Câmeras nas fardas mostraram o sargento Frederico Inácio, que matou Vinícius Gomes, e soldado Diego Imediato, que atirou em rapaz sobrevivente, manipulando equipamentos durante ação em 2021, revelada pela Ponte
Após quase dois dias de julgamento, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) absolveu, nesta quarta-feira (30/10), dois policiais militares envolvidos em ação que deixou um jovem negro de 20 anos morto e um ferido, que sobreviveu à abordagem em São José dos Campos, no interior paulista, em 2021. Como a Ponte revelou na época — e o programa Fantástico, da TV Globo, exibiu depois —, as câmeras nas fardas dos PMs gravaram toda a movimentação e serviram como prova dos crimes.
Os sargento Frederico Manoel Inácio de Souza tinha sido acusado por homicídio qualificado com recurso que dificultou a defesa da vítima, Vinícius David de Souza Castro Gomes. Já o soldado Diego Fernandes Imediato da Silva foi denunciado por tentativa de homicídio qualificado contra o sobrevivente, que estava com Vinícius participando de um roubo. Diego também foi denunciado por porte ilegal de arma, por inserir uma pistola na cena do crime, de acordo com o Ministério Público de São Paulo (MP-SP).
Os jurados, no entanto, entenderam que os policiais mataram Vinicius e tentaram matar o adolescente, mas deveriam ser absolvidos. Para eles, o soldado também não plantou uma arma na cena do crime.
‘Não respeitaram nossa dor’
À Ponte, o advogado Thiago Marques, que representa a família, disse que o pai do jovem está indignado e que eles pretendem conversar com a promotoria para recorrer da sentença. “Foi uma decisão completamente contrária às provas dos autos, contra tudo o que foi documentado ali”, afirmou.
O eletricista industrial David dos Santos Gomes, 47, pai de Vinicius, disse que a família foi humilhada pelos advogados dos policiais durante o julgamento. “Falaram que a minha família estava a fim de dinheiro e não de justiça. Em um júri com a família da vítima presente, em nenhum momento eles respeitaram a nossa dor”, lamentou à reportagem.
A Ponte tentou contato com o advogado Celso Vendramini, que representa Frederico e Diego no processo do Tribunal do Júri, mas não obteve retorno.
Relembre o caso
De acordo com os depoimentos à Polícia Civil, após participarem de roubos a estabelecimentos comerciais usando um Corsa branco roubado no bairro Jardim Flamboyant, em São José dos Campos, no dia 8 de setembro de 2021, quatro jovens e um adolescente tentaram fugir da polícia e bateram o veículo na portaria de um condomínio, e depois num poste. Entre eles, estava Vinícius.
Na versão do sargento Frederico Manoel Inácio de Souza, do 3º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep), Vinícius saiu do banco dianteiro e “chegou a levantar as mãos” — mas teria tentado “levar a mão na arma que estava em sua cintura, mesmo depois de receber as ordens que era para largar a arma” e “insistiu em sacá-la” em sua direção.
O policial justifica que atirou três vezes “para repelir a iminente agressão”.
Não é o que as imagens da câmera de seu colega, o cabo Elenilson Daniel dos Santos, mostram. Vinícius aparece na abordagem com a cabeça para fora da janela e sem nenhuma arma nas mãos, e obedece a ordem de Frederico de descer e colocar as mãos na cabeça. Para a promotora Renata Hatori Nascimento, o sargento teve a intenção de matar e, pela vítima estar rendida, dificultou qualquer chance de defesa ao disparar três vezes com o fuzil.
‘Vira [a câmera] pra lá’
Já o outro adolescente só sobreviveu porque usava um colete à prova de balas, acusa a promotora. Ele também aparece largando a arma de brinquedo que empunhava e se rendendo à abordagem. Em uma das imagens, gravada pelo equipamento do cabo Elenilson, o soldado Diego diz: “Eu ia adivinhar? Devia ter dado na cara. Moleque de colete, mano. Eu ia adivinhar?”.
Depois, Diego pede para os colegas se virarem, para evitar que as câmeras o gravassem, ao dizer: “Dá um x aí todo mundo. Viu, dá um x aí, vira pra lá, vira pra lá! Ô Steve, ô Steve, vira aí ô! Vira pra lá todo mundo”. “Steve” é um jargão para policial. O soldado ainda reiniciou a gravação no momento em que disparou contra o adolescente.
Segundo a denúncia, o soldado ainda pega uma pistola Taurus calibre 380, de numeração raspada, e coloca na bolsa lateral do colete usado pelo adolescente. Os outros dois jovens que participaram do roubo foram presos e o adolescente, apreendido à Fundação Casa depois de se recuperar dos ferimentos.
Na época do crime, a morte de Vinicius, que morava na comunidade Santa Cruz, em São José dos Campos, gerou um protesto na avenida Teotônio Vilela. Ao menos quatro veículos foram incendiados, segundo reportagem do Vale Urgente, da TV Band.
Na ocasião, a Corregedoria da corporação pediu a prisão preventiva de nove PMs que tiveram envolvimento no caso, que foi negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (após a solicitação ter sido encaminhada pelo Tribunal de Justiça Militar, que apontou não ter competência por se tratar de crimes dolosos contra a vida). O MP-SP também não requisitou a prisão dos envolvidos em nenhum momento. Por isso, seguiram em liberdade até o julgamento de hoje.
Na fase de alegações finais, antes de o juiz decidir se a dupla seria levada a júri popular, o MP-SP já se manifestou pela absolvição do soldado Diego Imediato por entender que ele atuou em “legítima defesa putativa” — ou seja, pensou que estava em uma situação de risco quando atirou contra o adolescente, mas o magistrado Milton Sampaio Neto divergiu do entendimento e determinou que ambos fossem a júri.
Colaborou Catarina Duarte