Justiça absolve Alexandre, preso há seis meses por um crime que não cometeu

Carregador negro foi acusado de ter participado de um latrocínio na zona leste de São Paulo e alvo de um reconhecimento fotográfico irregular. “No Brasil o Ministério Público estuda para prender qualquer um”, critica

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Alexandre dos Santos estava preso desde o dia 31 de agosto do ano passado. | Foto: Arquivo pessoal

“Até hoje eu não entendo como entrei nessa, como aconteceu, como eles [policiais] me acharam. Minha vizinhança aqui são tudo família, sempre estou junto com a minha família, sempre trabalhei aqui por perto”, desabafa Alexandre do Santos, carregador negro de 33 anos, depois de passar mais de seis meses preso injustamente. Nesta segunda-feira (21/3), o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) absolveu Alexandre da acusação de ter participado de um latrocínio (roubo seguido de morte) em 22 de junho de 2021, junto com outras duas pessoas, após ser reconhecido pelas vítimas por uma foto 3×4.

O carregador só soube do processo quando um oficial de justiça apareceu na sua casa no dia 31 de agosto de 2021 e policiais o levaram para a delegacia. Até esta terça-feira (22/3), ele estava preso no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Guarulhos I, na Grande São Paulo. “Eu estou bem aliviado com a minha família, meus filhos, porque já passou. Sou uma pessoa trabalhadora, de bem, mas só quem passa por isso sabe o sofrimento o que é”, relata à Ponte.

Na sentença, a juíza Tatiana Franklin Regueira, da 9ª Vara Criminal do Fórum da Barra Funda, argumentou que não havia provas que incriminassem o carregador. Ela também apontou contradições entre o reconhecimento fotográfico feito no 55º DP (Parque São Rafael) e o pessoal durante audiência. Nesse último, uma vítima apresentou dúvida para identificar Alexandre e uma outra não o reconheceu, dizendo que o assaltante seria uma pessoa de pele branca.

Além disso, a magistrada também considerou uma série de provas levantadas pela defesa, que asseguraram o álibi de Alexandre e o depoimento de pessoas que estavam com ele na mesma hora que ocorreu o crime: “Foram apresentados documentos que comprovam sua alegação de que no dia dos fatos e posterior, o réu trabalhou normalmente”.

Na saída do CDP, Alexandre encontrou a esposa Ana Carolina (à esquerda), a advogada Nathalie (no centro), os filhos, a mãe e as irmãs. | Foto: arquivo pessoal

A família do carregador celebrou a decisão depois de meses lutando por justiça. Nesse período, Alexandre conta que passou por situações degradantes, ficava agoniado e pensava muito nos filhos, de 2 e 8 anos, na esposa e nos pais. “A gente é muito oprimido, as comidas vinham azedas direto, ficava numa cela com 30, 40 pessoas. O jumbo eles entregavam da forma que eles queriam. É opressão mesmo e a gente não tinha como fazer nada”, relembra.

Segundo ele, a foto que estava nas mãos da polícia foi tirada há mais de cinco anos, na época que ainda não usava óculos. “Para mim, foi assim pela aparência. Eles olharam a aparência, falaram: ‘esse aqui parece um pouco com aquele, você fala que é esse, que nós vamos lá e prendemos ele’. Eles do Ministério Público estudam para dar razão para quem tem, só que infelizmente no nosso país o Ministério Público está estudando para condenar qualquer um”, critica.

A advogada de defesa Nathalie Guimarães comenta que a sentença foi coerente com as provas apresentadas e deve levar o caso para a Corregedoria da Polícia Civil para apurar de que forma Alexandre passou a ser considerado suspeito pelo crime. “É sempre dever do Estado provar a culpa de alguém para ser preso. Em tese, nós não deveríamos ficar tentando provar a inocência. Então, vamos encerrar com ação indenizatória contra o Estado para poder tentar compensar o dano moral com a prestação financeira para ele e para a família. As crianças menores que foram privadas da presença do pai por todo esse período”, afirma. O Ministério Público ainda não se manifestou sobre a decisão.

A injustiça e o trauma

O reconhecimento fotográfico de Alexandre aconteceu 26 dias após o roubo, mesmo sem a descrição das características dos suspeito como contou a Ponte. Em depoimento na polícia, as duas vítimas relataram que foram com dois de seus parentes até a Travessa Alfredo Bastos, por voltas das 21h30 do dia 22 de junho do ano passado, para comprar um carro que estava anunciado no Facebook.

No local, foram surpreendidos por três assaltantes que exigiram transferência bancária via pix e celulares. Ao reagirem, duas pessoas da mesma família foram baleadas e não resistiram. Durante a fuga, os criminosos deixaram cair um revólver calibre .38, da Taurus, e um celular azul, modelo Samsung, pelo qual Alexandre foi acusado de ser o dono.

Somente após a primeira audiência, a polícia encaminhou o celular da cena do crime para o Instituto de Criminalística (IC). No entanto, não foi possível realizar a perícia do aparelho pois ele estava formatado, ou seja, com os dados apagados. O único celular que passou pela perícia foi o de Alexandre, um modelo LG, que apontou que o carregador estava na rua da casa dele no dia 22, a 15 km do local do crime.

Para conseguir provar a inocência do carregador, a família Santos precisou se reunir e viu sua rotina mudar. A auxiliar de limpeza e esposa de Alexandre, Ana Carolina Barbosa dos Santos, 29, conta que todos ficaram abalados emocionalmente, inclusive seus filhos, que viram o pai ser levado pelos policiais no dia 31 de agosto do ano passado. Agora, ela celebra a liberdade do marido e diz que quer ajudá-lo a superar esse trauma: “eu estou mais sossegada e dando coragem para ele. Agora vamos correr atrás do prejuízo, atrás do direito dele. Foi feita a justiça entre aspas, porque o psicológico da pessoa não é o mesmo”.

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Alexandre diz que ainda não se sente preparado para voltar a trabalhar com frete de caminhão e ainda tem receio de ir para a rua e encontrar policiais. “Eu não consegui dormir e nem me alimentar direito ainda. Provavelmente vou procurar um psicólogo, porque estou bem abatido. Agora eu tenho que procurar minha melhora. E o que acontece agora em diante na minha vida é que eu vou continuar com a matrícula, sempre que a polícia me parar na rua vai constar que eu já tive na cadeia. É uma coisa que não queria, nunca fiz por onde. Mas, vamos pra cima e colocar a cabeça no lugar, seguir em frente”, ressalva.

O que diz a polícia

A Ponte entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) para questionar sobre as irregularidades do reconhecimento fotográfico, único elemento de acusação contra Alexandre, e se haverá alguma apuração por parte da Corregedoria da Polícia Civil sobre o caso. A pasta não retornou até o momento da publicação da reportagem.

O que diz o MP

O Ministério Público de São Paulo também foi questionado pela reportagem em relação às fragilidades no reconhecimento e sobre os apontamentos feitos pela defesa de Alexandre. Em nota, o MP disse que “todas as informações constam nos autos do processo que devem ser consultados no site do Tribunal de Justiça de São Paulo”.

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