundo ela, os tiros foram disparados no fim da aldeia, próximo da casa de Nivaldo. Márcio, o irmão de Maria, estava no telhado da construção quando, segundo a testemunha, foi atingido no pé com um tiro.

    Quando viu o estado do irmão, ela diz ter entrado em desespero e carregou ele até o agente da saúde, Valdir, que estava na casa de Tati, parente do cacique Carlito. Ela disse ter esperado por ajuda, mas “esse tal socorro não veio”. No dia seguinte, 2 de abril de 2006, vieram buscar Márcio alegando ida ao hospital, mas ele foi preso e solto somente um ano depois. “Foi preso injustamente, por um crime que ele não cometeu”, desabafou. Ainda no dia 2, Maria disse estar muito assustada e teria pedido aos agentes da Funai sua ida até “Bororó”, aldeia indígena localizada também em Mato Grosso do Sul.

    No momento de perguntas da acusação, o advogado Mauricio Rasslan disse que a etnia ofaié “não é muito normal” e alega conhecimento por ter nascido na região de Dourados. “É uma afirmação que eu estou fazendo, eu nasci lá”, arrematou.

    A segunda testemunha de defesa foi o procurador Charles Pessoa, dotado em Mato Grosso do Sul na época do fato. O depoimento foi prestado por vídeo conferência em Petrópolis, local onde Pessoa atua no momento. O procurador acompanhou o processo de ocupação dos índios e relatou grande conflito com Belline, filho do fazendo Esmalte, dono das terras onde os indígenas se aldearam. Pessoa comenta que se apropriou de diversos casos de violência entre Belline e os indígenas que, inclusive, levou Belline à prisão em 2001.

    Charles argumentou que, na ocasião, os índios tinham autorização legal para o uso dos hectares da fazenda, cerca de 40 a 60 hectares. O procurador mencionou uma manifestação após o ocorrido em 1º de abril, na frente do prédio do Ministério Público em Dourados. Segundo ele, os manifestantes empunharam armas e o chamavam para uma conversa. Charles estava de férias no dia da mobilização e, por isso, não conversou com eles. “Dois dias depois da manifestação, determinaram a saída imediata dos índios [da fazenda em Passo Piraju]”, explicou. Ele afirmou que abriu liminar e os índios foram, novamente, autorizados a utilizar a área e que “estavam e sempre estiveram” protegidos. Charles finalizou dizendo que entender os guaranis é muito complexo. “As pessoas tem preguiça de entender”, comenta.

    Antropólogos

    Também nesta quarta (05/06) foram ouvidos dois antropólogos em vídeo conferência. Jorge, pós-doutorado em antropologia, e que fez, junto com a professora Graciela, uma análise antropológica dos índios da aldeia de Passo Piraju depois do fato de 2006. Segundo ele, “a maioria” dos indígenas da região “têm dificuldade em compreender bem o português” e que os “guaranis de Mato Grosso do Sul são muito maltratados”. Jorge sustentou que entre os índios há uma dificuldade em raciocinar em português. Por vezes, eles parecem entendidos, mas estão apenas reproduzindo respostas padrões, como “aham”. Ele contestou os estereótipos de ser ou não índio. Jorge não concorda que um índio é menos índio por falar português ou usar roupas.

    O antropólogo explicou que foi contratado para analisar os indígenas, pois era de sua expertise. A juíza Andreia Moruzzi questionou, então, se ele achava necessário explorar também os ferimentos dos policias. O antropólogo considerou que não, pois essa função não lhe foi atribuída. Andreia, por sua vez, retrucou que,em sua opinião, era necessário, sim. No mesmo instante, a defesa solicitou uma ata dizendo que a juíza forneceu opinião.

    Outro antropólogo escutado foi o Homero, do Ministério Público de Dourados. Ele comentou que na quinta-feira antes do ocorrido do dia 1º, Carlito havia o procurado para informar que estava preocupado. Naquela manhã, de acordo com o cacique, embarcações subiram e desceram o rio. Observando e fotografando a aldeia indígena. Ele também menciona conhecer conflitos entre os indígenas e Belline, o filho do fazendeiro Esmalte.

    Homero contou que é totalmente compreensível que os indígenas não tenham acreditado que os integrantes da Parati fossem policiais, já que eles estavam descaracterizados. Ele comentou que o povo aldeado associa os policias a viatura com giroflex e o distintivo, portanto, seria muito difícil os policiais se fazerem confiáveis sem as devidas informações na viatura e vestidos como civis. “Confiança no grupo é um processo lento”, completou.

    A sessão chegou ao fim às 21h09, após 13 horas de plenária. Para os próximos dias são esperados mais depoimentos de testemunhas da defesa. Na sequência ocorrem o debate, quando as teses de acusação e defesa são postas, e a votação dos jurados. Esse é o momento em que os indígenas serão condenados ou inocentados. O júri chega o fim nesta sexta-feira (07/06).

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    […] Depois de 13 anos de processo, chega ao fim o julgamento dos indígenas Guarani Kaiowá acusados de homicídio e tentativa de homicídio no dia 1º de abril de 2006, em Dourados, cidade no Mato Grosso do Sul. O júri popular, formado por seis mulheres e um homem, decidiu absolver o cacique Carlito de Oliveira, enquanto condenou outros quatro: Ezequiel Valensuela, Jair Aquino Fernandes, Lindomar Brites de Oliveira e Paulino Lopes pela morte dos policiais civis Rodrigo Pereira Lorenzato e Ronilson Magalhães. Outro policial, Emerson José Gadani, é a única vítima sobrevivente. […]

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